Revolução e Contrarrevolução em Portugal (1974-1976) – Segunda Parte
As tentativas de golpes do general Spínola e a radicalização da revolução
Nos primeiros dias de Revolução dos Cravos, todos se diziam socialistas. Até os mais conservadores eram obrigados a se cobrirem com um leve verniz de esquerda. O Partido Popular Democrático (PPD) chegou a solicitar seu ingresso na Internacional Socialista, mas não seria aceito graças ao veto de Mário Soares. O programa desse partido, aprovado em novembro de 1974, propunha: “iniciar a construção de uma sociedade socialista em liberdade; a socialização dos meios de produção e a ampliação do setor público com planificação democrática que inclua uma política de nacionalizações e de participação financeira do Estado, sobretudo nos setores chaves”. Posteriormente, mudaria seu nome para Partido Social Democrata (PSD). Mais à direita estava o Centro Democrático Social (CDS), que se vincularia à democracia cristã. Ele também participava do governo e formava sua ala direita.
Pela sua composição heterogênea, o governo provisório logo se viu dividido entre os setores conservadores, encabeçados por Spínola, com apoio do PPD e do CDS, e os membros mais ativos do MFA, com apoio dos comunistas. O PS adotou uma posição centrista e de expectativa. As polêmicas se davam em torno do ritmo e do próprio sentido da revolução em curso.
O problema da descolonização acarretou duras discussões e foi responsável pela primeira grande cisão no interior do primeiro governo provisório. Spínola resistia à proposta de imediata independência das colônias em África – com a entrega do poder às forças revolucionarias (PAIG, MPLA, Frelimo) – e insistia numa saída confederativa, sob hegemonia portuguesa.
Naqueles dias, contraditoriamente o poder nascido de uma revolução armada, promovida pela oficialidade de esquerda, estava nas mãos de dois elementos conservadores. Uma contradição que precisaria ser resolvida, e foi. Para resolver o impasse, Spínola tentou uma jogada arriscada.
Em julho de 1974, Palma Carlos – articulado com o presidente – exigiu a antecipação da eleição presidencial para setembro de 1974. Segundo o Programa do MFA, aceito por todos, primeiro deveriam ser realizadas as eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, em março de 1975, e somente depois para a presidência da República.
A manobra de Palma Carlos visava a reeleger Spínola – desta vez por sufrágio de caráter plebiscitário–, aproveitando-sedo fato de que o general era a figura mais conhecida e prestigiada de Portugal naquele momento, graças aos próprios “capitães de abril”. Fortalecido no poder, poderia facilmente colocar um fim ao processo revolucionário. Fenômeno que a história conheceria como bonapartismo.
Entendendo o perigo que corria, em 18 de julho, o MFA exigiu a destituição do primeiro-ministro e impôs no seu lugar um homem de sua inteira confiança: o coronel Vasco Gonçalves. O segundo governo provisório contaria com uma participação maior da esquerda militar e do PCP. A revolução avançava aproveitando-se das derrotas da contrarrevolução.
O presidente, isolado no governo, tentaria uma última cartada, usando o que ainda lhe restava de prestígio e mobilizando os setores conservadores. Em setembro discursou em rede nacional e percorreu o país concitando a “maioria silenciosa” a se mobilizar contra o perigo do novo totalitarismo de esquerda que ameaçava o país. Era uma clara tentativa de preparar um golpe de Estado, agora recorrendo à mobilização reacionária.
No dia 26 daquele mesmo mês, armou-se uma armadilha para Vasco Gonçalves. Este foi convidado, juntamente com Spínola, para assistir a uma tourada no Campo Pequeno. Após a execução do hino nacional uma multidão iniciou uma sonora vaia contra o primeiro-ministro e aplaudiu freneticamente o presidente. Ouviram-se, pela primeira vez, palavras de ordem contra o MFA e pela manutenção das colônias. Naquela mesma noite grupos direitistas tentaram atacar a sede do Partido Comunista Português, sendo rechaçados.
Aproveitando-se desse clima golpista, a direita convocou uma manifestação da denominada “maioria silenciosa” para Lisboa no dia 28 de setembro. Caravanas foram organizadas em várias regiões, especialmente onde predominavam as correntes mais conservadoras. Na madrugada daquele dia,tropas ligadas a Spínola tomaram de assalto emissoras de TV e os jornais foram impedidos de circular. As rádios governistas transmitiam marchas militares. O cenário parecia o do “11 de setembro” chileno. As lembranças estavam ainda muito frescas.
