Stalingrado vive!
“União Soviética, se juntássemos
todo o sangue derramado em tua luta,
tudo o que deste como mãe ao mundo
para que a liberdade agonizante vivesse,
teríamos um novo oceano,
grande como nenhum outro,
profundo como nenhum outro,
vivente como todos os rios,
ativo como o fogo dos vulcões araucanos.”
(Pablo Neruda,Canto Geral)
No dia 22 de junho de 1941, a Alemanha nazista iniciou a invasão do território soviético. Hitler violava, assim, um pacto de não agressão assinado em 1939. A operação militar denominada de Barbarossa visava a uma rápida conquista da antiga URSS. Naquele momento dramático, os exércitos alemães já ocupavam quase toda a Europa continental, incluindo a França. Todos os países atacados caíram rapidamente diante da poderosa máquina de guerra germânica.
Parecia que os objetivos nazistas logo se concretizariam. Em novembro já estavam nas vizinhanças da capital soviética, Moscou. O império alemão parecia indestrutível e os dias do único país socialista contados. Os reacionários de todo o mundo – inclusive alguns liberais ocidentais – torciam por isso. Stalin permaneceu na cidade ameaçada e de lá comandou as comemorações do aniversário da Revolução Russa. Um ato revestido de grande simbologia – que animou os soldados e a população.
Mas, no início de dezembro, o Exército Vermelho iniciou uma contraofensiva que levou os alemães a recuarem centenas de quilômetros, afastando o risco de uma queda imediata de Moscou. Esta foi a primeira grande derrota das forças nazi-fascistas desde o início da guerra. Nem tudo estava perdido para os antifascistas. A partir daí todos os olhos se voltavam para o que ocorria no Oriente da Europa. Ali se decidiria o futuro da humanidade: liberdade ou servidão.
No ano seguinte, sem conquistar Moscou, os alemães realizaram uma grande ofensiva ao sul da União Soviética. Os alvos eram os ricos campos de petróleo do Cáucaso e as vastas plantações de trigo no Volga. Se conquistados esses objetivos, ficaria gravemente comprometida a capacidade de resistência russa. Esta,portanto, passou a ser uma questão de vida ou morte para os combatentes.
Em agosto os invasores tomaram posse do monte de Elbruz, o pico mais alto das montanhas caucasianas. Ocuparam os campos petrolíferos de Maikop e atingiram a Mozdok, chegando perigosamente próximoaos principais centros petrolíferos. E no dia 23 o VI Exército, comandado pelo general Von Paulus, alcançou o rio Volga. Nuvens sombrias voltavam a pairar sobre o mundo.
Logo Stalingrado se transformou num dos principais objetivos estratégicos naquela sangrenta guerra. A cidade possuía cerca de 500 mil habitantes e era um centro industrial de certa importância. Contra ela os nazistas mobilizaram 36 divisões e, em setembro, chegaram a ocupar parte de seu território. A luta se tornou ainda mais encarniçada. O Exército Vermelho e o povo armado resistiram palmo a palmo. Verdadeiras batalhas eram travadas pela conquista de cada quarteirão, cada rua, cada casa, cada cômodo. Formaram-se milícias operárias. Um dos palcos desta luta heroica foi a Usina de tratores onde os trabalhadores entraram em luta desigual contra tropas invasoras fortemente armadas.
Milhares de aviões lançavam diariamente bombas incendiárias sobre a cidade mártir. Esses bombardeios visavam indistintamente a escolas, museus, hospitais, teatros e residências civis. Stalingrado se transformou numa grande fogueira, mas entre as brasas e as cinzas dos edifícios ainda se lutava, ainda se morria.
A invasão da URSS estava custando muito caro aos alemães, já desacostumados às derrotas. Haviam morrido 1.167.835 soldados. Então, o Alto Comando recorreu aos seus aliados fascistas – italianos, franceses, húngaros e romenos – e solicitou-lhes que enviassem tropas auxiliares. Até o generalíssimo Franco, cujo país não participava da guerra, mandou uma divisão. Uma pequena retribuição à Alemanha nazista pela sua ajuda no esmagamento da República espanhola alguns anos antes.
