Revolução e Contrarrevolução em Portugal (1974-1976) – Primeira Parte
O 25 de Abril florido … e armado
Poucos minutos após a meia-noite do dia 25 de abril, o locutor da rádio Renascença leu a primeira estrofe e colocou no ar a canção Grândola, Vila Morena, de Zeca Afonso. Uma bela letra que diz: “Grândola, vila morena/ Terra da fraternidade, / O povo é quem mais ordena/ Dentro de ti, ó cidade”.
Ouça a música Grândola, vila Morena no link: https://www.youtube.com/watch?v=Ha-h5bPSxQE
Esta era a senha para o início das operações militares que colocaram abaixo o governo de Marcelo Caetano e, com ele, 48 longos anos de ditadura salazarista. E, então, carros blindados marcharam sobre a cidade de Lisboa. Enquanto isso, as principais rádios eram tomadas pelos oficiais revoltosos. E, dali, os capitães do Movimento das Forças Armadas (MFA) passaram a anunciar o grande objetivo daquela rebelião: acabar com o regime fascista.
As ruas foram tomadas por uma multidão alegre e combativa, composta principalmente de jovens trabalhadores. Cravos vermelhos eram distribuídos pelas floristas aos soldados, e passavam a enfeitar os canos de seus fuzis. A revolução já tinha um símbolo!
Os poucos quartéis ainda leais ao antigo regime renderam-se sem luta. Diz a lenda que um único oficial tomou o aeroporto de Lisboa – pois sua tropa havia se atrasado devido ao trânsito. E que os tanques dos rebeldes respeitavam os sinais vermelhos para evitar que alguém pudesse se machucar. Apenas uma escaramuça na frente da sede da Diretoria Geral da Segurança (DGS), novo nome da PIDE, causou feridos entre os civis. A polícia política portuguesa tinha mais de 20 mil agentes e cerca de 200 mil informantes. Somavam-se a isso os 50 mil membros da Legião Portuguesa, tropa de choque do salazarismo. Esses números comprovam que Portugal era, na verdade, um Estado Policial.
O povo tomou o Largo do Carmo e cercou o quartel onde se refugiava o odiado Marcelo Caetano, ainda protegido pelo que lhe restava da Guarda Republicana. O ditador aceitou renunciar, mas impôs uma condição: “Gostaria de entregar o poder a algum general para que ele não caísse nas mãos da plebe”. Até em seu último ato fazia questão de demonstrar o desprezo que tinha pelo bom povo português. Uma solicitação inaceitável e que acabou sendo acatada pelos oficiais rebelados. O general Spínola foi retirado da sua casa e, depois de uma longa e amistosa conversa, recebeu a rendição de seu ex-chefe. Talvez, neste momento, já tivesse acertado o seu exílio no Brasil, sem julgamento e contra a vontade do povo.
Este foi o primeiro deslize da revolução vitoriosa, que revelava certa insegurança de sua vanguarda militar. Outros erros seriam cometidos na mesma direção. Diante da vacilação do comando do Movimento das Forças Armadas (MFA) e da Junta de Salvação Nacional (JSN) que se formava, os trabalhadores saíram às ruas e foram conquistando o direito de reunião, de manifestação, de imprensa, de greve, e mesmo partidário. O povo cercou as prisões, exigiu a libertação de todos os presos políticos e foi, prontamente, atendido. Afinal, como dizia a canção, “é o povo quem mais ordena dentro de ti, ó cidade”.
Um raio em céu sereno?
O processo de liquidação do regime fascista não foi um raio em céu sereno, como pensam alguns. Essa impressão é o resultado do silêncio criminoso ao qual grande parte da mídia ocidental submeteu aquele pequeno país durante décadas. Algo amplamente favorável ao regime de Salazar e de Marcelo Caetano, fiéis aliados do “mundo livre” contra a “barbárie comunista”. Portugal, afinal, fazia parte da OTAN.
Este mutismo contrastaria com o alarde feito depois de 25 de abril. Muita tinta seria gasta para alertar o mundo sobre os riscos que corria a democracia portuguesa, ameaçada pelo totalitarismo de esquerda. Esse alarido se dava, justamente, quando o país vivia um processo de ampliação da democracia jamais conhecido pelos portugueses.
