As polêmicas atuais sobre a Questão Partido – A crise “orgânica”
(…) Outro modo de desenvolver a teoria de Partido, além de sua teoria, é enfrentar as polêmicas atuais sobre a questão. Polêmicas que invocam também reflexões sociológicas sobre a realidade das classes sociais, suas vivências, relações e lutas.
O movimento da esquerda em geral vive sob a injunção de uma crise e isso afeta as convicções ideológicas e as motivações militantes. Marta Harnecker a sistematiza como uma crise programática e uma crise orgânica, tendo por base uma crise teórica. São formulações que estimulam o debate, embora ela conclua pela ausência de centralidade do proletariado como sujeito do processo transformador do tempo presente.
Nas elaborações do PCdoB, a matriz é a crise da teoria revolucionária, que precisa se desenvolver para dar conta dos novos fenômenos contemporâneos e repensar sua própria experiência.
Nessa perspectiva, a “crise orgânica’’ tem a ver com dois aspectos centrais:
1) A negação do que é entendido como paradigma da revolução social das primeiras experiências socialistas: partidos comunistas como monopólio da representação dos trabalhadores, organizações sociais como correias de transmissão, caminho revolucionário tendo por centro as crises revolucionárias (condições objetivas sempre maduras como pano de fundo), mudanças reais só a partir da tomada do poder político, partidos centralizados, ditos autoritários. O que foi resposta genial de Lênin ao tempo próprio, estaria engessado hoje, sob forma de rústico messianismo;
2) A realidade econômica, política e social contemporânea, e seu impacto na consciência, relações e identidades sociais de classes. Por um lado, a reestruturação produtiva do capitalismo e seu impacto no chamado mundo do trabalho, a complexificação e heterogeneidade das estruturas e relações sociais, onde a polarização social assume forma bastante heterogênea, afetando as identidades de classe. Por outro lado, a hegemonia da democracia liberal, a “mercantilização” da política, o império do mundo das finanças e o monopólio dos grandes meios de comunicação ditando rumos políticos, como aparelhos privados de hegemonia, de grande alcance. Não se pretende aqui uma explanação extensiva do tema, ainda pouco desenvolvido pelos comunistas, mas tão somente indicar a necessidade também de estudos sociológicos acurados para captar essa realidade.
Produz-se uma crise da representação política e esvaziamento da participação política. Desdobra-se num questionamento dos partidos políticos enquanto instrumento de mediação entre os interesses em conflito, da articulação de um projeto avançado de mudança social, e a questão do poder político. Agregado à crise do socialismo, é particularmente referido como crise do movimento comunista.
Evidentemente isso impacta as motivações militantes. Tome-se como parâmetro indireto disso alguns fenômenos, apenas como exemplos. Durante a década de 90 registrou-se no país enorme ascensão dos cultos religiosos evangélicos, particularmente entre as camadas mais populares. A mudança de paisagem que isso constituiu, particularmente nas periferias dos grandes centros foi inequívoca, com templos substituindo edificações que outrora foram fábricas e cinemas. Isso é expressão de outros tipos de sociabilidade e, por outro lado, de afastamento da política – e portanto de eventual militância política de qualquer tipo. Em São Paulo, uma pesquisa nesses anos mostrava inversão estatística entre pessoas que referiam pelo menos um membro da família com filiação partidária – que despencou fortemente – e com filiação e culto religioso, que cresceu.
Outro indicador indireto é o crescimento do chamado terceiro setor. Alegando a lógica “nem estado, nem mercado”, trata-se de entidades voltadas fortemente para o combate à exclusão social. Denominação genérica e sem consenso, abarca desde administrações de hospitais e universidades até ONGs que defendem direitos de todo tipo, associações religiosas que cuidam de crianças, entidades que preservam orquídeas e até grupos de fãs de artistas.
Pesquisa do IPEA e IBGE (publicada na FSP, 6 de dezembro de 2005) mostrou que a evolução do terceiro setor no Brasil, de 1996 a 2002, foi de 136,2% no total de entidades, alcançando 275.895. As de maior incremento foram as de proteção do meio ambiente e da vida animal (309%), bem como de desenvolvimento e defesa de direitos (302%). Embora a maioria seja de pequeno porte, empregam 1,5 milhão de assalariados no total, sendo que 7% do total têm dez ou mais empregados. O prêmio Empreendedor Social 2005 registrou o Brasil como o segundo colocado em número de inscrições e selecionou oito finalistas cujos projetos beneficiaram mais de 800 mil pessoas em todo o pais, como exemplo de “dedicação e desprendimento”. É inegável que tal forma de participação representou novos modos de militância – não política, mas algumas de caráter bastante progressista e humanista – particularmente nos segmentos de meio ambiente e defesa de direitos, combinando formas assalariadas com voluntariado.
