É amplamente reconhecido que as últimas três décadas marcam uma ruptura significativa com a ordem social, política, econômica e cultural que caracterizou os decênios que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Ocorreram mudanças básicas como o enfraquecimento e a transformação dos Estados de Bem-Estar Social do capitalismo ocidental, o colapso ou a metamorfose fundamental dos Estados burocráticos do Leste europeu e o solapamento dos Estados desenvolvimentistas no que se convencionou chamar de Terceiro Mundo. De modo geral, as décadas recentes viram o enfraquecimento da soberania econômica estatal nacional e a emergência e consolidação da ordem global neoliberal. Por um lado, a vida social, política e cultural tornou-se cada vez mais global; por outro, tornou-se cada vez mais descentrada e fragmentada.

Essas mudanças ocorreram no contexto de um longo período de estagnação e crise: desde o começo dos anos 1970, a taxa de crescimento dos salários reais diminuiu dramaticamente – eles permaneceram geralmente inalterados ó, taxas de lucro estagnaram e as taxas de produtividade do trabalho baixaram. No entanto, esses fenômenos da crise não levaram ao ressurgimento dos movimentos da classe trabalhadora. Ao contrário, as décadas passadas assistiram ao declínio dos clássicos movimentos de trabalhadores e à emergência dos novos movimentos sociais, freqüentemente caracterizados por políticas de identidade, incluindo movimentos nacionalistas, movimentos políticos relacionados à livre orientação sexual e várias formas de “fundamentalismo” religioso. Um acerto de contas com as transformações de larga escala das três últimas décadas, então, requer levar em consideração não apenas o declínio econômico de longo prazo, ocorrido desde o início da década de 1970, mas também mudanças importantes na vida social e cultural.

É contra o pano de fundo desta problemática que desejo discutir três trabalhos muito importantes– de Robert Brenner, Giovanni Arrighi e David Harvey1 – que tratam das transformações em curso. Este artigo tem a intenção de ser preliminar. Ele não pretende fornecer uma análise crítica definitiva das obras desses três autores, mas aborda trabalhos específicos deles em um nível metateórico, focando nos seus pressupostos teóricos de forma a problematizar a natureza e as características de uma teoria crítica adequada do capitalismo atual.

Por que uma teoria do capitalismo, ou melhor, uma teoria do capital? Deixe-me começar com uma observação que Harvey e outros fizeram em relação ao período de prosperidade do pós-guerra, entre 1949 e 1973: Estados ocidentais produziram de maneira similar crescimento econômico estável e elevação dos padrões de vida – através de uma combinação de Estado de Bem-Estar Social, política econômica keynesiana e controle das relações salariais – mesmo que partidos políticos muito diferentes estivessem no poder2. Seria possível acrescentar que em todos os Estados ocidentais essa síntese do Estado de Bem-Estar Social recuou nos anos 1970 e 1980 independentemente de que partido estivesse no poder.

Esses desenvolvimentos históricos de larga escala podem ser compreendidos com referência a um padrão histórico mais abrangente: a ascensão e queda da organização centrada no Estado da vida econômica e social, da aparente primazia do político sobre o econômico. O início desse período pode ser localizado, grosso modo, na Primeira Guerra Mundial e na Revolução Russa; o seu fim pode ser observado na crise da década de 1970 e na emergência subseqüente da ordem global neoliberal. Esta trajetória geral foi global. Ela englobou países capitalistas ocidentais e a União Soviética, assim como terras colonizadas e países descolonizados. Quando vistos com referência a essa trajetória geral, diferentes desenvolvimentos aparecem mais como diferentes inflexões de um padrão comum do que como desenvolvimentos fundamentalmente diferentes. O caráter geral do padrão histórico de larga escala que estruturou grande parte do século XX sugere a existência de imperativos estruturais e restrições gerais que não podem ser adequadamente explicados em termos locais e contingentes.

Então, a consideração do padrão histórico geral que caracteriza o século XX coloca em questão compreensões pós-estruturalistas da história como um processo essencialmente contingente. Isto, contudo, não implica necessariamente ignorar o achado crítico que fundamenta as tentativas de lidar com a história de modo contingente – em outras palavras, que a história, compreendida como o desdobramento de uma necessidade imanente, pode ser entendida como expressão de uma forma de opressão.

