O Estado em três tempos: opressor, indiferente e cuidadoso
Em setembro de 1990, a abertura de uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, na zona noroeste de São Paulo, revelou a existência de 1.049 ossadas. Ali haviam sido enterrados indigentes, vítimas de esquadrões da morte, crianças mortas por meningite – e presos políticos. Quem acompanha o caso acredita que esses restos mortais encontrados no bairro de Perus podem ser de pelo menos 40 desaparecidos durante a ditadura. Nesse um quarto de século, que coincidiu com a volta da democracia, as ossadas foram levadas para lá e para cá e expostas às piores condições, evidenciando descaso do poder público com a importância histórica e política da descoberta. E, principalmente, com as famílias, que desde os anos 1970 ouvem relatos sobre essa e outras valas clandestinas.
Em setembro do ano passado, foi dado um passo talvez decisivo para um capítulo derradeiro sobre o caso Perus. As ossadas estão sendo analisadas por uma equipe coordenada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em condições adequadas e com a seriedade que o caso exige. Não é garantia de que serão identificadas, dado o estado de conservação, mas o atual estágio do trabalho mostra outra postura por parte do Estado brasileiro.
I. Desinformação e perseguição
“Não adianta você ir lá na Quarta Parada. Vai em Perus”, sussurrou um agente do Instituto Médico-Legal a uma prima de Joaquim Seixas, que procurava o corpo do militante político e já estava de saída do IML. O atestado de óbito indicava – e ainda indica – a Quarta Parada, na zona leste paulistana, como local do sepultamento. Cemitério tradicional, do século 19, onde estão, por exemplo, os músicos Arnaldo Rosa, do grupo Demônios da Garoa, Tonico e Tinoco. Mas os funcionários do IML sabiam que o destino de Joaquim Seixas, assassinado em 17 de abril de 1971, tinha sido Perus. “Meu pai foi salvo da vala comum porque a gente ficou em cima”, diz uma das filhas, Ieda. A morte, que ocorreu à noite, foi anunciada de manhã.
Ieda, Iara e Ivan Seixas foram presos e levados ao Doi-Codi, em São Paulo. O rapaz, à época, foi torturado diante de Joaquim e também viu o pai sofrer nas mãos dos algozes. Ieda foi abusada sexualmente na carceragem. “A gente ficou sendo vigiada desde que saiu da prisão. Todo dia tinha um carro parado na porta com um sujeito.” As visitas ao cemitério, com o pai já descoberto e devidamente enterrado, também eram acompanhadas. A família saía da estação de trem, pegava uma subida íngreme e via, na rua, uma perua C-14 subindo a ladeira. Era um veículo usado por agentes policiais. A mãe, dona Fanny, chegava a ironizar, comentando que pediria carona para não se cansar tanto.
“A repressão ia lá, ameaçava, fazia brincadeiras mórbidas”, diz Ivan Seixas, que recorda de um primeiro dossiê, de 1979, feito por familiares de mortos e desaparecidos, para entregar ao então senador Teotônio Vilela. “Tivemos a preocupação de deixar registrado que a gente sabia.”
Desde a segunda metade dos anos 1970 se sabia da existência de uma vala clandestina em Perus, onde em 1971 havia sido inaugurado o Cemitério Dom Bosco. O prefeito era Paulo Maluf. À época, se alegou que a construção foi feita a pedido dos moradores – havia uma carta de 1962 da Sociedade Amigos de Perus. O cemitério mais próximo, em Caieiras, estava lotado. Existe a suspeita de que Perus seria destinado não só aos moradores da região, mas a indigentes, vítimas de esquadrões da morte e, posteriormente, desaparecidos políticos.
