Os eventos que marcaram os cinquenta anos do golpe civil-militar de 1964 representaram um momento importante de reflexão sobre a produção acadêmica mais recente que aborda a ditadura militar no Brasil. Nos últimos anos, temos acompanhado um boom de estudos sobre o período autoritário que se estende de 1964 a 1985. Todavia, embora haja uma historiografia consistente que abarca ampla diversidade temática, como as disputas de memória, a repressão do Estado e colaboração da sociedade civil, a luta armada e o movimento estudantil, ainda observamos a persistência de algumas lacunas. É o caso do papel das mulheres na ditadura. Sabemos pouco sobre elas. Como se comportavam em um ambiente de luta e organização política em que predominavam os padrões heteronormativos e patriarcais? Como se organizavam entre elas, seus anseios e angústias, suas ideias sobre feminilidade, o exílio e a clandestinidade, as relações entre a militância e a maternidade? De que forma e em que medida as experiências dos homens e mulheres militantes eram compartilhadas e/ou se diferenciavam? E, por fim, quais as relações entre a militância política de esquerda travada no pós-1964 e o movimento feminista no Brasil? Felizmente, o trabalho de Susel Oliveira Rosa, Mulheres, Ditaduras e Memórias, de 2013, traz uma valiosa contribuição para a superação dessas lacunas ao colocar as mulheres militantes no centro de sua análise.

A autora tem a habilidade de articular depoimentos com conceitos teóricos, utilizando-se ainda de referências literárias e cinematográficas, numa narrativa fluida e acessível, ao mesmo tempo em que relaciona as experiências individuais com os movimentos coletivos travados no processo histórico daquele período. Logo no subtítulo do livro ela explicita sua opção teórica do trabalho ao reproduzir uma frase de Michel Foucault – “Não imagine que precise ser triste para ser militante”1.

Fruto da pesquisa de pós-doutorado de Susel Rosa, realizado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas entre 2008 e 2011, o livro revela a trajetória de três importantes ativistas políticas de esquerda e feministas que lutaram contra o regime militar. São elas: Nilce Azevedo Cardoso, ex-presa política e psicopedagoga; Yolanda Cerquinho da Silva Prado, conhecida como Danda Prado, escritora e considerada pioneira do movimento feminista no Brasil; e Flávia Schilling, ex-presa política da ditadura uruguaia, socióloga e professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

Embora tenham trilhado caminhos distintos, essas três mulheres guardam em  comum algumas experiências, entre as quais a decisão de lutar em movimentos de resistência ao regime militar. Todas sofreram e enfrentaram a repressão e os abusos cometidos pelo Estado autoritário, incluindo a tortura – reconhecida legalmente como uma das violações mais graves contra os direitos humanos. Compartilharam não apenas a experiência do cárcere, a vida no exílio; compartilharam, sobretudo, o machismo vivenciado dentro e fora das organizações políticas, nas relações familiares e no trabalho. Essas experiências foram fundamentais para seu envolvimento no movimento feminista.

Como observa no prefácio do livro Margareth Rago, supervisora do estudo de Susel Rosa, essas mulheres ativistas “abriram mão de destinos seguros e confortáveis para perseguirem suas utopias, em defesa da justiça social, da igualdade e da liberdade”. Dentre o conjunto de experiências compartilhadas entre essas mulheres, a autora capta dois elementos fundamentais para o estabelecimento das relações e o fortalecimento dos laços entre aquelas que ousaram lutar: a solidariedade e a força da amizade, componentes que também ajudaram na reconstituição de si próprias após as longas sessões de tortura e outras sevícias sofridas. Segundo ela, essas três mulheres “não se conheceram, não foram amigas, não militaram no mesmo espaço, mas têm em comum o que Hannah Arendt chamou de ‘inquietação e compromisso com o mundo’” (p. 19).

Destaque para a obra de Jorge Amado Os Subterrâneos da Liberdade, e sua personagem Mariana, três volumes publicados em 1954, e para o filme A Vida Secreta das Palavras, da diretora espanhola Isabel Coixet, de 2005. Ambos apresentam-se como referências essenciais para essas três mulheres ativistas retratadas pela autora do livro. Ajudam a compreender o pensamento subjetivo dessas mulheres e o modo como lidaram e lidam com a repressão autoritária dos Estados de exceção, seja no Brasil, seja no Leste Europeu, mostrando ainda como certas questões foram objeto de debates no movimento feminista de âmbito nacional e internacional.