Essa forma de opressão é o objeto da teoria crítica do capitalismo de Marx, a qual está preocupada, em primeiro lugar, em delinear e fundamentar os imperativos e as restrições que geram a dinâmica histórica e as mudanças estruturais do mundo moderno. A crítica do capital não nega a existência de opressão histórica por se focar na contingência. Ao contrário, ela busca analisar essa opressão social historicamente, desvelando sua base, e aponta para a possibilidade de sua superação. Em outras palavras, uma teoria crítica adequada do capital busca elucidar a dinâmica do mundo moderno e o faz a partir da perspectiva imanente da possibilidade de sua transformação. Essa teoria crítica do capitalismo, da dinâmica histórica da modernidade, a meu ver, pode fornecer a melhor base para uma abordagem rigorosa das transformações globais das três décadas passadas. Ela só pode realizar isto, entretanto, na medida em que pode lidar adequadamente com as profundas alterações sociais e culturais, assim como econômicas, das últimas décadas.

Os três autores de que estou tratando buscam compreender essas transformações recentes com base em uma teoria crítica do capitalismo. Em “The economics of global turbulence”, Robert Brenner reúne muitas evidências (dados sobre salários reais, taxas de lucro, taxas de produtividade do trabalho e taxas de crescimento) para demonstrar que a economia mundial está basicamente estagnada há trinta anos3. Escrevendo no fim dos anos 1990, Brenner argumenta contra a ilusão, disseminada naquele período (na realidade, uma ilusão capitalista recorrente), de que o problema dos ciclos econômicos foi solucionado, que os ciclos foram deixados para trás. Sua principal preocupação não é apenas explicar o declínio econômico do início dos anos 1970, mas também explicar por que ele persistiu por tanto tempo. A queda da lucratividade, anunciando o fim do boom do pós-guerra, começou na metade dos anos 1960, de acordo com Brenner, e não, como muitos argumentaram, entre 1969 e 19724. Isto, de acordo com Brenner, contradiz o que ele chama de teorias da “oferta” [“supply-side” theories], que atribuem o declínio, assim como sua duração, à crescente pressão sobre os lucros exercida pelos trabalhadores, já que indica que o declínio foi anterior a essa pressão5. Além disso, abordagens que se focam no trabalho necessariamente observam a situação específica de cada país. Elas não conseguem explicar as características mais salientes do declínio do final do século XX: que o seu começo e suas várias fases foram universais e simultâneas – englobando economias fracas com fortes movimentos de trabalhadores (Reino Unido) e economias fortes com fracos movimentos de trabalhadores (Japão) – e que o declínio durou tanto tempo6. Tomando por base essas considerações, Brenner argumenta que a explicação do declínio e do fracasso subseqüente das economias para se adaptarem deve estar situada no nível do sistema internacional como um todo7. A queda na taxa de lucro não foi resultado de fatores tecnológicos, de pressões trabalhistas ou de controles políticos, de acordo com Brenner, mas, mais fundamentalmente, foi resultado da concorrência no mercado internacional e do desenvolvimento desigual8.

É central à análise de Brenner o argumento geral de que o capital em uma indústria particular não pode ser facilmente desviado para outra quando grande parte dele se encontra na forma de capital fixo. Conseqüentemente, nessa situação, concorrência crescente, resultando em menores taxas de lucro, não leva ao desvio do capital para outras áreas como prevê a teoria econômica predominante, mas à superprodução sistêmica. Portanto, o declínio decorrente de superprodução não resulta na prevista eliminação dos concorrentes menos eficientes [shakeout], a qual seria então seguida por uma recuperação, mas resulta, sim, em uma queda de longo prazo da taxa de lucro.