Uma das conclusões da CPI formada em 1990 na Câmara Municipal foi de que uma “desorganização histórica” do Serviço Funerário Municipal no tratamento de pessoas pobres, os chamados indigentes, serviu também ao ocultamento de corpos de vítimas de violência policial e desaparecidos políticos. O jornalista e pesquisador Luiz Hespanha, assessor parlamentar da Câmara na época da CPI, lembra que São Paulo, além de não ter um “cemitério distante para colocar os indigentes”, também enfrentou uma epidemia de meningite cuja divulgação foi proibida pelas autoridades. Boa parte das ossadas encontradas em Perus era de crianças possíveis vítimas da doença. “Há uma série de responsabilidades, agentes públicos coniventes ou participantes.”
Hespanha relaciona Perus ao Dops e à formação da Operação Bandeirante (Oban), financiada por empresários para combater “terroristas” – cujos corpos, por sinal, chegavam ao IML com uma letra T em tinta vermelha no prontuário. O papel do IML na ditadura foi um dos focos da Comissão da Verdade da Associação Paulista de Saúde Pública (APSP). “O esquema repressivo no Brasil não pode mais, definitivamente, ser considerado um porão. Os IMLs estavam no organograma do Doi-Codi”, diz o professor Carlos Botazzo, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, e presidente da comissão da APSP. “O modelo de São Paulo vai inspirar a ação da repressão em outros lugares”, acrescenta.
Segundo o grupo de trabalho da comissão da APSP que analisou o instituto no período, de 1969 a 1976 vários médicos legistas produziram laudos falsos. Em relatório divulgado no ano passado, são citados 33 legistas, 18 ainda vivos. Três têm o registro cassado até hoje, enquanto outros conseguiram suspender a decisão. O mais notório caso é de Harry Shibata, que tem seu nome citado em oito laudos, inclusive o do jornalista Vladimir Herzog, morto sob tortura em 1975. O primeiro da lista é Isaac Abramovitch, com 22 laudos, entre os quais o do estudante Alexandre Vannuchi Leme, morto em 1973. Recentemente, a Justiça determinou a retificação da causa da morte nos dois atestados de óbito. Alexandre chegou a ser enterrado como indigente em Perus. A família só conseguiu resgatar os restos mortais dez anos depois.
Segundo Botazzo, havia um esquema para que um médico “de confiança” se responsabilizasse pelo laudo. “Eles não podiam confiar num legista de plantão.” Foi essa também a conclusão da CPI de 1990, na Câmara paulistana: dentro do IML havia “um grupo de legistas afinados com o regime”. E laudos foram produzidos para acobertar mortes e dificultar a identificação de pessoas. Também não era respeitado o prazo de 72 horas de espera para o sepultamento – Joaquim Seixas, por exemplo, foi enterrado menos de 24 horas depois de morto./
“Eles (legistas) sabiam quem era ‘terrorista’, que os nomes usados eram falsos e quais eram os nomes verdadeiros”, diz o ex-vereador Ítalo Cardoso, que integrou a CPI da Câmara, lembrando que médicos como Harry Shibata e Isaac Abramovitch foram prestar depoimento. A remessa das ossadas para a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) tinha como objetivo, justamente, “fugir da turma da USP”, como diz Cardoso para se referir aos autores de laudos forjados. Mas a estratégia acabou se transformando em um “grande engodo”. Na época houve esforço para garantir recursos e melhorias para a instituição, que frustrou as expectativas. “O Badan (Palhares, coordenador dos trabalhos na Unicamp) se aproveitou disso, se tornou celebridade, e nós nos sentimos enganados.”
As atividades da CPI, volta e meia com ameaças, foram feitas “na raça”, lembra o ex-vereador. “Não havia estrutura técnico-científica, nem de órgãos públicos. Não havia um Ministério Público com a estrutura atual. No que dependeu da prefeitura, tivemos acesso total. Parte das pessoas denunciadas ainda estava na ativa.”