Dentre as várias contribuições da autora, destaca-se a importância de ampliar o conhecimento dos movimentos sociais a partir da presença das mulheres – presença em sua maioria sistematicamente negada e ignorada por dezenas de séculos da nossa história ocidental. Por meio da trajetória dessas ativistas de esquerda na luta contra a ditadura compreendemos como se iniciaram as primeiras organizações do movimento feminista no Brasil. Nilce Azevedo Cardoso foi militante da Ação Popular (AP), presa e torturada. Ela e Danda Prado descobriram o movimento feminista durante o exílio na Europa. Foi de lá que trouxeram as primeiras experiências sobre os processos de organização de mulheres e as ideias que tinham forte influência das feministas mais expressivas da época, como o contato com Simone de Beauvoir, por exemplo.

Danda era militante do PCB, mas rompeu com o partido no começo dos anos 1960. Filha de Caio Prado, teve papel fundamental na divulgação das ideias feministas no Brasil, abrindo as portas da Editora Brasiliense para a publicação de temas sobre a condição feminina. Seu afastamento partidário não a impediu de continuar atuando na luta contra o regime militar. No exílio, travou contato com o movimento feminista. Em Paris, foi editora do periódico Nosotras, que circulou clandestinamente no Brasil.

Flávia sofreu o isolamento da prisão na ditadura uruguaia ao longo de oito anos. Essa experiência no cárcere lhe proporcionou a criação de vínculos e laços de solidariedade com as companheiras. Tais relações se mostraram fundamentais para que ela não abandonasse o chamado “devir revolucionário”.

Para uma maior compreensão da importância das redes construídas por essas mulheres ativistas, a autora nos chama atenção para a potência dos encontros (p. 127). Um exemplo representativo foi a formação do bem-sucedido grupo latino-americano das mulheres em Paris, organizado por Danda. A constatação da necessidade de reunir as mulheres exiladas surgiu de sua experiência com os grupos feministas franceses. A partir daí, ela passou a observar que muitas exiladas brasileiras “cuidavam do sustento da família através de seus trabalhos como os de faxina, enquanto seus companheiros ou maridos – ‘os militantes’ – ficavam em casa discutindo a ‘revolução’” (p. 139). Ao buscar compreender a militância feminista de Danda, a autora recorre às cartas que ela escreveu aos parentes e amigos no início da década de 1970, intercalando em sua narrativa um conjunto de missivas e o depoimento que a própria Danda lhe deu (p. 149).

As cartas também foram objeto de análise para a compreensão da trajetória de Flávia Schilling. Ao falar à autora sobre a resistência na prisão, a ativista revela a importância da escrita das cartas para seus familiares não apenas para assegurar sua sobrevivência, mas como um recurso encontrado por ela própria para se perceber viva e sã enquanto realizava o exercício da escrita. Algumas cartas encontram-se reproduzidas na terceira parte do livro, quando a autora nos lembra que “é preciso que a resistência seja tão produtiva e inventiva quanto o poder” (p. 245).

Os depoimentos das ativistas apresentados no livro, entre eles o de Maria Amélia Teles e o de Danda Prado, desvelam a postura misógina, em variados aspectos e graus diferenciados, da esquerda brasileira. Não obstante elas aprenderam que para ser militante e guerrilheira era preciso passar por um processo de “dessexualização”. Conforme conta Maria Amélia , “os comandantes esperavam que as guerrilheiras se comportassem como homens, já que o modelo masculino era o ideal para a guerra” (p. 43).

Nilce passou por processo semelhante ao assumir a missão de se infiltrar como trabalhadora nas fábricas do ABC paulista. Seus companheiros de organização acreditavam que era preciso se “dessexualizar” para se relacionar com as classes populares e o meio rural. Em outras palavras, conforme seu relato, era preciso “enfear” a militante de classe média a fim de que sua atuação no espaço fabril pudesse se mostrar convincente. No entanto, ao travar contato com as trabalhadoras, Nilce passou a receber sugestões de “embelezamento” das próprias companheiras de fábrica (p. 44). O episódio é revelador não apenas do predomínio do padrão masculino militante, mas também das fronteiras entre as classes sociais existentes entre os militantes das organizações de esquerda oriundos da classe média urbana e as classes populares, embora esse aspecto não tenha sido destacado pela autora.