Especificamente, Brenner argumenta que, como resultado da devastação causada pela Segunda Guerra Mundial, havia basicamente uma única oficina no mundo no imediato pós-guerra– os Estados Unidos. Nos anos 1960, contudo, os Estados Unidos passaram a ser desafiados pelas economias da Alemanha e do Japão. Em decorrência do investimento das empresas americanas em capital fixo – por exemplo, na indústria automobilística ó, elas continuaram a produzir em seus níveis anteriores, não obstante os alemães e os japoneses estarem expandindo sua produção (automobilística). O resultado foi uma superprodução endêmica global9.

O argumento de Brenner relaciona crises de superprodução no capitalismo com as contingências da concorrência. Não fossem por essas contingências, as empresas saberiam quanto elas deveriam investir em capital fixo. Mas elas não têm e não podem ter esse conhecimento; portanto, elas estarão sujeitas a pressões imprevisíveis. Devido ao seu investimento em capital fixo, entretanto, elas não podem se permitir recuar e investir em outro lugar. Em vez disso, elas são impelidas a lutar por fatias de mercado. Conseqüentemente, os lucros caem. Empresas tentam contrabalançar esta tendência de queda dos lucros pressionando o trabalho, destruindo sindicatos e cortando benefícios sociais e previdenciários10.

A interpretação de Brenner do boom e da queda esclarece com sucesso elementos importantes do longo declínio, especialmente seu caráter global. Mostra claramente que o capitalismo constitui uma ordem global – uma ordem, no entanto, que é disfuncional. Sua interpretação é uma retificação útil do discurso econômico predominante. Ela demonstra a inadequação da compreensão dos fluxos de capitais resultantes da concorrência e o caráter ilusório da noção recorrente de que os ciclos econômicos são uma coisa do passado. A abordagem de Brenner contradiz também a idéia disseminada de que o longo declínio do final do século XX emergiu como resultado das – e resposta às – vitórias da classe trabalhadora entre 1968 e 1972, e fornece uma base para criticar a análise da Escola da Regulação acerca do declínio do fordismo e da emergência do regime pós-fordista11.

Apesar do exame aprofundado de Brenner do longo declínio do final do século XX, ele não aborda adequadamente outras dimensões, importantes, das transformações das décadas recentes. Nesse sentido, sua abordagem não fornece uma interpretação adequada da mudança histórica. Sua análise do longo declínio com referência à concorrência internacional e à superprodução sistêmica ilumina dimensões importantes dessa crise. No entanto, não há indicação, na interpretação de Brenner, de uma alteração nas dimensões social, cultural e política da vida que poderia ser relacionada com os processos econômicos que ele discute. O foco de Brenner na economia é tal que não se evidencia que o contexto histórico geral do final do século XX é em alguma medida diferente de períodos anteriores de declínio e rivalidade intercapitalista. Isto é, Brenner não tematiza a questão das mudanças históricas qualitativas na sociedade capitalista. Assim, quando ele critica a Escola da Regulação, ele não fornece uma abordagem alternativa para uma dimensão central dessa perspectiva teórica – a preocupação com as mudanças sociais e culturais fundamentais que ocorrem com a emergência daquilo que os teóricos regulacionistas chamam de novo modo de regulação.

Entretanto, se uma teoria crítica do capitalismo deve lidar de forma adequada com as transformações históricas das últimas três décadas, ela não pode elucidar apenas desenvolvimentos econômicos, compreendidos restritivamente, mas deve ser capaz de iluminar mudanças na natureza da vida social e cultural dentro da estrutura do capitalismo. Só assim uma teoria crítica do capitalismo pode se reivindicar como uma teoria crítica do mundo moderno, isto é, de uma forma objetiva/subjetiva de vida social historicamente específica, e não uma teoria de uma organização econômica determinada ó compreendida restritivamente – da sociedade moderna. Da mesma forma (e isto é crucial), uma teoria crítica do capitalismo deve ser capaz de elucidar mudanças qualitativas interdependentes da objetividade e subjetividade sociais, caso pretenda abordar mudanças culturais de larga escala e movimentos sociais. Só assim ela pode ser, ao menos potencialmente, uma teoria da possibilidade de superação do capitalismo.

