Debate resgata atualidade da leitura marxista de Althusser
Mais do que um manual, em Para Ler o Capital, Althusser se propõe o esforço de remover uma enorme massa de mal entendidos e preconceitos ideológicos que atrapalham a compreensão da obra de Marx, para permitir toda a fecundidade e a riqueza de conceitos que esta obra estabeleceu e permite formular. Em dias em que conceitos como esquerda, ideologia e comunismo são flagrantemente utilizados nos meios de comunicação e pela sociedade com sentidos totalmente desvirtuados, reler O Capital sob a ótica de Althusser parece bem apropriado.
Professor da Faculdade de Direito da USP e da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Alysson Mascaro, optou por uma abordagem bastante didática das contribuições de Althusser, ao apoiar conceitos complexos como ideologia, em alegorias de fácil compreensão. Ao professor Quartim de Moraes, da Faculdade de Filosofia da Unicamp, restou ir direto ao ponto nas polêmicas que afastaram a academia de Althusser e do marxismo nas últimas décadas, num movimento que acompanhou a euforia liberal em torno do fim da União Soviética.
Mascaro lembra que a obra de Althusser se afirmou num momento em que a maioria intelectual negava o marxismo. Mais que isso, o francês ousou afirmar o marxismo como ciência, e, mais que isso, como “a Ciência”, ao apontar leis de funcionamento da economia e da sociedade. Nos anos do pós-modernismo que grassou nas últimas décadas neoliberais, o marxismo volta a ser tratado como apenas uma das narrativas (em crise), entre tantas. Movimento que se inverta, conforme os conceitos que definem a luta de classes se tornam cada vez mais cristalinos na explicação da atual crise do capitalismo.
Numa de suas exemplificações cotidianas, Mascaro cita um parlamentar que propõe uma lei que proíbe o ensino de ideologia nas escolas, sob pena de prisão. Um tipico lance reacionário desses dias sombrios de ascensão da direita no Brasil. Refletindo sobre como o conceito de ideologia é entendido por estes setores mais ignorantes da sociedade, Mascaro chama a atenção para a armadilha em que pessoas de esquerda acabam sendo fisgados ao assumir que sua ideologia de esquerda é tão válida quanto a ideologia de direita.
Ele apresenta o conceito de ideologia discutido por Althusser em toda a sua complexidade ao explicar seu sentido pleno que invade todas as relações cotidianas, práticas sociais e ritos da vida com o objetivo de naturalizar o sistema de classes e apagar suas contradições. O modo como a ideologia cerca o indivíduo em todos os âmbitos de sua vida, é o que garante que pobres justifiquem o elitismo, mulheres se submetam e defendam o machismo, negros tentem minimizar a gravidade de práticas racistas e homossexuais pratiquem discurso homofóbico contra seus semelhantes, por exemplo. “Como desarmar isso e tomar consciência da exploração para transformar a sociedade?”, diz Mascaro, sugerindo ser esta a indagação que permeia a obra de Marx e, por consequência, de Althusser.
Mascaro citou o caso recente do ginasta negro que, após ser publicamente ofendido por colegas, ajudou-os a se justificarem minimizando o crime cometido. “A ideologia vem das práticas materiais e concretas. É a prática de ajoelhar que leva a pessoa a ser católica, não uma decisão consciente”, exemplificou.
É desta forma que o conceito de “aparelhos ideológicos de estado” surge em Althusser como ferramentas que conformam a ideologia. “Os meios de comunicação de massa, a escola, a família, entre outros, são aparelhos sustentando a reprodução do capital e repetindo para as classes exploradas que a regulamentação da terceirização vai gerar mais empregos”, comentou ironicamente Mascaro, lamentando que os últimos governos progressistas não tenham feito uma disputa mais assertiva dos meios de comunicação e da própria estrutura de Estado, para garantir condições melhores para a transformação social.
Quartim começou sua reflexão questionando como se dá a viragem em que o marxismo deixa de ser a principal referência de leitura social, situando o momento histórico em que o socialismo do leste europeu foi sendo minado e atacado por todas as frentes, inclusive internas, até sua derrocada. “A direita odeia Stalin por suas qualidades, não por seus defeitos, assim como desmontou a União Soviética para apagar o que ela representava de melhor, não para resolver suas contradições”, disse o filósofo.
Quartim referiu-se aos setentas anos, celebrados agora, da vitória do Exército Vermelho sobre o exército nazista alemão, como um exemplo de como esse apagamento das melhores referências históricas vão se conformando no mundo atual, de hegemonia capitalista. Ele lembrou o comportamento vergonhoso de ingleses e franceses durante a 2a. Guerra Mundial, ao evitar o enfrentamento dos alemães e permitir tanta barbárie, enquanto o povo soviético nunca deixou de enfrentar e pagar com a vida de milhões a vitória magnífica sobre Hitler. Um fato histórico que gradualmente vai sendo omitido, apagado e propositalmente esquecido, inclusive pela universidade, para evitar a lembrança das maiores virtudes do comunismo.
Ele ainda lamentou “o momento mais baixo da história”, em que Althusser morre, ao testemunhar o fim do socialismo europeu e a ascensão e consolidação esplendorosa do capitalismo financeiro mais selvagem que já dominou a humanidade.
O debate prosseguiu a partir de elaborações mais complexas dos conceitos já apresentados, do questionamento das contradições do marxismo humanista defendido por alguns autores, e a contribuição de outros grandes pensadores, como Freud e Lacan, para a reflexão sobre ideologia. Vários participantes da plateia fizeram intervenções que foram comentadas pelos palestrantes.