Nos sindicatos, nos bairros populares, nas escolas e nas universidades começaram a se ouvir os gritos: “A revolução corre perigo!” e “Não Passarão!”. Milhares de pessoas tomaram as principais vias de acesso ao centro de Lisboa. Sob a direção dos partidos de esquerda, especialmente o comunista, formaram-se cordões de isolamento. Depois de algumas vacilações, tropas do MFA se juntaram aos populares para defender a revolução ameaçada pela reação.
Corria a informação de que Spínola havia detido Vasco Gonçalves e Otelo Saraiva de Carvalho. Tropas fiéis ao MFA cercaram a sede do governo e exigiram a proibição da manifestação. Então, sob pressão, um presidente combalido pediu o cancelamento da marcha. Nesse ínterim, centenas de contrarrevolucionários foram presos. Um poderoso arsenal foi encontrado nas sedes dos partidos de extrema-direita, como o Partido do Progresso e o Partido Liberal. Acharam-se listas com os nomes das pessoas que deveriam ser presas e executadas. Portanto, o Chile não era apenas uma miragem naquele “28 de setembro” português.
O resultado daquela aventura golpista foi bastante adverso ao general Spínola, obrigado a se demitir do cargo. Os elementos mais direitistas também deixaram o governo. Os partidos fascistas foram colocados na ilegalidade. O novo presidente, general Costa Gomes, reafirmou solenemente o compromisso com o programa do MFA. O PCP se fortaleceu junto aos militares de esquerda. O PSP manteve suas posições, mas os partidos mais à direita (PPD-CDS) perderam o seu espaço no governo. A partir desse momento a situação se radicalizou e aumentou a pressão do imperialismo europeu e estadunidense sobre Portugal.
A extrema-esquerda (trotskista e maoísta) contribuía para a criação de um clima de instabilidade, que afetava negativamente a imagem do governo Vasco Gonçalves, acusado de conivência com a anarquia e com ações antidemocráticas. Em janeiro de 1975, grupos esquerdistas impediram a realização do congresso do CDS na cidade do Porto. No início de março foi impedido um comício do PPD em Setúbal. Sedes desses dois partidos, que ainda faziam parte do governo, também foram atacadas. O PCP criticou essas ações, aparentemente radicais, pois apenas favoreciam a propaganda contrarrevolucionária. Mais uma vez ecoou por todo o mundo o grito de que Portugal caminhava rapidamente para uma ditadura de esquerda e todos procuravam responsabilizar os comunistas pelo que ocorria.
(Foto: Capa da Time alertando sobre a comunização de Portugal)
Naquele período, foi indicado Frank Carlucci para a embaixada dos Estados Unidos em Lisboa. Ele era um agente da CIA e especialista na arte de desestabilizar governos populares. O novo embaixador passou a transitar livremente entre políticos e militares, inclusive ligados ao PS. Mário Soares chegou a elogiá-lo e à sua equipe. Três anos mais tarde, Carlucci seria promovido diretor adjunto da CIA pelos seus serviços prestados em Portugal.
Em fevereiro de 1975 eclodiu o conflito em torno da rádio Renascença – pertencente ao episcopado. Ela foi tomada pelos seus trabalhadores, sem a aprovação do PCP. A Igreja protestou. Houve manifestações pró e contra na frente do padroado, que foi cercado por militantes de esquerda. Os religiosos tiveram que sair ostensivamente escoltados pelo exército. O Partido Socialista foi solidário com a hierarquia da Igreja e acusou os comunistas pelo ocorrido. Protestos ecoaram em todo o mundo.
Este era o álibi que a extrema-direita precisava para iniciar uma onda de violência e de terrorismo contra os trabalhadores e as organizações comunistas. Muitas sedes do PCP no norte do país foram atacadas e destruídas por hordas incentivadas pelo clero conservador.
Em meio a esse clima de intranquilidade, em 11 de março a OTAN realizou manobras provocativas nas costas de Portugal. Entre as embarcações estava o poderoso porta-aviões estadunidense Saratoga. A frota chegou a entrar no estuário do rio Tejo e ancorar próximo do palácio presidencial. Correu boato de uma tentativa de derrubar o governo de Costa Gomes e Vasco Gonçalves. O povo, apoiado pelos homens do MFA, saiu às ruas em gigantescas manifestações. Novamente, não era possível deixar de lembrar a estrofe de Zeca Afonso: “o povo é quem mais ordena/ Dentro de ti, ó cidade”.