A questão a esse respeito não é se Brenner, ou qualquer outro teórico, lida de forma explícita com esses assuntos, mas se a sua abordagem é intrinsecamente capaz de elucidar transformações históricas da política, da cultura e da sociedade. Independente de suas forças, a abordagem de Brenner não lida adequadamente com o desenvolvimento histórico e a estrutura do capitalismo enquanto uma forma de vida social. Mudanças na cultura e na subjetividade parecem ser externas a sua perspectiva.

Essas limitações da abordagem de Brenner estão relacionadas a sua compreensão básica do capitalismo. A questão aqui não é simplesmente sobre alcance analítico – se uma abordagem crítica do capitalismo deveria abordar apenas processos econômicos, em vez de também tratar outras dimensões da vida social. A questão é se as categorias básicas dessa perspectiva podem relacionar intrinsecamente diferentes dimensões da vida enquanto aspectos interdependentes de uma forma determinada de vida social. O ponto de partida analítico de Brenner é uma ênfase marxista tradicional na natureza não planejada, não coordenada e competitiva da produção capitalista12. Isto é, no núcleo de sua análise do longo declínio estão as noções de desenvolvimento desigual e concorrência. Essas noções definem o capitalismo na abordagem de Brenner e implicitamente apontam para o planejamento racional como a característica mais saliente do mundo pós-capitalista. O foco de tal crítica do capitalismo, em outras palavras, é essencialmente o modo de distribuição. Temas como a forma da produção, do trabalho e, mais fundamentalmente, da mediação social são externas a sua estrutura teórica. Noções tais como concorrência e desenvolvimento desigual, junto com categorias centrais à análise de Brenner, como lucro, capital fixo e circulante, contudo, são categorias econômicas; isto é, são categorias da superfície que não apreendem de forma adequada a natureza fundamental e a dinâmica histórica do capitalismo enquanto uma forma de vida social historicamente específica.

Neste ensaio, posso apenas mencionar o significado teórico da distinção entre superfície e estrutura profunda (que marca a distinção entre economia política crítica e crítica da economia política) e por que faria sentido rediscutir a categoria valor. Neste ponto, simplesmente desejo notar que caracterizar uma noção tal qual desenvolvimento desigual como uma noção da superfície não significa que ela seja ilusória, mas significa, em vez disso, que ela não apreende o que é mais essencial ao capitalismo.

Caracterizar noções tais como concorrência e desenvolvimento desigual e categorias tais como lucro como fenômenos superficiais expressa uma posição que considera categorias tais como mercadoria, valor e capital como aquelas da estrutura profunda. Brenner, contudo, rejeita as últimas categorias, caracterizando abordagens baseadas nelas como “marxismo fundamentalista”13. Diferenças em relação à teoria do valor muitas vezes expressam diferentes compreensões das categorias. Por exemplo, valor foi usualmente interpretado como uma categoria econômica, uma categoria da distribuição que fundamenta os preços, demonstra a exploração (a categoria de mais-valia) e explica o caráter propenso à crise do capitalismo (como resultado da crescente composição orgânica do capital). O significado do valor, compreendido dessa maneira, foi colocado em questão freqüentemente com base em argumentos que afirmam que preços, exploração e crises podem ser explicados sem se referir a essa categoria.

Proponho uma outra compreensão da categoria de valor de Marx. Ela não é simplesmente um refinamento dessa categoria tal qual foi desenvolvida por Smith e Ricardo. Em vez disso, é uma categoria que pretende apreender formas abstratas determinadas de mediação social, riqueza social e temporalidade que estruturam a produção, a distribuição, o consumo e, de maneira geral, a vida social na sociedade capitalista. A dimensão temporal de categorias da estrutura profunda fundamenta a dinâmica do capitalismo; ela ajuda a explicar, em termos historicamente específicos, a existência de uma dinâmica histórica que caracteriza o capitalismo. Aquelas categorias, então, buscam apreender os contornos gerais dessa dinâmica enquanto indicam que uma dinâmica histórica imanente não caracteriza histórias e sociedades humanas per se. Além disso, as categorias valor e capital não são meramente econômicas e não são sequer categorias unicamente da objetividade social – mas categorias que são, ao mesmo tempo, sociais e culturais. Por fim, a dinâmica baseada no valor é tal que o valor torna-se progressivamente menos adequado para a realidade que produz. Isto é, a dinâmica cria as condições de possibilidade objetivas e subjetivas de uma ordem social para além do capitalismo14. (Começarei a aprofundar a elaboração dessas afirmações quando for discutir adiante a noção de queda da taxa de lucro, como compreendida por Brenner e por Arrighi.) Longe de serem categorias da vida econômica e social em geral, as que estão na base da crítica à economia política pretendem apreender o núcleo essencial de uma forma historicamente determinada de vida social – o capitalismo – de maneira a indicar seu caráter historicamente específico e possivelmente transitório. A abolição daquilo que as categorias pretendem apreender levaria à abolição do capitalismo.