Em meados de 1942 as conquistas militares alemães haviam atingido o seu auge. Sua vitória parecia garantida. Era apenas uma questão de meses. Em junho haviam conquistado Tobruk e El-Alamein na África, e estavam às portas do Egito. As forças mais reacionárias comemoravam a derrota iminente –e simultânea – do socialismo e da democracia-liberal. Escreveu William Shirer: “O Mediterrâneo tornara-se, praticamente, um lago do Eixo. A Alemanha e Itália mantendo a maior parte da costa setentrional, desde a Espanha até a Turquia, e a costa meridional, desde a Tunísia até quase sessenta milhas distante do Nilo. As tropas alemãs mantinham guarda desde o cabo setentrional da Noruega, no oceano Ártico, até o Egito; do Atlântico, em Brest, até à parte sul do rio Volga, nas bordas da Ásia Central”.
O começo do fim… do nazismo
Contudo, na tarde de 19 de novembro, a tranquilidade do alto comando alemão foi abalada por uma “notícia alarmante” que vinha da frente oriental. No amanhecer daquele mesmo dia, em meio a uma violenta nevasca, os exércitos soviéticos haviam lançado uma grande ofensiva para libertar o país. As tropas alemãs no Cáucaso e no Don estavam sendo obrigadas a fugir para não serem dizimadas. Sinais de que as coisas estavam mudando no front.
Diante desse quadro, vários generais sugeriram a Hitler que retirasse as tropas que cercavam Stalingrado, pois eram elas, agora, que estavam ameaçadas de serem isoladas pelo inimigo. O Führer não aceitou a proposta. Para ele se tornou uma questão de honra não recuar. “Onde o soldado alemão puser o pé, aí permanecerá!”, gritou aos seus auxiliares. Uma decisão que condenou à morte centenas de milhares de seus homens. O VI Exército alemão, comandado pelo general Von Paulus, acabou cercado pelos soviéticos.
A situação do exército nazista na frente russa era desesperadora. A superioridade militar passava decididamente para o lado dos russos, que ainda tínhamos inverno rigoroso como aliado. No dia 8 de janeiro de 1943, foi oferecida aos sitiados a chance de se renderem. O disciplinado Von Paulus, sabendo que a situação estava perdida, pediu permissão a Hitler, que a recusou. Dois dias depois, os soviéticos bombardearam as frágeis posições dos alemães com cerca de cinco mil canhões. Era o dia da caça e não mais do caçador.
No dia 24, os soviéticos deram uma nova chance para a rendição. Von Paulus, novamente apelou para o seu Führer: “As tropas estão sem munição e sem mantimentos (…). Não é mais possível um comando eficaz. (…) Dezoito mil feridos sem quaisquer suprimentos, curativos ou remédios (…). É insensato prosseguir na defesa. Inevitável o colapso. O Exército solicita permissão para render-se, a fim de salvar as vidas dos soldados remanescentes”. A resposta de Berlim foi: “Proibida a rendição. O 6º Exército defenderá suas posições até o último homem e o último cartucho”, pois esta seria a sua contribuição alemã “para a salvação do mundo ocidental”.
Quando os nazistas comemoravam o décimo aniversário da tomada do poder, 30 de janeiro, Hitler resolveu promover Von Paulus à patente de marechal de campo. Esperava com este ato animar o combalido general e impedir a sua rendição. Afinal, pensava ele, “não há registro, na história militar, de ter sido aprisionado um marechal de campo alemão”. Para espanto geral, no dia seguinte, o novíssimo marechal de campo e todo o seu Estado Maior na frente oriental se renderam ao Exército Vermelho. Foi assim – com um dia de atraso – que os soldados soviéticos presentearam Hitler pelos seus 10 anos à frente do governo alemão.
