A relação Partido-Movimentos
Já se disse que o enfrentamento das polêmicas atuais sobre a questão é modo de desenvolver a teoria de partido. Esse desenvolvimento precisa ser permanente, na concepção e prática, porque é a própria realidade que está em permanente renovação. É a condição presente para enfrentar as pressões atuais sobre o papel dos partidos políticos, particularmente os de sentido classista e transformador. Isso invoca examinar as relações e conflitos sociais da atualidade, que dão ensejo a novos sujeitos e novos padrões de consciência e luta, e adequar o partido à singularidade do tempo, em funcionalidade com seu pensamento estratégico para o presente.
O mais saliente nesse debate tem sido a relação partido-movimentos. É o principal debate presente na esquerda, hoje. Numerosos pensadores inclinam-se, em variadas medidas, a novos sujeitos sociais e a novas apologias de espontaneísmo. No interior do Fórum Social Mundial se teoriza sobre o assunto, buscando dar corpo a uma estratégia de movimentismo. Alguns partidos comunistas inclinam-se mais ou menos decididamente nessa direção; outros perseveram nos fundamentos, resistindo sobre o caráter do Partido Comunista e suas características fundamentais, mas sob a pressão de permanecerem entrincheirados face à realidade dos movimentos sociais. Outras experiências originais – mantida a saudável ortodoxia – vão sendo feitas por variadas forças comunistas que resistem e buscam retomar alternativas avançadas. Nos países socialistas a questão não se pôs fortemente ao nível de reflexão e elaboração.
No pensamento e prática de Lênin há uma relação dialética, e não de pura e simples oposição, entre movimento e partido, entre espontaneidade e consciência. Mas é clara a necessidade de um partido político, que realize a síntese e mediação entre os interesses em confronto e um projeto político de poder para uma nova sociedade. Nas palavras de Gramsci, retomando Lênin, um partido assim precisa realizar a unidade entre espontaneidade e direção consciente.
Há tons forçados no debate sobre a relação partido-movimentos, sobretudo “do lado de lá”, particularmente contra o que representa o partido comunista. Há exigência, “do lado de cá”, de um diálogo crítico, afirmando a prevalência da necessidade de uma consciência revolucionária e perspectiva programática transformadora, papel essencial dos partidos, mas penetrando com eles no real, relacionando-os com as formas de consciência espontânea e semi-espontânea que vão se repondo. O Partido não se contrapõe a movimentos (pelo contrário se alimenta deles); contrapõe-se, sim, a uma determinada estratégia política, a do movimentismo, em oposição e substituição ao papel dos partidos políticos dos trabalhadores.
Trata-se aqui de novas formas de apologia ao espontâneo, de negação da política como forma elevada da consciência social e transformadora. A forma que tem assumido, particularmente a partir desse grande fenômeno do tempo que é o Fórum Social Mundial, tem sido a negação aberta da luta pelo poder político, a emergência de novos sujeitos sociais em lugar da centralidade do trabalho e do proletariado, a negação dos partidos de vanguarda do proletariado e sua centralização organizativa. Essencialmente, é uma tentativa de reação ao que representam os partidos ou frentes de tipo revolucionário. Essa estratégia movimentista se apoia na ideia de “mudar o mundo sem tomar o poder”, a partir de um discurso libertário, soi disant “pós-marxista”. Seus epígonos podem ser encontrados no Zapatismo, na obras de Toni Negri e Michal Hardt, John Holloway, Richard Day, Michael Albert. Segundo um dos epígonos do Fórum, Chico Whitaker, são necessárias “lógica de redes, não a lógica piramidal”. Contudo, ressalte-se, é produto de procura de respostas frente aos novos padrões de reprodução da exploração e dominação capitalistas, vale dizer, padrões modificados das relações sociais e da luta de classes na atualidade, cuja investigação não pode ser recusada.
Por outro lado, nesse diálogo crítico, há que considerar a exigência de o Partido, em sua estrutura e ação, refletir melhor os conteúdos, formas e desenvolvimentos das relações sociais do presente, seus sujeitos e conflitos concretos de classes e estratos, com vistas a dar consequência a seu pensamento estratégico. Isso aponta para novos papéis, caráter, feições e características de estruturação do partido dos comunistas. Entretanto, não se trata de ficar refém da consciência espontânea, que não abre perspectivas de uma nova sociedade, ou permanecer no campo do doutrinarismo sectário, sem adesão de classe por parte dos trabalhadores.
O modelo único de Partido, oriundo do código da 3ª. Internacional, é pouco funcional aos dias de hoje, reflete de modo cada vez mais imperfeito os conteúdos e formas das relações sociais e da luta de classes, e mesmo das exigências da vida interna do Partido. Fala-se aqui particularmente de noções datadas como as das “correias de transmissão”, que punha em questão a necessária autonomia dos movimentos sociais, ou a noção de “assalto aos céus” como modelo estratégico geral, desconhecendo, na prática, a longa e tormentosa batalha pela hegemonia das ideias, antes, durante e após a tomada do poder político. Fala-se também, como já foi analisado na experiência de degenerescência do Partido Comunista na primeira experiência socialista a partir da URSS, da deformação prática de um partido em substituição à classe ou a fusão Partido-Estado.
O PT constituiu importante paradigma diante dessas questões. Na medida em que recusa abertamente o inventário da luta revolucionária do século XX, com seus êxitos, vicissitudes e derrotas, resta relativamente desarmado para fazer frente às intempéries da luta de classes em suas múltiplas dimensões, como o atesta a prática destes últimos anos. Mas isso é tema para uma coluna específica.
Vista de conjunto, para os comunistas essa reflexão aponta para uma atualização de concepções e práticas de Partido, mantida a noção central de um partido de compromisso militante, de unidade ideológica e política e de classe. A questão de fundo é que se abriu terreno para examinar a questão do partido político do proletariado em sua autonomia relativa dentro do corpo teórico do marxismo e do leninismo. É matéria que exige permanente desenvolvimento da teoria e prática, que não está codificada e confinada a um receituário pronto e acabado. Isso é alvissareiro: convoca a todos e todas a dar desenvolvimento dos variados componentes da matéria – da teoria e concepção de partido, da ação política e de massas, das normas e valores militantes, o mergulho na realidade social, e a atualização de um pensamento programático e estratégico consentâneo com as exigências deste tempo.
Como disse um dirigente do PC (M) da Índia, podemos pensar erguendo-nos sobre os ombros de Lênin, para enxergar mais longe e vastamente, mas não com sua cabeça pois ela cessou de trabalhar e estava voltada para seu tempo. Temos que pensar com nossas próprias capacidades e experiências, aproveitando o proveitoso legado que ele nos deixou.
Publicado em 23/2/2007