Encarregar-se dessa problemática fundamental requer interrogar a natureza da temporalidade no capitalismo, um assunto que não posso elaborar longamente neste ensaio. Desejo, no entanto, prosseguir essas considerações tendo como referência O longo século XX, de Arrighi. Arrighi está entre os teóricos que conceituam o período desde 1973 como o de mudança qualitativa, cujo traço predominante ele caracteriza em termos de “financeirização” do capital15. Argumentando contra posições como a de Hilferding, de que a importância ampliada do capital financeiro marca um estágio inteiramente novo de desenvolvimento capitalista, Arrighi afirma que a primazia da financeirização é um fenômeno recorrente, uma fase de ciclos maiores de desenvolvimento capitalista que começaram na Europa do fim da Idade Média e início da Era Moderna16.

O estudo de Arrighi da crise do final do século XX está inscrito em uma estrutura teórica mais ampla – uma análise das “estruturas e processos do sistema capitalista mundial como um todo, em diferentes etapas de seu desenvolvimento”17. Esta análise, por sua vez, é profundamente influenciada pela ambiciosa tentativa de Arrighi de pensar em conjunto o que Charles Tilly caracterizou como “os dois grandes processos interdependentes da era [moderna]: a criação de um sistema de Estados nacionais e a formação de um sistema capitalista mundial”18. A fim de relacionar esses dois sistemas internacionais, Arrighi recorreu às teorias de Fernand Braudel e Karl Polanyi. Ele adota a compreensão de Braudel do capitalismo como uma das camadas de uma estrutura de três patamares. Haveria uma camada inferior que Braudel chama de “vida material” – a camada da não-economia que nunca pode ser influenciada pelo capitalismo ó, uma camada intermediária da economia de mercado e uma camada superior do “antimercado”, a zona dos predadores gigantes. Para Braudel, esse nível superior é o verdadeiro locus do capitalismo19. Com base na análise de Braudel, Arrighi defende que, historicamente, o desenvolvimento capitalista não foi apenas o resultado não-intencional de inúmeras ações realizadas por indivíduos e pelas múltiplas comunidades da economia mundial, mas que as “expansões e reestruturações da economia capitalista mundial têm ocorrido sob a liderança de determinadas comunidades e blocos de agentes governamentais e empresariais”20. Isto é, Arrighi busca relacionar o sistema estatal e o capitalismo tendo por base o descasamento realizado por Braudel entre a atividade econômica cotidiana e a camada superior dos grupos economicamente poderosos.

Ele reforça essa abordagem apropriando-se da crítica de Karl Polanyi à idéia, do século XIX, de uma economia auto-regulada. Para Polanyi, esta auto-regulação dependia da transformação de todos os elementos da indústria em mercadorias, incluindo a terra, o trabalho e o dinheiro. A natureza mercantil dos últimos três, entretanto, é completamente fictícia, de acordo com Polanyi. Um sistema baseado em tal ficção é tremendamente desagregador para a sociedade. Ele gera, por conseguinte, um contra-movimento para restringir suas operações. Isso implica que, para o capitalismo funcionar no longo prazo, os mecanismos de mercado devem ser social e politicamente controlados21.