No rastro destas manobras militares do imperialismo se seguiu mais uma tentativa de golpe militar spinolista. O estopim foi o boato de que o general havia sido vítima de um atentado promovido pela esquerda e que existiam terroristas tupamaros no quartel do RAL-1, ligado ao MFA. Também apareceu uma lista dos oficiais que deveriam ser eliminados na matança de Páscoa. Enganados por tais notícias, os paraquedistas da base de Tancos atacaram o RAL-1.
Em poucas horas, a confusão foi desfeita e os soldados dos dois regimentos se confraternizaram. No final do dia, uma grande manifestação popular tomou as ruas de Lisboa. Vários militares e políticos responsáveis por insuflar o conflito foram presos. Spínola, mentor dessa nova intentona, refugiou-se na Espanha e depois seguiu para o Brasil.
Diante de mais um ataque dos setores conservadores, o processo revolucionário se radicalizou. Foi criado o Conselho da Revolução, a Assembleia do MFA e tomada a histórica decisão de nacionalizar os bancos e as agências de seguros. O Sindicato dos Bancários teve um papel destacado nesse processo ao impedir que os donos e gerentes suspeitos voltassem a seus postos e, simbolicamente, expropriaram as chaves dos cofres. Em seguida, realizaram uma auditoria e enviaram os resultados para o Conselho da Revolução que decidiu pela imediata nacionalização. Os treze bancos nacionalizados representavam 83% dos depósitos e eram responsáveis por 80% dos créditos comerciais.
Em seguida, nacionalizaram-se as empresas de energia elétrica, de comercialização de petróleo, as estradas de ferro, as companhias de navegação, a companhia de aviação TAP, a Siderurgia Nacional. Várias empresas de propriedade de contrarrevolucionários também foram expropriadas. Muitas passaram para o controle direto dos seus trabalhadores. Em agosto de 1975 foi nacionalizada a poderosa CUF, da família Melo. Até meados de 1976, foram nacionalizados 245 estabelecimentos; ou seja, todos os setores básicos da economia portuguesa.
Nesta época implementou-se o primeiro grande projeto de reforma agrária, especialmente no centro-sul do país (Alentejo). Ali se expropriaram mais de 179 latifúndios. Criaram-se centenas de Unidades Cooperativas de Produção (UCP). A reforma agrária também foi uma obra nascida da ação ousada dos trabalhadores rurais dirigidos pelo PCP pós-25 de abril.
Avançou também o ritmo do processo de descolonização. No dia 5 de junho foi criada a República de Moçambique; e em 12 de julho a de São Tomé e Príncipe. A declaração de independência de Angola deveria esperar até o dia 11 de novembro, pouco antes da derrota definitiva da esquerda do MFA.
Estes foram duros golpes na dominação política e econômica dos grupos monopolistas e dos latifundiários portugueses, aliados ao imperialismo estadunidense e europeu. Foram respostas à ofensiva reacionária patrocinada por estes mesmos setores sociais e à pressão das massas populares que exigiam que o MFA avançasse no seu programa de reformas estruturais. O imperialismo e a reação interna se apavoraram e partiram para o contra-ataque, utilizando agora alguns “cavalos de Troia”.
O Partido Socialista e a contrarrevolução
(Cartaz convocando o ato golpísta da “maioria silenciosa”)
Em abril, um pouco antes das eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, foi assinado o Pacto MFA-Partidos, visando a garantir que as conquistas da revolução e o governo provisório seriam mantidos independentemente do resultado do pleito. O objetivo seria apenas o de elaborar uma nova Constituição e não governar. Todos os principais partidos assinaram.
Durante a campanha eleitoral o episcopado português conclamou pelo voto contra os comunistas. Em várias cidades e vilarejos os comunistas não puderam fazer campanha devido ao clima de violência reinante contra eles. Aumentou enormemente a chantagem econômica, política e militar das potências imperialistas – mesmo de governos social-democráticos. Alertavam que uma possível vitória eleitoral comunista levaria ao caos econômico e à implantação de uma ditadura totalitária. Toda essa pressão, que amedrontou as camadas médias e mesmo setores populares, deu os seus resultados.
Na eleição, ocorrida em 25 de abril de 1975, o Partido Socialista saiu como o grande vitorioso obtendo 37,87% dos votos, seguido pelo PPD (26,38%) e PCP (12,53%). O direitista do CDS Diogo Freitas do Amaral conseguia 7,75%. Esta foi uma derrota do principal aliado da esquerda do MFA, o PCP. Logo entrariam em choque o poder nascido das eleições e o poder revolucionário nascido das armas e das ruas. A dinâmica da revolução se chocaria com a dinâmica eleitoral.