Os russos haviam destruído um exército composto de mais de trezentos e trinta mil homens e fizeram mais de 90 mil prisioneiros, entre eles vinte e quatro generais e um marechal de campo. Ao fim de tudo, como afirmara o poeta francês Aragon, “não foi Stalingrado que caiu, mas a própria dominação hitlerista”.
A segunda frente na Europa
Durante o auge do conflito, a URSS insistiu para que os aliados abrissem uma segunda frente na Europa, com o objetivo de aliviar a pressão nazista sobre os exércitos soviéticos que bravamente resistiam em Stalingrado e outras regiões. Naquele momento cerca de ¾ do poderio militar alemão enfrentavam os russos na frente oriental. Churchill e Roosevelt se comprometeram várias vezes em criar uma nova frente de combate, mas tinham dificuldades em cumprir suas promessas. Ocorreu, então, uma grande campanha internacional denunciando a inação dos comandos militares aliados, que permitia que um único país arcasse com todo o peso da resistência contra a besta nazi-fascista, e exigindo que fosse iniciada uma ofensiva militar na parte ocidental da Europa.
Na época suspeitava-se de que alguns “aliados” desejavam ver a Alemanha e a URSS se desgastarem ao máximo para só depois intervirem. Afinal, Harry Truman, futuro presidente dos EUA, havia declarado ao New York Times, em 24 de julho de 1941, pouco depois da ocupação alemã à URSS: “Se virmos a Alemanha ganhar, devemos ajudar os russos. Se a Rússia estiver por cima, devemos ajudar os alemães, de modo que eles se matem uns aos outros.” Assim pensavam eminentes políticos ocidentais, que se diziam liberais e democráticos.
Somente em junho de 1944, quando já estava claro que os exércitos soviéticos poderiam vencer sozinhos a guerra na Europa, os anglo-americanos desembarcaram nas praias da Normandia – no famoso Dia D –, e também marcharam céleres em direção a uma Alemanha já enfraquecida. O alto-comando alemão tendo que decidir quem tomaria a sua capital, fortaleceu ainda mais suas defesas no lado oriental. Isso facilitou o avanço das tropas inglesas e estadunidenses. Afinal, estas faziam parte da civilização ocidental e cristã, como a Alemanha nazista.
As causas da vitória
Vários fatores foram importantes para a vitória soviética. O primeiro deles foi a resistência heroica de seu povo. Ali se tratou não de uma guerra convencional, mas de uma guerra popular de libertação nacional. Toda a nação se envolveu na defesa da pátria-mãe, como dizia a propaganda governamental. O armamento geral do povo era uma prova de unidade existente entre os dirigentes do Estado, o Exército e a população na busca de um mesmo objetivo: libertar o país dos invasores nazistas. Os governos burgueses sempre resistiram em envolver o povo nos conflitos armados, não por amor a ele, mas por temerem que a situação pudesse sair do seu controle. Em geral, preferiram capitular sem luta, como foi trágico caso francês.
Contribuiu também para a vitória a firmeza do governo soviético, liderado por Stalin, que entre outras coisas se recusou a abandonar a capital, mesmo diante da ameaça de ocupação militar iminente. Isto deu maior confiança ao povo e aos exércitos em luta. Da mesma forma contribuiu a capacidade tática dos seus oficiais.
Mas tudo isto não garantiria a vitória se não existisse, em pleno funcionamento, uma economia de caráter planificado. Ela permitiu a realização de tarefas inimagináveis em outros países. Assim, o governo pôde se aproveitar dos poucos anos em que vigorou o pacto de nãoagressão germânico-soviético (1939-1941) e transferir inúmeras indústrias estratégicas para a parte mais oriental do país. Decisão que garantiu que a produção destinada à guerra não fosse tão afetada pela ofensiva alemã entre 1941 e 1942.
