O Estado nas obras históricas

O que são as obras históricas? Não são propriamente textos teóricos no sentido estrito e sim histórico-políticos. Elas, contudo, nos oferecem o que Nicos Poulantzas chamou de “noções práticas”. É através delas que poderemos construir um conceito de Estado em geral e de Estado capitalista em particular. Estas obras foram escritas entre 1848 e 1852 (Luta de Classes na França e Dezoito Brumário de Louis Bonaparte) e em 1871 (Guerra Civil na França). A última, talvez, não se encaixe perfeitamente na definição de obra histórica, pela tentativa realizada de sistematização teórica da experiência histórica da Comuna de Paris.

Antes de entramos na análise das obras históricas, analisaremos brevemente o texto escrito no final de 1847 e publicado no início do ano seguinte, refiro-me ao Manifesto do Partido Comunista. Considerado, por muitos, como uma das primeiras obras do marxismo maduro. Este também não pertence às obras ditas históricas por sua preocupação teórica/conceitual, quase pedagógica.

No Manifesto Marx e Engels definem o “Estado representativo moderno” como um “comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa” e o objetivo dos comunistas diante dele é “a derrubada da supremacia burguesa e a conquista do poder político pelo proletariado”. E, com isso, “a conquista de democracia.”

Após a revolução, o proletariado deverá utilizar a sua supremacia política “para arrancar pouco a pouco todo o capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, nas mãos do proletariado organizado em classe dominante, e para aumentar, o mais rapidamente possível, o total das forças produtivas”. 

Neste momento, como disse Lênin em O Estado e a Revolução, a questão do Estado ainda esta “posta de uma forma muito abstrata, nos termos e expressões mais gerais. A questão de saber em que consiste a substituição do Estado burguês pelo Estado proletário não é tratada no Manifesto, e nem podia ser. Esta questão – e outra: quais instituições estatais o proletariado deveria erigir ao se organizar como classe dominante – só começaria a ser resolvida a partir de 1848, após os grandes embates revolucionários, e principalmente em 1871 quando da eclosão da Comuna de Paris”.

Logo após a sua publicação, uma violenta onda revolucionária varreu a Europa e teve na França o seu palco privilegiado. Uma revolução burguesa, numa conjuntura em que o proletariado já era uma força destacada. Uma revolução burguesa (fevereiro) que se transformou num levante operário (junho). Marx escreveu: “O 25 de junho deu à França a República, enquanto o 25 de junho lhe impôs a revolução. E, desde junho, a revolução significava a subversão da ordem burguesa ao passo que, antes de fevereiro, havia significado a subversão de uma forma de governo (…) E nós bradamos: A revolução está morta! Viva a revolução!”.

Entre 1848 e 1952 Marx redigiu duas obras fundamentais Luta de Classes na França e o Dezoito de Brumário de Louis Bonaparte. Estudando as experiências da Revolução de Junho de 1848, constatou que a revolução burguesa desenvolveu a centralização e a burocratização do Estado. Afirmou: “Esse poder executivo, com sua imensa organização burocrática e militar, com seu mecanismo complicado e artificial, esse exército de mais de meio milhão de funcionários, esse espantoso parasita que, como uma rede, envolve o corpo da sociedade e lhe tapa os poros, nasceu na época da monarquia absoluta, no declínio do feudalismo que ele ajudou a precipitar”. Continuou: “A revolução francesa desenvolveu a centralização (…). Napoleão completou esse mecanismo. A monarquia legítima e a monarquia de julho nada lhe acrescentaram de novo, salvo uma maior divisão de trabalho (…). Por fim, a república parlamentar, na sua luta contra a revolução viu-se obrigada a reforçar suas medidas repressivas, os recursos e a centralização do poder governamental. Todas as subversões aperfeiçoaram essa máquina, em vez de despedaçá-las. As duas instituições mais típicas dessa máquina governamental são a burocracia e o exército permanente”.

Pela primeira vez aparecia na obra de Marx o conceito de Ditadura do Proletariado (em contraposição a ditadura da burguesia). Escreveu: “Surgia agora a audaciosa palavra de ordem revolucionária: Derrube a burguesia! Ditadura da classe operária”. E a ditadura do proletariado não seria nada mais que “o ponto de trânsito necessário para a abolição de todas as relações de produção em que aqueles se apóiam”.

