Primeiro trabalho de fôlego sobre o Cavaleiro da Esperança
Nos últimos anos biografias e memórias têm chegado aos leitores brasileiros dando-lhes a possibilidade de compreender como o Brasil do século 20 foi visto, entendido e construído por aqueles que lutaram e defenderam as causas dos trabalhadores. A mais recente delas foi escrita pelo historiador Daniel Aarão Reis, professor titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense, e tem como personagem Luís Carlos Prestes. É uma biografia que merece figurar na estante (ou no leitor de e-book) de todo aquele interessado em conhecer a história do Brasil, e com qualidade. Trata-se do primeiro trabalho de fôlego sobre esse importante personagem da história brasileira que vai além do tom defensivo ou glorificante.
Essa tarefa não foi fácil para seu autor, pois Luís Carlos Prestes teve uma peculiaridade que pouquíssimos homens, ou quase nenhum, tiveram no século 20: com menos de 30 anos era um mito vivo. Na segunda metade dos anos 1920 já era o Cavaleiro da Esperança, expressão empregada pela primeira vez por um companheiro de Prestes nas rebeliões tenentistas, o marechal Isidoro Dias Lopes, inspirado em um dos heróis da Revolução Francesa, o general Lazare Hoche, como nos ensina o biógrafo. Assim, por conta desse caráter especial de seu personagem – tanto para os que o admiravam como para aqueles que o perseguiam –, trabalhar frente a uma imensidão de informações que oscilavam entre a imaginação e a realidade e estabelecer uma orientação segura para conduzir o leitor cuidadosamente pelas sendas da História foi uma tarefa hercúlea e bem-sucedida do autor.
Mas paradoxalmente, como um Dom Quixote, Prestes também encarnou o Cavaleiro da Triste Figura, de Miguel de Cervantes. Preso, exilado, clandestino (às vezes contra a própria vontade), ele ficou longe do povo ao qual dedicou toda a sua energia e entusiasmo por longas décadas. Uma pena que esses períodos de clandestinidade não tenham sido examinados com maior profundidade no livro e deles tenham ecoado somente as angústias. De um lado, as referências a eles – como o exílio na União Soviética nos anos 1930 ou aqueles em que era “protegido” por Arruda Câmara – foram filtradas pela couraça familiar (“história oral familiar”) ou partidária que protegia Prestes; de outro, pelo aparato seletivo de arquivos, nesse caso os arquivos soviéticos, que deu acesso limitado à documentação. Isso, de algum modo, em algum momento, irá surgir, em especial a documentação completa sobre a famosa III Conferência dos Partidos Comunistas da América do Sul e do Caribe, ocorrida em Moscou em outubro de 1934, e dos últimos tempos de Prestes na URSS antes de seu retorno ao Brasil para participar das revoltas militares comunistas de 1935. Embora, no contexto geral, talvez não nos tragam revelações extraordinárias, os documentos e a história sempre podem nos surpreender.
Há um aspecto da biografia que talvez seja o que tenha ficado mais descoberto. Trata-se de algo intrínseco ao comunismo e aos comunistas. Cada partido comunista foi, como dizia a historiadora francesa Annie Kriegel, o produto único de um encontro específico entre dois conjuntos historicamente reais: de um lado, o movimento comunista internacional e, de outro, o sistema político nacional. Assim foi com o PCB, e isso tinha sua influência na vida e na atuação de seus militantes e, em especial, na de seus dirigentes mais graduados. E com Prestes não podia ser diferente. No entanto, em poucos momentos da biografia o autor explora essa relação dialética, embora entre os anos 1940 e 1970 as viagens de Prestes à URSS fossem regulares – afora o período em que lá viveu na primeira metade dos anos 1930 e nos anos 1970. Sabemos que a entrada de Prestes no PCB foi exigida com um soco na mesa por parte de um dirigente da Internacional Comunista. Sabemos que durante sua última ida a Moscou, já afastado da secretaria-geral do PCB, recebeu um polido aviso de que não era mais ali bem-vindo, provocando-lhe o aviso provavelmente um mal-estar que quase redunda em sua morte, pois recebeu tratamento médico inepto, coisa impensável tempos antes. Mas afora isso poucas são as ocasiões em que o leitor toma conhecimento do que pensavam os comunistas soviéticos sobre as várias mudanças de orientação política do PCB ao longo de sua trajetória com Prestes à frente ou de suas avaliações sobre episódios capitais da história brasileira, como o golpe de Estado de 1964. O fato de o autor relatar tentativas fracassadas de reunião de Prestes com o secretário-geral do PCUS, Brejnev, revela a importância que o dirigente comunista brasileiro dava às opiniões de seus camaradas russos. Talvez isso tenha relação com o que apontamos anteriormente, a falta de acesso à documentação, mas essa é uma carência perceptível.