Contudo, o governo e o MFA entenderam o resultado eleitoral como uma vitória do seu programa, pois a grande maioria dos deputados eleitos (PCP/PS/PPD), ainda que formalmente, defendeu a manutenção do caminho do socialismo, respeitando a pluralidade. Com essa argumentação, o governo continuou a radicalização do processo, realizando mais nacionalizações. O palco para novos e maiores confrontos estava montado.
Contra a vontade dos socialistas, dois dias depois da eleição, o governo aprovou a lei da unicidade sindical que favorecia a Intersindical, hegemonizada pelo PCP. Em seguida, no 1º de Maio de 1975, eclodiu um grande conflito entre socialistas e comunistas. Depois de uma série de atos provocativos por parte do PS durante a preparação do evento, Mário Soares foi impedido de falar. No dia seguinte, organizou-se uma manifestação de desagravo ao líder socialista, na qual os alvos principais foram os comunistas e Vasco Gonçalves. Nisso os socialistas tiveram o apoio do PPD, CDS e de setores da extrema-esquerda (trotskista e maoísta). Era um claro sinal de que o PS e Mário Soares começavam a trilhar o caminho da contrarrevolução.
A situação se agravou ainda mais com a tomada do jornal socialista República pelos seus trabalhadores, comandados por grupos de esquerda não ligados ao PCP. O governo recusou-se a intervir e, na prática, colaborou com os ocupantes. Isto foi o pivô de uma grande campanha internacional, orquestrada pela Internacional Socialista, contra a implantação de uma ditadura totalitária comunista em Portugal. Também aqui os socialistas tiveram apoio de trotskistas e maoístas.
Então, Mário Soares e a direita (PPD) trabalharam no sentido de criar uma crise política e institucional. Por isso, em 11 de julho, abandonam o governo provisório e passaram a organizar grandes manifestações contra Vasco Gonçalves e o Partido Comunista. Era o início do “verão quente” da revolução portuguesa.
Com a saída dos socialistas e do PPD, em 9 de agosto de 1975, seria formado o 5º governo provisório – mantendo Vasco Gonçalves como primeiro-ministro. Mas, ele nasceu bastante enfraquecido. Só contava com o apoio dos comunistas e de um setor da esquerda das MFA. Até a extrema-esquerda não estava disposta a dar-lhe um voto de confiança.
(Ataque contra a sede do PCP em Braga)
Em perfeita sintonia com a atuação dos líderes oposicionistas, foi desencadeada uma nova e maior onda anticomunista no interior do país com ataques às sedes do PCP e de sindicatos a ele ligados. Apenas no mês de julho, 33 locais foram destruídos, e em agosto este número subiu para 55. O PS não condenou a ação das milícias fascistas, mas as justificou alegando serem respostas à prática totalitária dos comunistas.
A reação se concentrava principalmente no norte do país e tinha o seu centro na cidade de Braga. Ali era forte a influência do clero conservador e predominava a pequena propriedade rural. Sob esta base se instalara uma população analfabeta e despolitizada que não participou do “25 de abril” e, até então, não sentira seus efeitos positivos. Pelo contrário, ouvia apenas o seu “pastor” falar dos perigos que corriam sua propriedade e sua religião, caso os comunistas tomassem o poder em Lisboa. Era a Vendeia portuguesa que se unia agora aos girondinos de Mário Soares.
O PS e o PSDA seriam os porta-vozes dos interesses estadunidenses no interior da socialdemocracia europeia. O jornal Le Monde advertiu Mário Soares de que, ao encabeçar a oposição ao regime, “arriscava-se em converter-se no ‘cavalo de Troia’ da reação’”. Apesar de a legislação portuguesa proibir financiamento externo, o PS recebeu milhões de dólares de seus irmãos da socialdemocracia europeia e de outras organizações “democráticas”, em geral, patrocinadas pela CIA.
Naquele momento, inclusive, se estabeleceu uma divergência no seio do bloco revolucionário entre o PCP e a esquerda militar, encabeçada por Vasco Gonçalves. Este último estava convencido de que o principal inimigo do processo revolucionário não eram mais os grupos fascistas e sim o PS de Mário Soares. Esta não era a posição dos comunistas. Eles acreditavam que os fascistas continuavam sendo os inimigos mais perigosos.