Durante os primeiros dias da ocupação alemã quase todos os aviões de combate haviam sido destruídos. Porém, nos anos que se seguiram, foram produzidas mais de 800 mil aeronaves. Assim, os soviéticos puderam retomar o domínio sobre o seu espaço aéreo. Em março de 1942 o nível da produção industrial bélica somente no Leste já era igual ao nível atingido em todo o território soviético durante o período anterior. Apenas no ano de 1944 a URSS produziu mais de 400 mil tanques. Como dissemos, um esforço de tal monta seria impossível num país em que predominassem a propriedade privada e os interesses particulares de cada proprietário. Portanto, nesse campo, o socialismo mostrou-se bem mais eficiente que o seu rival capitalista.
Kruschev e o revisionismo histórico
Algumas décadas depois, visando a destruir o chamado culto à personalidade promovido por Stalin, o novo primeiro-ministro e secretário-geral do PCUS, Nikita Kruschev, acabou cometendo um atentado contra a própria história do povo soviético. Uma de suas polêmicas medidas foi mudar o nome da cidade de Stalingrado para Volgogrado. Em sua autobiografia, a batalha de Stalingrado reduziu-se ao debate em torno da mudança do comando de operações de um lado para outro do Volga, defendida por ele contra a vontade de Stalin, e algumas curiosidades antissoviéticas, bem ao gosto da literatura ocidental. Destaca o trágico acidente em que soldados russos atiraram sobre seus próprios compatriotas quando desciam de paraquedas; a suspeita de que soldados soviéticos haviam executado prisioneiros alemães, contra as suas ordens. Porém, nada nos diz sobre o heroísmo do seu próprio povo: dos operários armados defendendo as fábricas, dos soldados resistindo casa por casa, se entregando ao fogo inimigo aos gritos de viva a Rússia! Abaixo o fascismo!
Até a guerra civil que se seguiu à Revolução Russa, Stalingrado se chamava Tsaritsyn. Quando, nas cercanias daquela cidade, Stalin infringiu uma derrota aos exércitos contrarrevolucionários chefiados pelo general Denikin, o lugar mudou de nome em sua homenagem. Petrogrado, por sua vez, seria rebatizada como Leningrado.
Seguindo as pegadas de Kruschev, no início da década de 1990, o renegado Boris Yeltsin alterou o nome de Leningrado, que voltou a se chamar SanPetersburgo – talvez, no fundo, pretendesse restaurar o czarismo. A cidade de Leningrado, além de importante referência na Revolução de Outubro, foi outro importante baluarte da resistência contra a ocupação nazista. Ela resistiu a um cerco que durou mil dias e no qual a maior parte de sua população morreu de doenças e de fome.
Estas foram tentativas insanas de apagar a história que o povo soviético, com seu suor e sangue, ajudou a construir. A contrarrevolução tinha necessidade de acertar contas com o passado e o fez. Contudo, os nomes Stalingrado e Leningrado ainda vivem e viverão na memória dos homens e mulheres que sonham e trabalham para um mundo melhor, sem a opressão fascista e imperialista. Permanecerão vivas também nos documentos artísticos e nos depoimentos honestos dos homens do seu tempo. Melhor exemplo disso é o contundente poema que Carlos Drummond de Andrade dedicou a Stalingrado:
“A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.
Os telegramas de Moscou repetem Homero.
Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo
que nós, na escuridão, ignorávamos.
Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,
na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,
no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas,
na tua fria vontade de resistir.
Saber que resistes.
Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes.
Que quando abrirmos o jornal pela manhã teu nome (em ouro oculto)
estará firme no alto da página.
Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas valeu
a pena.
Saber que vigias, Stalingrado,
sobre nossas cabeças, nossas prevenções e nossos confusos
pensamentos distantes
dá um enorme alento à alma desesperada
e ao coração que duvida.”
***
Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem”.
* Originalmente publicado no Sítio Vermelho em janeiro de 2003.
** Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.