Daniel Aarão Reis mostra com detalhes o último período da trajetória de Prestes. É quando ele retorna ao país após a anistia, em 1979, e sua firmeza se mistura com um amargor que o levou a entrar em confronto com a direção do partido do qual era o “eterno secretário-geral” e se afastar das fileiras comunistas, ao se dar conta de que o PCB deixara de ser um parâmetro para o movimento dos trabalhadores. Há tempos havia um vácuo referencial para a classe operária que naquele momento rapidamente iria ser ocupado pelo Partido dos Trabalhadores. O “Partidão”, afirmava Prestes, se transformara em um “partido reformista”, um “dócil instrumento dos planos de legitimação do regime”.
Conduzido por sedutores dirigentes que carregavam a bandeira do “eurocomunismo”, esquecendo-se eles de que o Brasil entre os anos 1970 e 1980 estava longe de ser uma Itália ou uma França, ou até uma Espanha pós-franquista, o PCB, como se sabe, desceu serra abaixo e transfigurou-se, caindo nos braços de Roberto Freire e quejandos, no PPS, que todos sabemos onde está.
Por fim, há um reparo que deve ser feito a um aspecto que se pode chamar de “cozinha” da edição: seu preparo, sua checagem e sua revisão técnica. Dentro de uma vida de quase um século do personagem, o autor, ao lidar com prazos editoriais, não raro acaba cometendo deslizes. Justamente é a essa “cozinha” que compete sanar esses enganos, que podem soar por vezes comprometedores, quando suas causas são simplesmente, como é provável que o sejam, motivadas pela precipitação. Por isso, aqui um inquisidor dedo deve ser apontado para a casa editora.
Assim, por exemplo, na página 32, confunde-se o Macedo Soares colega de Prestes. O colega de Prestes na Escola Militar, Edmundo, foi ministro de Obras Públicas no governo de Dutra, enquanto o ministro da Justiça de Vargas foi José Carlos de Macedo Soares, que não estudou no Rio de Janeiro, mas sim em São Paulo. Na página 44 está escrito: “O que precipitaria a queda do governo de Epitácio Pessoa, impedindo a posse de Artur Bernardes, eleito em março”. Isso está escrito no contexto da realização dos planos da revolta tenentista de 1924, em São Paulo. No entanto, Artur Bernardes foi eleito em 1º de março de 1922 e tomou posse em 15 de novembro de 1922! Na página 124 afirma-se que a candidatura de Júlio Prestes às eleições de 1930 recebera o apoio de “dezessete províncias, como eram então chamados os atuais estados”. No entanto, em 1930 as unidades federativas do Brasil já recebiam o nome de estados. Províncias era como se chamavam os estados até 15 de novembro de 1889! Na página 135 afirma-se que um ferroviário sucedera a Astrojildo Pereira na secretaria-geral do PCB, mas já na página 156, onde há um maior detalhamento sobre a direção do partido no final dos anos 1920 e início dos anos 1930, esse ferroviário simplesmente desaparece! Na página 421 há referência de uma entrevista de 1968 de Prestes à revista Veja (argh!), quando o correto é que ela foi dada à publicação Realidade (informação que, aliás, consta na bibliografia, à página 510).
Dainis Karepovs é pós-doutorado em História pela Unicamp e diretor do Centro de Documentação do Movimento Operário Mario Pedrosa (Cemap-Interludium)
Publicado em Teoria e Debate