II. Esperança e descaso
A abertura da vala clandestina de Perus, na manhã de 4 de setembro de 1990, representou a expectativa de solução para dezenas de casos de desaparecidos, ainda em um período de redemocratização do país. Sem confiança, familiares foram contra a transferência para o IML. A preferência era pelo Departamento de Medicina Legal da Unicamp. Em novembro, a prefeitura de São Paulo (gestão Luiza Erundina) e a universidade assinaram convênio com objetivo de identificar as ossadas. E a Câmara abriu a comissão parlamentar que duraria sete meses.
Até 1992, os trabalhos pareciam andar normalmente. Foram obtidas duas identificações de presos políticos cujos restos mortais estavam na vala de Perus (Dênis Casemiro e Frederico Mayr). Mas a partir daí o processo simplesmente parou. “Queriam mostrar serviço”, diz Ivan Seixas, referindo-se à parte inicial do trabalho da Unicamp. “Mesmo assim, o trabalho que ele (o médico legista Badan Palhares) fez foi muito relaxado, muito parcial.” Ele avalia que tudo foi interrompido depois do término do mandato de Erundina. “A pressão era da prefeitura mesmo.” Erundina foi sucedida justamente por Maluf, que tomou posse em 1º de janeiro de 1993.
Após os primeiros resultados (identificação de Dênis e Frederico), “a equipe mudou radicalmente de conduta e o trabalho foi simplesmente abandonado”, relata o Ministério Público Federal em ação civil pública aberta em 2009. O processo detalha as várias etapas pelas quais foram submetidas as ossadas, que durante muito tempo ficaram expostas a condições inadequadas, se deteriorando, o que dificultaria qualquer processo de identificação. Ao citar Unicamp, Universidade Federal de Minas Gerais (para onde parte do material foi enviada) e USP, o MPF resume: a forma como os trabalhos foram conduzidos foi “negligente, desrespeitosa e irresponsável”. O Ministério Público defendeu a responsabilização dessas instituições, do governo estadual paulista e da União. Seguiu-se um longo processo de discussões sobre o destino das ossadas. Longo e doloroso para as famílias.
Em 2002, as ossadas saíram enfim da Unicamp e foram para o columbário (ossário geral) do Cemitério do Araçá, na zona oeste de São Paulo. Em 27 de maio de 2013, o material começou a ser transferido para um ossário reformado, no mesmo local, atendendo a um pedido do MPF em São Paulo e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Em novembro daquele ano, um dia depois da realização de ato ecumênico em homenagem a vítimas da ditadura, o local foi atacado por vândalos, que danificaram parte da instalação artística prevista para ser usada em uma exposição.
III. Retomada e esperança
Em 4 de setembro de 2014, exatos 24 anos depois da abertura da vala clandestina de Perus, os governos federal e municipal de São Paulo anunciavam a retomada dos trabalhos de análise das ossadas de Perus, em articulação que envolveu ainda a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, a Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), responsável por instalar um centro de arqueologia e antropologia forense. O trabalho tem participação de técnicos peruanos – uma equipe de peritos argentinos deixou o processo após discordâncias sobre procedimentos.
Parte do material continua no Araçá. Pelo menos 40% do material foi levado para um endereço não revelado na zona sul de São Paulo. Ali, 17 técnicos, entre antropólogos, arqueólogos e outros especialistas, trabalham em tempo integral. Nos três últimos meses de 2014, foram analisadas 112 caixas – em 26, havia ossos misturados. Até o início de fevereiro deste ano, os técnicos haviam analisado 144 ossadas. Três tinham lesões compatíveis com armas de fogo, segundo o coordenador científico da equipe, o médico-legista Samuel Ferreira, da Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça. As ossadas tinham “diversos tipos de degradação”, que não atrapalhavam os exames iniciais, para determinar, por exemplo, sexo, idade e altura./
As autoridades admitem que o estado das ossadas poderá ser empecilho para uma efetiva identificação. “Não é certo que identifique. Colocaram essas ossadas em condições deploráveis. Vamos trabalhar de todas as formas possíveis para que a gente possa chegar a um resultado”, diz o secretário-adjunto municipal de Direitos Humanos e Cidadania, Rogério Sottili. “Temos uma avaliação de que nunca se chegou tão perto da identificação. Temos recursos, e determinação política das três esferas (prefeitura, governo federal e Unifesp).”