Com base na sua apropriação de Braudel e Polanyi, Arrighi delineia o desenvolvimento do sistema capitalista mundial em termos de quatro ciclos sistêmicos de acumulação, cada um dominado por um Estado capitalista hegemônico – um ciclo genovês, do século XV até o começo do século XVII; um ciclo holandês, do fim do século XVI estendendo-se pela maior parte do século XVIII; um ciclo britânico do final do século XVIII até o começo do século XX; e um ciclo americano, que começou no final do século XIX. Cada um desses ciclos refere-se aos processos do sistema capitalista mundial como um todo, de acordo com Arrighi. Ele enfoca as estratégias e estruturas dos agentes governamentais e empresariais de cada um desses Estados porque argumenta que elas tiveram uma bem-sucedida centralidade na formação desses estágios22.

Cada ciclo, de acordo com Arrighi, é caracterizado pelas mesmas fases, uma inicial de expansão financeira, passando por uma fase de expansão material, seguida de outra de expansão financeira. A financeirização desempenha um papel crucial na sucessão de um hegemon por outro, de acordo com Arrighi. Conforme ele a descreve, a trajetória ascendente de cada hegemon é baseada na expansão da produção e do comércio. Em um ponto de cada ciclo, contudo, uma “crise sinalizadora” ocorre como resultado da sobreacumulação de capital. Outro Estado fornece então um meio para dar vazão a esse capital acumulado. Neste esquema, a crescente financeirização requer a transferência de capital do hegemon atual para um novo hegemon ascendente23. Esse padrão de desenvolvimento não é, entretanto, completamente cíclico. Ele tem direcionalidade. Cada novo ciclo é mais curto que o precedente; cada novo hegemon é maior, mais complexo e mais poderoso. Cada hegemonconsegue internalizar custos que seu antecessor não internalizava. A Holanda internalizou custos de produção, o Reino Unido também internalizou custos de produção e os Estados Unidos adicionaram a internalização de custos de transação24. Estabelecendo este padrão, Arrighi argumenta então que a fase atual de financeirização é sinal do declínio da hegemonia americana, o começo do fim do quarto ciclo.

O padrão de desenvolvimento que Arrighi delineia é muito elegante e freqüentemente esclarecedor. No entanto, há aspectos problemáticos da sua interpretação que, a meu ver, indicam seus limites. Assim, por exemplo, quando Arrighi volta-se a desenvolvimentos mais contemporâneos, sua interpretação da ascensão e queda da hegemonia dos Estados Unidos desde 1939 é muito mais eclética do que se poderia esperar a partir da sua descrição dos ciclos mais longos de desenvolvimento capitalista. Ao discutir a crise da década de 1970, ele se refere a uma concorrência crescente, em escala internacional, ao crescimento dos salários reais, entre 1968 e 1972, que ultrapassou o aumento da produtividade, assim como à decisão de formuladores de política americanos, no fim dos anos 1970, de formar uma aliança com as altas finanças privadas a fim de disciplinar o que foi considerado como ameaças do Terceiro Mundo após a descolonização.

É muito difícil compreender como essa interpretação encaixa-se na estrutura teórica de desenvolvimento cíclico que Arrighi apresenta. Embora ele caracterize o ciclo americano como anômalo, ele não explica o seu caráter anômalo. Por conseguinte, existe uma lacuna entre sua interpretação eclética da década de 1970 e sua estrutura teórica mais ampla, o que sugere que o padrão de desenvolvimento que ele delineia é essencialmente descritivo. Ele não apresenta, de fato, uma análise acerca do que move o padrão de desenvolvimento que ele descreve.

Este tema emerge também, implicitamente, quando Arrighi discute o declínio da hegemonia americana. Ele argumenta que tal declínio pode levar à ascensão de um império verdadeiramente global, baseado na superioridade da força do ocidente, a uma economia de mercado mundial sem um hegemon, centrada no Leste asiático, ou ao caos sistemático. As duas primeiras possibilidades são pós-capitalistas, de acordo com Arrighi. Elas assinalariam o fim do capitalismo25.

