Aproximam-se as comemorações dos 70 anos do final da Segunda Grande Guerra Mundial. E, novamente, vem à baila a questão: quem teria sido o culpado pela sua eclosão? O revisionismo histórico liberal-conservador, aproveitando-se da defensiva estratégica do movimento comunista, logo apontou o seu dedo em direção ao governo soviético. Este, juntamente com a Alemanha hitlerista, teria sido o responsável pelo início daquele conflito de proporções planetárias ao assinar o pacto de não-agressão no dia 23 de agosto de 1939. Essa distorção brutal dos fatos ganha ares de verdade. Há várias décadas, Ivan Maiski, ex-embaixador soviético em Londres, alertava contra tal calúnia. Escreveu ele: “A falsificação aqui é dupla. Primeiro, são inteiramente adulterados os acontecimentos da Primavera e do Verão de 1939. Segundo, eles são tomados isoladamente, sem ligação com o passado, no qual têm sua origem, ficando, assim, incompreensíveis”. Qual seria, então, o passado – ou os antecedentes – do “pacto de não-agressão” entre a Alemanha e a URSS?

A ascensão de Hitler e a Frente Popular

Após a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, em janeiro de 1933, a Internacional Comunista (IC) começou lentamente a romper com as concepções esquerdistas e sectárias que predominavam no seu interior. Até aquele momento, por exemplo, ela considerava a socialdemocracia como o braço esquerdo do fascismo. A partir de 1934 os comunistas passaram a defender a constituição de frentes únicas, envolvendo a esquerda e setores liberal-democráticos, contra o nazi-fascismo em expansão. Nascia, assim, a política de frentes populares.

A nova conjuntura internacional, favorável ao fascismo acarretou uma mudança na política externa soviética e levou-a a se aproximar das democracias burguesas, especialmente da Inglaterra e da França. Uma operação nem sempre fácil de realizar devido ao anticomunismo arraigado nas classes dominantes daqueles países. Contudo, o medo da ascensão – econômica e militar – da Alemanha conduziu alguns elementos mais esclarecidos da burguesia a deixar de lado a ojeriza que sentiam pelo poder soviético.

Visando a romper seu isolamento e atendendo a um pedido francês, a URSS ingressaria na Liga das Nações. A Alemanha e o Japão já a haviam abandonado justamente para implementar, com mais desenvoltura, suas políticas guerreiras. Como disse Maiski: “Isso colocava à disposição da URSS a tribuna internacional mais importante da época para fazer sua defesa da paz e combater o perigo de uma segunda guerra mundial”. Esse foi um período de breve degelo nas relações entre as democracias burguesas ocidentais e a URSS.

Surpreendendo a todos, Anthony Eden, ministro das Relações Exteriores da Grã-Bretanha, visitou Moscou, sendo o primeiro estadista ocidental a fazê-lo. O exemplo foi seguido pelo ministro da França, Pierre Laval.  Finalmente, em maio de 1935, firmou-se um pacto de assistência mútua entre URSS e França. Em seguida, outro acordo foi assinado com a Tchecoslováquia. Parecia que o país dos sovietes estava saindo do seu perigoso isolamento internacional.

A partir de então, as forças políticas mais conservadoras no interior dos governos ocidentais passaram a sabotar as relações dos seus países com a URSS. Na Inglaterra o processo de esfriamento se aprofundou com a ascensão de Neville Chamberlain ao cargo de primeiro-ministro, ocorrida em maio de 1937. Desta data até 1939, quando eclodiu a guerra, predominou a chamada política de “apaziguamento” – ou seja, a realização de concessões políticas e até territoriais a Hitler com a ilusão de que isso o acalmaria e desviaria seus apetites em direção ao Leste.

A Alemanha já vinha desrespeitando o Tratado de Versalhes e se rearmando. O primeiro ato aberto de provocação foi a militarização  da Renânia que, pelo tratado em vigor, deveria se manter como uma região desmilitarizada. A URSS exigiu medidas drásticas dos membros da Liga das Nações. As potências ocidentais se contentaram com simples e inócuos protestos diplomáticos. Nem mesmo uma ameaça de sanção econômica foi aprovada contra o governo de Hitler.

A Espanha, Áustria e Tchecoslováquia sacrificadas

Em julho de 1936, o general Franco organizou um levante reacionário contra a jovem República Espanhola. A Itália e a Alemanha, dirigidas por fascistas, se apressaram em apoiar os golpistas. Enviaram-lhe homens e modernos armamentos. Começava assim uma sangrenta guerra civil que durariam vários anos. Um sinal sombrio do que ainda estava por vir.