A ressalva sobre as dificuldades também evidencia uma preocupação com os familiares de mortos e desaparecidos e políticos que acompanham o trabalho e têm uma compreensível desconfiança, passados quase 25 anos de decepções. “É fundamental a gente reconhecer publicamente o papel histórico dos familiares. Inclusive para localizar a vala. Desde então, eles não descansaram um minuto”, diz Sottili.
Ieda Seixas é cética em relação aos resultados, mas torce. Embora considere importante o que a pessoa fez em vida, acredita que se trata de uma questão especial para as famílias, que esperam poder sepultar seus mortos. “Essa questão do enterro é fechar um ciclo.” Seu irmão Ivan tem mais esperança: “O trabalho está sendo muito criterioso. Acho que só não vai identificar se a ossada do desaparecido não estiver ali”.
O processo de DNA deve começar no segundo semestre e ir até o final de 2016. Essa etapa será feita no exterior – pela quantidade, justifica o governo –, mas segundo a ministra de Direitos Humanos, Ideli Salvatti, não será preciso esperar se houver “fortes indícios” de que uma ossada seja de um desaparecido.
A procuradora da República Eugênia Gonzaga comemora a criação de um centro de antropologia e arqueologia forense. “É uma demanda muito antiga. Temos excelentes profissionais, mas ainda não havia uma estrutura dessa maneira. Estamos conseguindo fazer com que esses trabalhos saiam desse cenário de IML, polícia.” Ela espera por outras descobertas a partir da análise da documentação do cemitério.
Joaquim Seixas é considerado o primeiro desaparecido a ser enterrado em Perus. Seus restos mortais foram levados para o Rio de Janeiro e trazidos de volta quando dona Fanny morreu, em 1993. Hoje, os dois estão juntos no cemitério de Congonhas.
Um drama atual
A questão dos desaparecidos políticos em Perus e outros cemitérios evidencia uma política do Estado, mas o problema, com outra dimensão, é atual e faz parte do cotidiano de muitas pessoas que enfrentam o drama de ter alguém da família desaparecido.
O professor Carlos Botazzo, da Faculdade de Saúde Pública da USP, constata a permanência de uma prática que agrava o problema, ao observar que uma delegacia pode recomendar à família uma espera de dez dias em caso de desaparecimento de uma pessoa. Mas o IML, responsável por atestados em casos de mortes violentas, enterra corpos não reclamados após três dias.
Isso acontece também com o Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), para onde, por meio de convênio com a Faculdade de Medicina da USP, são encaminhados os corpos de pessoas que morreram de causas não violentas. Segundo divulgou em 2014 o Ministério Público de São Paulo, desde 1999 aproximadamente 3 mil pessoas foram sepultadas em vala pública como “indigentes” ou “não procuradas”. Muitas tinham sido reclamadas via boletins de ocorrência, e algumas portavam documentos ou telefones de contato.
Desde 2013, a Procuradoria paulista integra o Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (Plid), criado pelo MP do Rio de Janeiro. O programa consiste de um cadastro de desaparecimentos organizado a partir de diversas fontes de dados.
O ex-vereador Ítalo Cardoso lembra que a CPI sobre o caso Perus deixou algumas recomendações para tentar melhorar essa situação. Por exemplo, criar um banco de DNA para ajudar nas identificações dos considerados indigentes e descaracterizar os funcionários do IML como agentes da polícia. “Deveríamos aproveitar o momento para avançar nisso”, afirma, ao constatar que ainda existem muitos cemitérios clandestinos em São Paulo.
Publicado em Rede Brasil Atual