A queda do regime foi impulsionada pela crise terminal do colonialismo e o início das guerras de libertação nacional na África na década de 1960 (Angola,1961; Guiné-Bissau,1963; e Moçambique,1964). Lutas dirigidas pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), de Agostinho Netto, pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) de Samora Machel e pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), de Amílcar Cabral – assassinado em 1973. Nas colônias a população era duas vezes maior que na metrópole, que tinha 9 milhões de habitantes, e o território 25 vezes maior. O esforço bélico obrigava Portugal a manter um efetivo militar de mais de 120 mil homens – chegando a 200 mil no seu auge. Cerca de dez mil portugueses morreram e mais de 100 mil desertaram durante os 13 anos em que durou o conflito. O país utilizava 40% de suas receitas para sustentar seu decadente domínio além-mar. Isso tudo representava uma sangria injustificada aos recursos do pobre Portugal e fazia com que o descontentamento popular crescesse, atingindo inclusive a jovem oficialidade.
A crise se agravou ainda mais quando o governo, visando a aumentar rapidamente o número de oficiais, criou facilidades de promoção para os conscritos (milicianos) – decretos de julho e agosto de 1973 – em detrimento dos oficiais de carreira. A resposta foi uma série de reuniões de capitães desgostosos e a elaboração de manifestos e de abaixo-assinados. Em dezembro seria formada uma coordenação daquilo que passou a ser denominado Movimentos das Forças Armadas (MFA).
Aparentemente, o movimento da oficialidade nasceu com o objetivo modesto – e nada revolucionário – de resgatar o prestígio das Forças Armadas, abalado pelas guerras coloniais –, mas rapidamente se politizou e se radicalizou chegando à conclusão de que era necessário colocar um fim ao regime. Talvez uma das explicações para essa rápida mudança esteja no fato de que muitos de seus participantes já tinham contatos com ideias avançadas, inclusive socialistas.
Existiam também as contradições internas – que eram potencializadas pela crise do colonialismo e de um regime envelhecido. Em 1970, vencendo a repressão patronal e do governo, os operários organizaram a Intersindical, dirigida pelo Partido Comunista Português (PCP). Várias greves eclodiram entre o final de 1973 e início de 1974. Nelas participaram mais de 100 mil trabalhadores – um número significativo para um pequeno país.
Os estudantes universitários também paralisaram suas atividades. Em abril a maioria das universidades ainda estava fechada. O movimento sindical e popular, em ascensão, já anunciava um grande 1º de Maio vermelho. Assim, o campo já estava semeado para a eclosão de um processo revolucionário. Faltava apenas um elemento catalisador. Este foi, justamente, o papel desempenhado pelo golpe efetuado pelos jovens oficiais do MFA.
Spínola e o governo provisório
No dia 26 de abril apareceu triunfante a Junta de Salvação Nacional (JSN), composta por generais e presidida por Antônio de Spínola. Nas sombras, por decisão própria, permaneceram os verdadeiros artífices do levante de 25 de abril: os capitães do MFA. As consequências desse erro logo se fariam sentir. Para o povo, em geral, parecia que o velho general havia sido o principal comandante da libertação e ele utilizou amplamente esta ilusão para se fortalecer no poder, isolar os oficiais do MFA e preparar um golpe de Estado de tipo bonapartista.
Quem, afinal, era o general Spínola? Ele havia sido vice-chefe do Estado-Maior e comandara, por algum tempo, o exército português na Guiné. Um homem de confiança do antigo regime, pelo menos até o final de 1973. Num passado não muito distante havia combatido ao lado dos franquistas na Guerra Civil espanhola e participado do cerco nazista à heroica cidade soviética de Leningrado. O seu nome chegou a constar dentre aqueles que seriam agentes da PIDE. Credenciais nada recomendáveis para quem comandaria um governo que se propunha democrático, popular, com sentido socialista.
Contudo, nos momentos finais do regime, publicou o livro Portugal e o futuro, no qual fez críticas à condução da guerra colonial e defendeu uma saída política para o conflito. Advogou uma independência gradual, controlada, e até mesmo uma integração das colônias numa grande confederação lusitana. Esta, por sinal, era a proposta de parte significativa da burguesia portuguesa.
O seu livro vendeu 50 mil exemplares apenas num dia, esgotando toda a primeira edição. Marcelo Caetano se sentiu traído pelo seu antigo colaborador e, em 15 de março de 1974, o destituiu das funções de comando. No dia seguinte, eclodiu o levante do regimento de Caldas da Rainha, comandado por oficiais ligados a Spínola. Revolta essa rapidamente derrotada. Este fato criou as condições para o estabelecimento de uma aliança entre os jovens capitães revolucionários e o general recém-ingresso na oposição.