A importância desta descoberta será realçada pelo próprio autor. Numa carta a Weidemeyer (1852) esclareceu: “O que fiz de novo consiste na demonstração de que: 1º) a existência das classes só se prende a determinadas fases do desenvolvimento histórico relacionadas ao desenvolvimento da produção; 2º) a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 3º) essa própria ditadura é apenas a transição para a supressão de todas as classes e para a formação de uma sociedade sem classes.”

Marx começava a responder pelo que substituir a velha máquina governamental do Estado burguês. Mas a resposta ainda era genérica, não se propondo a prever como deveria ser a “máquina que deveria ser criada”, ou seja, as instituições políticas do novo Estado proletário. A história, em breve, ajudaria a elaborar algumas respostas mais concretas.

A principal diferença dentre as concepções do jovem Marx e do Marx pós-1848 é que para o primeiro, como afirmou Décio Saes, “o poder executivo era o poder da burocracia sobre a sociedade civil e o poder legislativo uma encenação da ‘vontade geral’”. Pelo contrário, continua o autor, no Marx maduro, “o poder executivo e o legislativo eram espaços distintos para o exercício do poder político pela classe dominante (exploradora): exercício indireto no caso do Poder Executivo, exercício direto (…) no caso do Poder Legislativo”. Para o jovem Marx, o parlamento estaria “destituído de qualquer capacidade decisória, cumprindo apenas uma função ideológica de ocultar, através de seu funcionamento (…) a dominação da burocracia sobre a sociedade civil; no Marx maduro o parlamento é um órgão do aparelho de Estado através do qual as classes dominantes podem eventualmente governar”.

Em tese, a classe dominante tenderia a preferir o exercício direto do poder político através do parlamento. Porém, “em certas condições políticas relacionadas ao nível da luta de classes, prefere ceder o exercício do seu poder à burocracia estatal. Esta decisão se dá, geralmente, nos momentos em que o proletariado através de sua luta e participação política ameaça transformar o ‘regime parlamentar’ num ‘regime de desordem’, colocando em perigo a dominação de classe”. (Saes)

Foi a Comuna de Paris (1871) que forneceu os elementos para a construção de uma teoria da transição e ofereceu respostas mais adequadas para a questão de quais tipos de instituição política deveriam ser criados em substituição às velhas estruturas burocráticas do Estado burguês. Um exemplo concreto de que a teoria ilumina a prática, mas a prática social também pode enriquecer a teoria. Marx e Engels foram à escola da Comuna para construir e aperfeiçoar sua teoria revolucionária. 

A Comuna parisiense fez com que tivessem que retificar o Manifesto do Partido Comunista em alguns pontos, que se encontravam “envelhecidos”. No Prefácio de 1872 afirmaram: “A Comuna demonstrou que não basta à classe operária se apoderar da máquina do Estado para adaptá-la aos seus próprios fins”. Ainda em abril de 1871 (após os sangrentos acontecimentos de março) Marx escreveu a Kugelman: “Já no último capítulo do meu Dezoito de Brumário afirmei que a revolução na França deve tentar, antes de tudo, não passar para outras mãos a máquina burocrática e militar – como se tem feito até aqui, mas quebrá-la. Eis a condição de qualquer revolução popular no continente. Eis o que tentaram nossos heroicos camaradas de Paris.”

Quais as medidas adotadas pela Comuna que chamaram a atenção de Marx e Engels e que apontavam para a superação do Estado burguês?

1. Supressão do exército permanente e sua substituição pelo povo em armas;
2. separação da igreja do Estado;
3. eleição dos conselheiros municipais por sufrágio universal. Os conselheiros, e todos os funcionários públicos, poderiam ser removidos a qualquer momento por vontade popular – mandatos imperativos;
4. fim do parlamentarismo burguês – da separação das funções executivas e legislativas;
5. fim das funções políticas da polícia que passou a ser submetida à Comuna;
6. estabelecimento de uma remuneração pública não superior ao salário médio dos operários parisienses;
7. eleição dos juízes que passam a ter também mandatos imperativos.

E concluiu Marx: “A Comuna (…) substitui a máquina do Estado quebrada por uma democracia mais completa (…). É esse (…) um caso de transformação de quantidade em qualidade: a democracia, realizada tão plenamente e tão metodicamente quanto é possível sonhar, tornou-se proletária de burguesa que era; o Estado (…) transformou-se numa coisa que já não é, propriamente falando, o Estado (…) uma vez que é a própria maioria do povo que oprime os seus opressores, já não há necessidade de uma ‘força especial’ de repressão. É neste sentido que Estado começa a definhar”.