Entretanto, como afirma uma militante entrevistada por Susel, embora a postura da esquerda fosse tradicional e machista, levando muitas militantes a engajarem-se no movimento feminista, a esquerda possibilitou a maior participação das mulheres e a inserção delas na militância política de diferentes maneiras (p. 47). Se o machismo podia ser identificado entre os companheiros de militância, o que dizer então da misoginia expressada pelos agentes da repressão no contato com as mulheres militantes presas? Enquanto no combate à ditadura elas precisavam abrir mão da sua condição feminina para que fossem reconhecidas e legitimadas por seus pares masculinos, nas sessões de tortura tal condição tornava-se imperativa para a aplicação dos castigos a que deveriam ser submetidas a fim de que fossem corrigidos os supostos desvios dessas mulheres militantes. Estas deveriam ser punidas não apenas pelo fato de serem “terroristas”, mas também por serem “mulheres”. Como mostra a autora, ser mulher e militante de esquerda era uma “combinação infame para a repressão” (p. 59).

O livro encontra-se organizado em três partes. A primeira é dedicada a Nilce Cardoso, com a apresentação do capítulo escrita pela própria ativista. O estudo recupera sua atuação a partir de depoimentos que ela concedeu à autora, nos quais suas recorrentes referências à literatura e ao cinema, assim como a intelectuais e filósofos, como Deleuze, Foucault, Espinosa e Nietzsche, ajudam a construir a narrativa da militante feminista. A segunda parte traz Danda Prado, com apresentação de Yara Gouvêa, sua companheira na militância política de combate à ditadura no exílio, e da jornalista Miriam Paglia2. Nesse capítulo a autora reconstrói a trajetória de Danda no movimento feminista a partir de suas experiências no exílio, na França, analisadas em conjunto com seus estudos e suas obras de referência, com destaque para seu próprio livro O Que É Aborto, da Coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense, publicado em 1984.

A terceira e última parte aborda a atuação de Flávia Schilling, com a colaboração da própria ativista na apresentação do capítulo. Flávia chama atenção para os diversos aspectos e significados da resistência e do ato de resistir. Sua prisão no Uruguai teve grande repercussão no Brasil entre os grupos de combate à ditadura e contou com forte participação do Movimento Feminino pela Anistia. Suas cartas escritas no cárcere circularam amplamente na imprensa alternativa no final dos anos 1970. Flávia revela à autora certo incômodo em relação ao impacto desse material utilizado para sensibilizar a sociedade durante o período de sua prisão. Segundo ela, provocava uma forte empatia nas pessoas, levando-as ao choro. No entanto, a ativista assevera que a escrita das cartas na prisão, sob o rígido controle dos órgãos da repressão, apresenta uma série de nuances, chamando atenção para o jogo da escrita. “Uma coisa é uma carta, outra coisa são as cartas escritas na prisão”, ressalta. Tal observação não deve ser esquecida pelos historiadores.

Ao resgatar a trajetória dessas três militantes feministas, Susel Rosa contribui para a reflexão sobre os anos da ditadura no Brasil a partir do olhar delas próprias. Utilizando uma narrativa não linear, recria essas trajetórias pelas imbricações entre a lembrança, o esquecimento, o testemunho e a resistência, expondo os traumas dessas mulheres causados pelas torturas e privações do cárcere, ao mesmo tempo em que revela a importância do coletivo, da construção das redes de solidariedade e dos encontros com outras mulheres para a própria reconstrução de si. 

Mas o que dizer então sobre as mulheres que não tiveram uma atuação política de combate e resistência à ditadura? Onde estão as mulheres trabalhadoras que vivenciaram cotidianamente as agruras do regime autoritário? Como se dava a relação entre elas e as militantes nas fábricas? Quantas histórias de mulheres ainda permanecem invisíveis? Enfim, essas são questões que ainda necessitam ser desnudadas e repensadas à luz da bibliografia recente. Por ora, vamos saboreando os desejos, os pensamentos e ações de Danda Prado, Nilze Cardoso e Flávia Schilling, três mulheres fortes que marcaram o período. 

Larissa R. Corrêa é professora do Departamento de História da PUC-Rio, doutora em História Social do Trabalho pela Unicamp

    Mulheres, Ditaduras e Memórias – “Não imagine que precise ser triste para ser militante”

    Susel Oliveira da Rosa

    Número de páginas:
    328

    Editora:
    Intermeios/Fapesp

    Ano de publicação:
    2013

Notas

    1. Na epígrafe do livro encontra-se a frase completa de Michel Foucault: (…) não imagine que precise ser triste para ser militante, mesmo se a coisa que combatemos é abominável. É o elo do desejo à realidade (…) que possuiu uma força revolucionária.
    2. Yara Gouvêa publicou um livro junto com Danielle Birck sobre suas experiências no exílio e a militância política das mulheres durante o regime militar. Ver: Gouvêa, Yara; Birck, Danielle. Duas Vozes. São Paulo: Editora de Cultura, 2007.

Publicado em Teoria e Debate