Segundo os “capitães de abril”, a inclusão dos generais Spínola e Costa Gomes no governo visava a dar mais confiabilidade ao MFA diante do conjunto da oficialidade e da “comunidade internacional” – entenda-se sistema capitalista. Era preciso debelar o fantasma da anarquia que poderia ser utilizado pelos setores mais reacionários. Mas, essa aliança levou à desradicalização do programa inicial dos capitães, que Spínola fez questão de alterar em vários pontos, como os referentes à descolonização e à demolição completa e imediata do Estado policial fascista.
A primeira grande desavença entre Spínola e os capitães foi quanto à indicação do primeiro-ministro. Os jovens oficiais queriam alguém mais próximo deles, mas o presidente indicou o jurista conservador Adelino da Palma Carlos. Também colocou nomes de sua confiança em cargos importantes na administração e nas chefias das tropas. Spínola – enquanto presidente da Junta de Salvação Nacional – também mandaria soltar e enviar para o Brasil Marcelo Caetano e Américo Tomás, sem discutir essa decisão com a MFA.
Nos dias que se seguiram ao vitorioso levante, chegaram os dois principais líderes da oposição civil: o socialista Mário Soares e o comunista Álvaro Cunhal. Este último era um verdadeiro mito da esquerda portuguesa. Aprisionado em 1949, realizou uma espetacular fuga da inexpugnável fortaleza de Peniche em 1960. Conta a lenda que teria sido resgatado em pleno mar por um submarino soviético.
O PCP era considerado a esquerda do movimento comunista internacional vinculado à URSS. Cunhal, por exemplo, olhou com desconfiança as teses de coexistência e transição pacíficas aprovadas no XX Congresso do PCUS, realizado em 1956. Passou – particularmente após o VI Congresso do PCP (1965) – a advogar uma saída revolucionária para a situação portuguesa. Chegou mesmo a criar em 1970 um braço militar: a Ação Revolucionária Armada (ARA), que realizou inúmeras ações de sabotagens contra o esforço bélico português na África. As mais famosas foram o bombardeio do navio Cunene, o ataque à sub-sede da Otan e ao quartel da aeronáutica em Tancos, destruindo 28 aeronaves. As ações armadas foram suspensas em maio de 1973.
O povo é quem mais ordena
Os comunistas haviam definido a revolução portuguesa como democrática e nacional, cujos objetivos essenciais seriam: a derrubada da ditadura fascista; a liquidação dos monopólios e dos latifúndios; o fim da guerra colonial na África e da dominação imperialista sobre o país; e, por fim, a melhoria das condições de vida do povo português. Acreditava – ao contrário dos liberais oposicionistas – que era preciso não somente eliminar o regime fascista, mas também as bases econômicas e sociais que lhe davam sustentação.
O Partido Comunista Português (PCP) e o Partido Socialista (PS) passaram a compor o primeiro governo provisório, encabeçado por Spínola e Palma Carlo. Cunhal foi indicado ministro sem pasta e seu camarada Avelino Pacheco Gonçalves, líder bancário, escolhido para o Ministério do Trabalho. O socialista Mário Soares, por sua vez, assumiu o importante Ministério de Relações Exteriores. O Partido Popular Democrático (PPD), de centro, também participou do governo e logo se ligou ao general Spínola.
Naqueles primeiros dias cabe destacar a ativa participação do povo. Foi este que impulsionou os capitães para o cumprimento integral do seu programa e mesmo sua radicalização. Ele não se submeteu ao ritmo e à direção que tentava impor Spínola à revolução.
Quando irrompeu o levante militar, as massas populares não acataram o pedido dos seus “libertadores” para que permanecessem calmas em suas casas. Elas saíram às ruas para apoiar os soldados. Isso lhes deu mais confiança e ajudou a neutralizar aqueles que ainda estavam do lado do regime que desabava.
Enquanto Spínola falava em corrigir os excessos do PIDE – chegando mesmo a indicar um novo diretor para ela –, e buscava dificultar a libertação dos presos políticos envolvidos em ação armada, a massa invadiu os quartéis e libertou todos os prisioneiros. Em seguida, passou a caçar os detestados agentes da repressão. Não havia porque corrigir os excessos de algo que já não mais existia pela ação insurgente do povo português. Apenas a Guarda Nacional Republicana (GNR) permaneceu de pé, embora saneada dos elementos fascistas.