O MFA – por sua composição social, assentada nas camadas médias – não estava imune ao agravamento da luta de classes. A polarização política, finalmente, conduziu a uma cisão grave no seu interior. No início de agosto de 1975, um grupo de oficiais, encabeçado por Melo Antunes e Vasco Lourenço, divulgou o chamado Documento dos Nove, que galvanizaria parte dos capitães. Nele é possível constatar uma forte influência das ideias do PS, embora com um viés um pouco mais à esquerda. O documento faz duras críticas à política implementada por Vasco Gonçalves e ao PCP. Pressionado por todos os lados, em 30 de agosto, o presidente da República exoneraria o primeiro-ministro e indicaria para o seu lugar o almirante Pinheiro de Azevedo, mais ligado ao Grupo dos 9 e ao PS. As potências ocidentais condicionavam qualquer ajuda econômica ao abandono do projeto revolucionário defendido pelo MFA e a exclusão dos comunistas do governo.
No dia 2 de setembro, uma tensa Assembleia do MFA em Tancos afastou Vasco Gonçalves de suas funções. Começava o “saneamento” das Forças Armadas. Em 7 de novembro o governo Pinheiro Azevedo bombardeou as antenas da rádio Renascença, que ainda estava sendo dirigida pela esquerda. A revolução dava os seus primeiros passos para trás. Outros viriam.
A resposta comunista foi a tentativa de ampliar e radicalizar a ação dos trabalhadores e dos soldados, agora que parecia que os oficiais seguiam em outra direção.Surgiu uma organização clandestina denominada “Soldados Venceremos”. Iniciou-se uma luta tenaz pela manutenção das conquistas ameaçadas pelo novo governo, agora encabeçado pelo PS e o PPD.
Em 12 de novembro teve início a greve na construção civil. Os operários cercaram a Constituinte e impediram os deputados e o primeiro-ministro de saírem do local. Os militares de Lisboa se recusaram a intervir – esta seria a última vez que isso ocorreria. O governo cedeu aos operários, mas ameaçou transferir os trabalhos constituintes para a cidade do Porto. Ainda em novembro (16) a Intersindical reuniu uma grande manifestação de 200 mil pessoas no centro de Lisboa.Vislumbrava-se o início de uma guerra civil.
O fim do processo revolucionário
Em 25 de novembro de 1975 eclodiu uma rebelião na base aérea de Tancos e em outras. Desta vez, ela foi encabeçada pela esquerda. A alta oficialidade, com apoio do “Grupo dos Nove”, esmagou rapidamente a revolta. Seguiu-se uma onda anticomunista. A direita pediu que o PCP abandonasse o governo. Os mais radicais clamavam pela prisão de Cunhal e o fechamento do seu partido. No norte, novamente ocorreram destruições de sedes comunistas e o partido teve que entrar para a clandestinidade em várias regiões.
O medo de perder o controle da situação e de que o poder acabasse caindo nas mãos das organizações parafascistas levou o próprio governo Pinheiro Azevedo a fazer cessar aqueles ataques, defender a manutenção da legalidade e a participação do PCP no VI Governo Provisório. Os comunistas permaneceram legais e no governo, mas perderam a capacidade de intervir em suas decisões. O PS agora dava as cartas.
A direita militar, em aliança com os socialistas de Mário Soares, aproveitou-se do ocorrido para impor sua hegemonia no seio das Forças Armadas. Estava decidido: Portugal não sairia do campo ocidental (entenda-se capitalista) e cristão. Os oficiais ligados à esquerda começaram a ser afastados dos seus postos de comandos e expulsos das corporações. Alguns, como Otelo de Saraiva, acabaram sendo presos. As Forças Armadas se institucionalizaram e passaram a cumprir o seu verdadeiro papel num Estado burguês: manter a ordem ao serviço do capital.
Mesmo derrotada a revolução deixaria suas marcas. Os vencedores ainda eram obrigados a prestar homenagens aos vencidos e se esconder sob o manto do socialismo democrático. A Constituição, aprovada em abril de 1976 quando a esquerda já havia sido afastada do centro do poder, estamparia no seu primeiro artigo: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua transformação em uma sociedade sem classes”. No seu artigo segundo, incluiria como um dos objetivos do Estado democrático “assegurar a transição para o socialismo, mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras”. Contudo, nos anos seguintes, a aliança PS-PPD iria se esforçar para se desfazer das conquistas mais importantes trazidas pela Revolução dos Cravos.