Engels e a Origem do Estado

Finalizando a análise da construção do conceito de Estado em Marx gostaríamos de nos deter numa obra que não é de Marx, embora tenha muito dele: A origem da família, do Estado e da propriedade privada (1884). Esta obra de Engels foi elaborada a partir de anotações do próprio Marx sobre o livro de Lewis Morgan intitulado A sociedade antiga. O livro de Engels é a única obra clássica do marxismo a tratar sistematicamente do problema da formação do Estado.

O Estado seria o “produto de uma sociedade que chegou a um determinado nível de desenvolvimento, é a confissão de que a sociedade se envolveu numa contradição insolúvel consigo mesmo, de que ela está cindida por antagonismos irreconciliáveis sendo incapaz de eliminá-los. Mas a fim de que esses antagonismos (…) não destruam a si mesmo e a própria sociedade numa luta estéril, nasce a necessidade de uma potência que se coloque aparentemente acima da sociedade, que amenize o conflito e que mantenha nos limites da ordem. Este poder, que procede da sociedade mas que se coloca acima dela, é o Estado.”

O autor apontou quatro características básicas do Estado: 1º) O Estado divide os súditos segundo o território; 2º) O poder público já não corresponde ao povo em armas, nascem a burocracia e o militarismo; 3º) Exigência de elementos materiais de coação: prisões, tribunais etc. 4º) exigência de impostos e órgãos arrecadadores para manutenção da máquina estatal.

A obra de Engels foi um momento brilhante da elaboração de uma teoria marxista do Estado: suas origens e sua função social. No entanto, continuaria faltando uma análise específica de um Estado num modo de produção ou formação social concretos. Cada modo de produção e formação social é regido por leis particulares, como alertava o próprio Marx. No seu Prefácio à Crítica da Economia Política ele afirmou: “Existem leis econômicas gerais válidas para todas as formações sociais (…) elas devem ser sempre levadas em consideração, mas não explicam por si só nenhum sistema econômico determinado” e continuou: “cuidado com as leis gerais. Elas existem a nível de abstração, mas com elas não se pode explicar o que é o capitalismo, o feudalismo, o escravismo. É preciso identificar as leis específicas”.

Esta advertência vale também para a teoria do Estado. Dizer que o Estado é a expressão da dominação de uma classe sobre a outra – afirma-se uma tese de enorme alcance, mas é sempre uma afirmação genérica. Mas, concordamos com Luciano Gruppi quando afirmou que a obra de Engels “constitui (…) um passo revolucionário, explosivo, pois desvendou aquilo que a ideologia burguesa sempre escondeu, a natureza de classe do Estado”. Os próximos passos no sentido de construção de uma teoria do Estado nas formações sociais, especialmente capitalista, seriam dados por Gramsci, Althusser, Poulantzas e Milliband entre outros. Mas esta já é outra história.

* Este ensaio foi escrito na década de 1990 e foi muito influenciado pelo artigo do professor Décio Saes (ver bibliografia) – um dos principais estudiosos e teóricos da teoria política marxista.

** Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

BIBLIOGRAFIA

ENGELS, F. A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.
LÊNIN, V. I. El Marxismo y el Estado. Madri: Júcar, 1978.
________. O Estado e a Revolução. São Paulo: Hucitec, 1986.
MARX, K. A Guerra Civil na França. Lisboa/Moscou: Avante, 1984.
________. A Liberdade de Imprensa. Porto Alegre: LPM, 1980.
________. A Questão Judaica. Moraes.
________. As Lutas de Classes em França. Lisboa/Moscou: Avante, 1982.________. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Lisboa: Presença, 1983.
________. Crítica do Programa de Gotha. Porto: Portucalense, 1971.
________. “Contribuição à História da Liga dos Comunistas”. In: Obras Escolhidas, vol. 3. São Paulo: Alfa-Ômega, 1982.
________. O 18 de Brumário de Louis Bonaparte. Lisboa/Moscou: Avante, 1982.
________. “Prefácio à Contribuição à crítica da economia política”. In: Obras Escolhidas, vol. 1. São Paulo: Alfa-Ômega, 1982.
MARX, K. & ENGELS, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo: Hucitec, 1984.
________. “Cartas”. In: Obras Escolhidas, vol. 3. São Paulo: Alfa-Ômega, 1982.
________. O Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Anita Garibaldi, 1989.
MARX, K. & RUGE, A. Los Anales Franco-alemanes. Barcelona: Martinez Roca, 1973.
SAES, Décio. “Do Marx de 1943-1844 ao Marx das Obras Históricas”. In: Estado e Democracia: Ensaios Teóricos. São Paulo: IFCH-Unicamp, 1994.