Por outro lado, há uma curiosa inversão aparente de papéis. Movimentos sociais assumem funções de partido político – mesmo negando-os em palavras –, com projeto e ideologia menos ou mais desenvolvida, normas organizativas e místicas próprias. Enquanto isso, muitos partidos pretendem esconder seu papel, assumindo formas de movimentos, inclusive nos nomes, como o “PODEMOS”, ou “Primeiro Justiça”, como que querendo contornar seu caráter de partido político.
Entretanto, não se está falando aqui de política e partidos políticos em geral, mas de partidos de caráter transformador e classista, revolucionários, marxistas. Construir uma força assim é ainda mais difícil. Envolve não apenas uma teoria avançada, linhas políticas ajustadas, como também convicções ideológicas, motivações militantes, de servir aos trabalhadores, ao povo e à pátria. Enfim, um caráter militante, empenho de energias de homens e mulheres convictos da exigência de dedicar-se à luta política e social como meio de mudar a sociedade, o que invoca considerar a Política como forma elevada da consciência social. Pode-se dizer que essa é uma das tarefas mais complexas de nosso horizonte histórico, indispensável para abrir caminho a uma nova sociedade.
Na práxis real de nosso tempo isso tem assumido formas concretas muito variadas. Partidos Comunistas, num tempo de defensiva estratégica, procuram resistir, persistir em sua identidade, acumulando forças, respondendo de forma mais ou menos ativa às novas condições estratégicas da luta que travam. De outra parte, muitas forças políticas revolucionárias adotam a forma de frentes políticas, com os comunistas atuando no seio de amplas coalizões eleitorais – como no caso da Frente Ampla no Uruguai – que muitas vezes assumem governos, ou mesmo em frentes de caráter estratégico, como a Frente Farabundo Marti em El Salvador. Frentes que na década de 70-80 assumiram a forma de movimentos armados na América Latina, hoje buscam pela via eleitoral a expressão principal e têm aberto caminho por essa via a novo processo de atuação política. Isso põe em questão a necessidade de se integrar de forma plena à luta política, que assumiu forma concentrada da disputa política via eleitoral. Enfim, águas represadas buscam formas de dar vazão ao processo de acumulação de forças nas novas condições estratégicas. Evidentemente, isso impacta a forma-partido, seu papel, caráter, funções e formas organizativas,
Por isso o tema Partido deve ser alvo de exame mais sistemático, em seu desenvolvimento teórico, de ação política, de massas, e mesmo em sua dimensão organizativa. Tudo isso deve estar devidamente amparado em estudos sociológicos sobre as características das relações e lutas sociais de nosso tempo e, fundamentalmente, dos caminhos estratégicos da luta, porque em última instância, Partido revolucionário responde à estratégia. Esse o sentido mais profundo da idéia de que organização serve à política. Um pensamento de modelo único, dogmático ou rígido nesse terreno responderá de forma disfuncional às exigências e, por outro lado, retroceder de fundamentos, perder a identidade comunista, levará o partido comunista a se perder no pragmatismo. É importante chamar a atenção para isto: pela “esquerda” ou pela “direita”, ambas as respostas representam tendência oportunista.
Para os fins do debate do segundo ponto do nosso tema, que é o das polêmicas atuais sobre a questão de Partido, deve-se ressaltar uma vez mais que isso representa a eterna reposição do tema da consciência revolucionária, do sujeito histórico social central, e do tipo de partido político necessário para a luta revolucionária. Mas deve-se ser capaz de fazer a análise crítica da crise do socialismo, que representou um poderoso laboratório de acertos e erros. Porque daí partiu o aprofundamento da crise de perspectivas, da qual a crise orgânica é uma de suas manifestações. O tema da próxima coluna é precisamente o da degenerescência dos Partidos Comunistas como fator da crise do socialismo.
Publicado em 9/2/2007