Conclusão inconclusa
Durante o processo revolucionário ocorreu uma efetiva democratização das Forças Armadas – chegou-se ao limite do possível numa democracia burguesa. Chegou-se a dizer que a burguesia havia perdido o seu exército – o que não era de todo falso. “Não se pretende restaurar uma instituição militar ultrapassada, mas sim criar uma nova, no sentido de se caminhar para um exército competente, democrático e revolucionário, posto ao serviço do povo e capaz de corresponder à sociedade socialista que se quer construir”, dizia um documento do MFA.
Otelo de Saraiva, um dos mais importantes comandantes do MFA, afirmou: “Fui fiel ao princípio que desde logo enunciei: ‘em princípio, os trabalhadores têm sempre razão’, fiz uso da parcela de poder político e militar que me havia sido conferida para apoiar, clara e decididamente, as lutas dos trabalhadores e estratos da população mais desfavorecidos socialmente”. Outro documento da esquerda militar afirmava: “Mas o poder popular nunca será verdadeiramente poder se não for armado. Os trabalhadores somente serão capazes de conquistar o poder e de o aguentarem nas mãos se estiverem armados, se tiverem a força organizada do seu lado. E é a conjugação dos trabalhadores armados com os soldados que estão nos quartéis que nascerá o largo movimento e a vanguarda que poderá fazer frente à burguesia e ao imperialismo”.
Após novembro, muitos oficiais foram presos justamente sob a acusação de tentativa de armar o povo. Por outro lado, os oficiais que distribuíram armas para as milícias de direita e prepararam o golpe militar e a guerra civil contra o governo do MFA não foram punidos e sim promovidos. Isto levou um autor a afirmar: “isso constitui um dos exemplos mais flagrantes de como o mesmo ato, cometido por indivíduos de ideologias diferentes, pode, num caso, ser considerado como crime, e, no outro caso, como ato de patriotismo e amor à democracia”.
De fato, não se constituiu uma estrutura de poder verdadeiramente revolucionário, um aparelho estatal de novo tipo em Portugal entre 1974-1975. O MFA era um partido militar de caráter pequeno-burguês que, por um curto período, teve hegemonia no aparato de Estado e procurou controlá-lo e colocá-lo a serviço de seu projeto político democrático e popular. Algo que se mostrou insuficiente.
Nem mesmo a hierarquia militar foi substancialmente abalada – precisaram, inclusive, de dois generais (Spínola e Costa Gomes) para legitimar o novo poder. O MFA estava no governo, mas não era efetivamente o poder. Ou o foi por reduzidíssimo tempo. A vida, rapidamente, tratou de demonstrar esse fato. Isto explica porque foram afastados tão facilmente de seus postos e viram seu generoso movimento ruir sob os golpes sucessivos da alta oficialidade, em aliança com a burguesia e o imperialismo. É claro que para isso contribuíram suas divisões internas – reflexos da sua determinação de classe pequeno-burguesa.
Ao contrário do que muitos apressadamente concluíram, a Revolução dos Cravos demonstrou a justeza de duas teses marxistas e leninistas. Primeira: é impossível transitar para o socialismo sem um processo de ruptura institucional – simplesmente respeitando-se a legalidade burguesa. A dinâmica das revoluções populares não pode se subordinar à mesma dinâmica das instituições liberal-burguesas, embora sempre tenha que tê-las em conta. Segunda tese: uma revolução se quiser avançar no sentido do socialismo precisa começar a quebrar a máquina do Estado burguês, principalmente o seu aparato de repressão: polícia e exército. Ela precisa construir outra institucionalidade (outra aparelhagem estatal), essencialmente democrática e popular. No caso português, como o peruano, a revolução acabou sendo tragada pelas estruturas conservadoras, ainda que sob uma fachada democrática, que ela foi incapaz de abolir ou mesmo reformar radicalmente. Por isto, a revolução permaneceu incompleta.
Os limites citados acima não nos devem fazer subestimar ou desprezar a importância daquele movimento que mudou a cara de Portugal, que o projetou para o mundo contemporâneo. O 25 de abril trouxe mais desenvolvimento, mais liberdade, mais direitos e melhores condições de vida para o povo. E, principalmente, libertou Portugal da condição de um país colonialista e algoz dos povos africanos. No entanto, os trabalhadores portugueses ainda esperam e trabalham para o florescimento de uma nova primavera, através da qual revolução possa, finalmente, ser completada e o socialismo conquistado definitivamente.
* Versão modificada de artigo publicado originalmente no sítio Vermelho em abril de 2005.
** Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.
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