O governo legítimo espanhol reclamou a solidariedade das democracias ocidentais. A resposta inglesa, francesa e estadunidense foi aprovar a vergonhosa política de “nãointervenção” que só favorecia os agressores. Apenas a URSS saiu em socorro da República Espanhola. A esquerda mundial, encabeçada pelos comunistas, organizou as legendárias Brigadas Internacionais visandoa combater as tropas fascistas na Espanha. Essa foi uma das páginas mais belas do internacionalismo proletário no século 20.

Enquanto dezenas de milhares soldados italianos ainda combatiam ao lado de Franco para derrubar o governo constitucional, a Inglaterra assinou um tratado de amizade com Mussolini. Este acordo, além de cuspir sobre a farisaica política de nãointervenção, ainda acabava por reconhecer a ocupação na Etiópia realizada alguns anos antes sob protesto inócuo da Liga das Nações. 

No mesmo ano, 1938, Hitler anexou a Áustria ao 3º Reich. Novamente as potências ocidentais responderam à agressão militar com simples protestos protocolares. O governo soviético lançou uma declaração conclamando a cooperação internacional contra a ofensiva nazista: “A presente situação faz avivar em todos os Estados pacíficos, e em particular nas grandes potências, o problema de sua responsabilidade pelo destino dos povos da Europa, e não só da Europa. O governo soviético está consciente da parte da responsabilidade que lhe corresponde e posso declarar que está disposto, como antes, a participar de ações coletivas que tenha por finalidade deter o desenvolvimento da agressão e eliminar o crescente perigo de uma nova guerra mundial”. A resposta da França, Inglaterra e Estados Unidos foi o silêncio. Um silêncio eloquente.

Com as mãos livres, Hitler se tornou ainda mais ambicioso. Dois meses depois da anexação austríaca, tropas alemãs se concentraram nas fronteiras da Tchecoslováquia. O führer agora exigia todos os territórios habitados por descendentes de alemães. Nessas regiões, grupos nazistas provocavam desordens e confrontos armados com a polícia visando a criar pretexto para a invasão.

Dessa vez as coisas pareciam se complicar para Hitler, afinal a França tinha um pacto de assistência mútua com a Tchecoslováquia, e a Inglaterra com a França. A URSS – conforme estabelecia o pacto assinado anos antes – se comprometia em apoiar militarmente a Tchecoslováquia caso a França também o fizesse. Mas, o Ocidente não estava disposto a ir à guerra por um pedaço sem importância da Europa.
Um editorial do Times, porta-voz do conservadorismo inglês, daria o tom da capitulação ocidental diante de Hitler. Ele sugeria que para resolver a crise internacional e evitar a guerra os tchecos deveriam abrir mão de uma parte de seu território. Era preciso apaziguar os nazistas dando a eles o que queriam e os direcionando para o Leste, rumo à URSS. Assim pensava parte significativa dos liberais ocidentais.

Em 15 de setembro de 1938, Chamberlain encontrou-se com Hitler. Ouviu as reivindicações descabidas do ditador e as aceitou. Passou então a pressionar os tchecos que, sem alternativas, foram obrigados a ceder. Alguns dias mais tarde, O chanceler alemão disse aos ingleses estupefatos que as concessões feitas eram agora insuficientes. Ele queria mais territórios. O governo inglês novamente capitulou, mas, dessa vez, não encontrou a mesma receptividade dos tchecos. Hitler então ameaçou com a guerra imediata.

Poucos dias depois – entre 29 e 30 de setembro –, os governos da Alemanha, Itália, Inglaterra e França se reuniram numa conferência em Munique e firmaram um vergonhoso tratado. Através dele a Tchecoslováquia deveria ceder a região dos sudetos, com todos os bens neles existentes. Ao saber dos resultados, exclamou Edouard Benes, presidente da Tchecoslováquia: “fomos abandonados”. Na verdade foram traídos pelas potências ocidentais. A multidão chorava e protestava pelas ruas de Praga. Mas, segundo o ingênuo Chamberlain, a paz estava salva.

Passados seis meses dos Acordos de Munique e da anexação dos sudetos, a Alemanha ocupou todo o território da Tchecoslováquia e o dilacerou. A Eslováquia foi declarada “independente” eoutraregião foi entregue à Hungria, governada pelo fascista Horthy. Mais uma vez o que se viu foi a covardia dos governos britânico e inglês. Em ato contínuo, Hitler exigiu a cidade polonesa de Dantzig, atual Gdansk. A fome territorial do führer parecia não ter fim e a guerra batia à porta da Europa. 