O primeiro programa do MFA falava apenas na formação de associações políticas, embriões de futuros partidos. Por isso, Spínola tentou impedir a todo custo que o PCP fosse legalizado e aparecesse com a sua fisionomia própria. Ele solicitou a Álvaro Cunhal que não se publicasse o jornal Avante!, como órgão oficial do partido, e nem se ostentassem bandeiras vermelhas com a foice e o martelo nas manifestações. Ou seja, que os comunistas não aparecessem publicamente enquanto não fossem oficialmente legalizados – se fossem. No entanto, as bandeiras vermelhas dos comunistas e de outras organizações de esquerda já haviam tomado as ruas. O povo não precisou de autorização oficial para legalizar, na prática, os seus partidos.
O crescimento da luta de classes e a reação patronal
No 1º de Maio de 1974 realizou-se a maior manifestação que Portugal havia visto, organizada pela Intersindical. Reuniram-se cerca de 1 milhão de pessoas. Os dirigentes dos dois principais partidos de esquerda ocuparam a tribuna de honra e foram ovacionados. Lado a lado estavam Álvaro Cunhal e Mário Soares. O 1º de Maio completou o “25 de abril”, dando-lhe uma cara mais operária e popular. A Revolução dos Cravos foi uma revolução suigeneris, como afinal são todas as revoluções. Ela começou como um levante militar que logo, pela ação das massas, se transformou numa verdadeira revolução.
A quebra das algemas do salazarismo e a criação de um ambiente de maior liberdade fizeram com que as demandas sociais viessem à tona com maior força. Eclodiram centenas de paralisações. Os comunistas, agora no governo, adotaram uma política de conter essas greves. Segundo eles, “as greves injustificadas punham a revolução em perigo” e favoreciam os fascistas, que desejavam o caos da economia. O esforço comunista não deu muito resultado, pois as greves continuaram.
Contudo, o novo governo buscou atender a parte das demandas dos trabalhadores e aprovou uma série de medidas sociais importantes. Estabeleceu-se um salário mínimo nacional de 3.300 escudos – o que representava para 60% dos trabalhadores um reajuste de 24% nos salários. Dobrou o valor das pensões destinadas à velhice. Congelou os preços dos aluguéis e de alguns produtos de primeira necessidade. Reduziu a jornada de trabalho, estendeu as férias para 30 dias e criou um adicional para elas, estabeleceu a licença maternidade de 90 dias. Os grandes beneficiados desta política social foram principalmente as mulheres e os trabalhadores menos qualificados.
Afrouxou-se a ditadura patronal no interior do local de trabalho. A democracia avançou para dentro das fábricas, com a garantia de liberdade de organização sindical. Formaram-se centenas de comissões operárias de base.
Os patrões responderam a tais medidas com boicotes na produção e demissões massivas. Várias empresas nacionais e estrangeiras fecharam suas portas. Eram alegados como motivos: o aumento dos salários, a ampliação dos direitos dos trabalhadores, a instabilidade política, a ameaça à rentabilidade das empresas e a própria insegurança quanto à manutenção do estatuto da propriedade privada em Portugal. A produção não podia ir bem enquanto a livre empresa estivesse ameaçada, diziam os burgueses descontentes. Muitos socialistas engrossaram esse coro.
Divulgou-se um boato sobre uma possível contaminação dos vinhos produzidos em Portugal, o que ocasionou a suspensão das compras por muitos países. O capitalismo mundial tentava sufocar a revolução de todas as maneiras: suspendia os investimentos, retirava ilegalmente seus capitais, boicotava as exportações portuguesas. A resposta dos trabalhadores foi ocupação das empresas abandonadas e o estabelecimento do controle operário.
Esses ataques ocorriam em meio a uma das maiores crises vividas pelo capitalismo desde 1929. A taxa de crescimento do PIB português caiu de 11,2%, em 1973, para 1,1% em 1974 e para -4,3%, em 1975. Entre abril de 1974 e novembro de 1975 o número de desempregados subiu de 40 para 320 mil. Isso causava descontentamento social e fortalecia os grupos de oposição ao governo provisório, ao MFA e ao PCP, responsabilizados pela crise. Parte das camadas médias, que comemorou nas ruas o “25 de abril”, começou perigosamente a mudar de lado.
A bibliografia segue na segunda parte desse ensaio
* Versão modificada de artigo publicado originalmente no sítio Vermelho em abril de 2005.
** Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.