Chamberlain sob a guarda de honra nazista a caminho de ver Hitler

A proposta soviética contra o eixo nazi-fascista

O governo soviético, diante da ameaça de ocupação iminente da Polônia e Romênia, propôs uma conferência emergencial entre os representantes da URSS, Inglaterra, França, Romênia, Turquia e Polônia para debaterem e estabelecerem mecanismos de resistência ao avanço nazista. Contudo, Chamberlain se apressou em dizer que se opunha à formação de blocos militares de países contra outros blocos militares. Portanto, nada de frenteúnica contra a Alemanha e a Itália. A Polônia, governada por reacionários, por sua vez, recusava-sea assinar qualquer acordo com a URSS. Nem mesmo uma declaração conjunta desses países conseguiu ser aprovada. Hitler pressentiu a fraqueza e as vacilações de seus adversários.

Diante das ameaças reais que pairavam sobre Grécia, Polônia e Romênia, a proposta inglesa e francesa foi oferecer garantias unilaterais a esses países. Essa foi a forma encontrada para fugir de qualquer compromisso militar explícito com a URSS. Ironicamente os três países a serem protegidos não tinham fronteiras com a Inglaterra e a França. Dois deles, Polônia e Romênia, as tinham com a Rússia. Sendo assim, todo e qualquer apoio militar efetivo, necessariamente, deveria passar por um acordo com o próprio Stalin.

A URSS protestou contra essas frágeis garantias unilaterais e, em março de 1939, propôs concretamente um pacto de assistência mútua entre todos os países ameaçados. Um ataque alemão a qualquer um, inclusive à Rússia, seria considerado uma agressão a todos e respondido como tal. Essa era a única maneira de barrar o avanço da Alemanha, da Itália e do Japão. Estabelecia a proposta soviética:

“1. A França, a Inglaterra e a URSS prestar-se-ão, mutuamente, ajuda imediata e eficaz, se qualquer uma delas achar-se envolvida em operações militares com uma potência europeia no seguinte casos:

a) agressão dessa potência a qualquer um dos signatários do pacto;

b) agressão dessa potência a Bélgica, Grécia, Turquia, Romênia, Polônia, Letônia, Estônia e Finlândia, países que os signatários se comprometem a defender ante a agressão; e

c) ajuda de um dos signatários do pacto a qualquer Estado europeu (mesmo os não garantidos) que solicite essa ajuda para luta contra a violação de sua neutralidade.

2. No caso de se iniciarem operações militares conjuntas, em virtude da aplicação do pacto, os três países signatários se comprometem a firmar o armistício ou a paz de comum acordo”.

Diante de uma proposta tão clara, só restou aos governos ocidentais tergiversar e tentar protelar qualquer acordo, esperando que Hitler, finalmente, se decidisse a continuar sua marchar para o Leste até a URSS. O anticomunismo atávico não os permitia ver que, naquele momento, a principal contradição era entre o imperialismo anglo-francês e o alemão, e não entre este e a URSS. A política externa francesa e inglesa cavava a própria sepultura.

A situação europeia exigia atitudes rápidas e enérgicas, como propunha a URSS. Isso era tudo o que não queria Chamberlain. Um exemplo da má vontade inglesa foi a decisão de enviar sua delegação para negociar um tratado com os russos a bordo de um navio comum. Alegou-se que as bagagens não caberiam num avião. “Gastaram cinco dias na travessia, em um momento histórico em que eram extremamente importantes as horas e, inclusive, os minutos”, afirmou Maiski. Pior: a delegação enviada, composta por membros do segundo escalão do governo, não tinha autorização para assinar nenhum acordo político ou militar com os soviéticos. A missão inglesa foi uma grande farsa, visando a protelar as negociações.

Em 10 de março de 1939, Stalin pronunciou um duro discurso no plenário do 18º Congresso do PCUS: “Os aliados ocidentais empurram os alemães para o Leste, fazendo-lhes ver que os bolcheviques são presas fáceis (…). Não deixaremos o nosso país ser arrastado nesse gênero de conflito por incendiários cujo hábito consiste em fazer com que outros tirem da brasa as castanhas que eles próprios irão comer (…). A política nãointervencionista significa a convivência e o encorajamento à agressão (…). As potências democráticas abandonaram a Áustria, apesar da obrigação de defender-lhe a independência. Deixaram ao desamparo os sudetos e atiraram a Tchecoslováquia às feras (…) e continuam a incentivar os alemães a prosseguirem em seus avanços cada vez mais para o Leste, como se quisessem dizer: ‘comecem vocês uma guerra contra os bolcheviques e tudo estará bem’”.

A guerra batia às portas da Europa e a situação começou a ficar complicada para o governo da URSS e sua política de defesa nacional. Ele sentia que estava sendo enrolado. Foi aí que surgiu da parte alemã a proposta concreta de um pacto de nãoagressão. Não se tratava de um pacto militar de ajuda mútua, como os soviéticos haviam proposto aos ingleses e franceses. Uma confusão propositadamente feita pelos adversários da União Soviética.

O acordo foi assinado em 23 de agosto e pegou o mundo de surpresa. Ele dava um tempo maior à URSS para que ela se preparasse econômica e militarmente. Stálin sabia que o conflito mundial que se avizinhava, mais cedo ou mais tarde, iria atingir o seu país. Não tinha nenhuma ilusão quanto à longevidade dos acordos com Hitler, mas, prudentemente, queria garanti-lo por um maior tempo possível. A partir de então tudo que pudesse colocar em risco o “pacto de não agressão” com a Alemanha era considerado uma ameaça à própria sobrevivência da União Soviética.  

No dia 1º de setembro, a Alemanha invadiu a Polônia e teve início a Segunda Grande Guerra Mundial. O velho político conservador inglês Winston Churchill escreveu mais tarde: “Não há dúvidas (…) de que a Grã-Bretanha e a França deveriam ter aceitado a proposta russa (…). A aliança da Inglaterra, França e Rússia, em 1939, teria despertado o mais profundo alarma no coração da Alemanha (…). Hitler não ousaria atirar-se numa guerra em duas frentes (…). Se, por exemplo, Mister Chamberlain, tivesse dito, ao receber a proposta russa: ‘sim, unamo-nos os três e torçamos o pescoço de Hitler’ (…) a história poderia ter tido um curso diferente”. Ou seja, para o próprio condutor do imperialismo inglês, os culpados pela eclosão da guerra não foram os russos e sim os governos ocidentais. Se acatadas as propostas soviéticas, pelo contrário, poderia ter sido evitada a tragédia que custou dezenas de milhões de vidas.

O erro do movimento comunista diante do pacto

Duas grandes críticas ainda são feitas ao pacto de não agressão germânico-soviético. A primeira delas é quanto à cláusula secreta que previa a divisão da Polônia. Poucos dias depois da invasão alemã à parte ocidental daquele país, em 17 de setembro, o Exército Vermelho ocupou o lado oriental. Do ponto de vista geopolítico – e estritamente militar – o ato russo tinha sua razão de ser.

As regiões ocupadas foram a Ucrânia e a Bielo-Rússia, que haviam sido arrebatadas da jovem Rússia soviética e entregues à Polônia após a Primeira Guerra Mundial. Por outro lado, a ocupação desses territórios manteria as tropas da Alemanha nazistas numa distância dezenas de quilômetros da fronteira soviética, melhorando as possibilidades de defesa militar do país num futuro – e previsível – conflito com a própria Alemanha.

Outra crítica, esta coberta de razão, é de que o “pacto de nãoagressão” conduziu o movimento comunista internacional a arrefecer a luta antifascista entre 1939 e 1941. O imperialismo inglês e o francês passaram a ser considerados os únicos responsáveis pelo conflito mundial. Isso confundiu, desnorteou e isolou os comunistas em muitos países, facilitando a ação de seus inimigos. Na França, por exemplo, o PCF foi colocado na ilegalidade e tachado de traidor da nação.

O que era justo do ponto de vista da segurança da URSS passou a ser algo incorreto e perigoso quando aplicado mecanicamente nos demais países do mundo, que ainda viviam sob ameaça direta do fascismo. Os partidos comunistas acabaram se subordinando, unilateralmente, aos interesses do Estado Soviético. Não seria a primeira e nem a última vez que isso ocorreria. As consequências dessa atitude foram, na maioria das vezes, negativas para a luta democrática, nacional e socialista. Em junho de 1941, com a invasão da Rússia, esse desvio foi corrido e os comunistas tornaram-se, novamente, a vanguarda  mundial no combate ao nazi-fascismo.

*  Versão de artigo publicado em setembro de 2009 no Portal Vermelho. 

** Augusto Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.