Esta é uma afirmação notável porque ela esclarece que Arrighi considera a essência do capitalismo um sistema mundial organizado por um hegemon capitalista. Essa posição problemática tem suas raízes na apropriação que Arrighi realiza da distinção de Braudel entre economia de mercado e capitalismo. O último, de acordo com Braudel, não pode ser explicado tendo como base relações de mercado contínuas, na medida em que uma economia de mercado mundial precedeu o capitalismo. O que gerou este foi a fusão do capital com o Estado, que foi exclusiva do Ocidente26. Os limites desta tentativa de distinguir mercados e capitalismo colocando os Estados no centro da análise tornam-se manifestos, entretanto, nas reflexões de Arrighi sobre a fase corrente de declínio da hegemonia americana. Independente de quão importantes os Estados podem ter sido para o desenvolvimento do capitalismo, definir o capitalismo essencialmente com referência ao Estado torna-se uma camisa-de-força conceitual quando Arrighi tenta analisar o mundo contemporâneo.

Nem Braudel nem Arrighi parecem tomar conhecimento da maneira muito diferente pela qual Marx e Weber distinguem o capitalismo moderno dos mercados e do comércio, tal qual eles podem existir em outras formas de sociedade. Apesar de todas as suas diferenças, Marx e Weber enxergam o capitalismo moderno como específico porque ele é baseado em um processo contínuo e infinito de acumulação, um processo que não pode ser fundamentado no comércio ou no Estado e, na realidade, transforma ambos. No trabalho de Marx, a dinâmica histórica do capitalismo é sua característica mais saliente. Ela requer contínuas transformações da vida social, que são conduzidas, por sua vez, pelo núcleo essencial do capitalismo, um núcleo que é tanto imutável quanto, ainda, produtor de mudanças. A categoria capital, de Marx, busca apreender este núcleo e a dinâmica que ele gera.

No tratamento de Arrighi dos ciclos do capitalismo, a categoria capital permanece fundamentalmente subteorizada. Conseqüentemente, sua abordagem exclui qualquer análise acerca do que constitui o caráter específico do capitalismo, sua dinâmica histórica. Em vez disso, como sua concepção do fim do capitalismo indica, Arrighi funde esta dinâmica com a ascensão e queda de hegemons. Sua abordagem substitui a análise do que fundamenta a dinâmica por uma descrição de um padrão e o faz de maneira a também excluir considerações sobre as contínuas estruturações e reestruturações do trabalho e, de maneira geral, da vida social no capitalismo.

Embora, então, as teorias de Braudel e Polanyi fornecem a Arrighi uma estrutura teórica para pensar em conjunto o desenvolvimento do sistema estatal e o do capitalismo mundial, elas também levam a problemas teóricos sérios. A divisão tripartite, realizada por Braudel, da sociedade moderna em camadas de vida material, economia de mercado e capitalismo não permite considerar a relação das formas cotidianas de vida social com o capitalismo, enquanto a insistência de Polanyi no caráter fictício do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias obscurece a análise de Marx da mercadoria enquanto forma das relações sociais. Nesta estrutura teórica, nada é “naturalmente” uma mercadoria. De forma recíproca, não existe razão ontológica que possa servir de base para distinguir mercadorias “reais” e “fictícias”. Nem Braudel nem Polanyi permitem uma concepção adequada de capital e, pois, da natureza da dinâmica intrínseca da sociedade capitalista, assim como da possibilidade de sua superação.

Essas considerações críticas são reforçadas quando observamos mais de perto o tratamento realizado por Arrighi da crise dos anos 1970. Ao abordar essa crise, ele recorreu à noção de que, no capitalismo, há uma tendência à queda da taxa de lucro. Como Brenner, Arrighi baseia essa tendência na concorrência.

O teorema da queda tendencial da taxa de lucro foi várias vezes identificado com Marx. Ele foi comumente compreendido como a tentativa de Marx de demonstrar a natureza propensa à crise e os limites do capitalismo. Este teorema, contudo, não foi desenvolvido originariamente por Marx, mas por economistas políticos tais como Adam Smith, Thomas Malthus e David Ricardo. De fato Marx aborda este teorema da economia política clássica. Longe de prever uma queda inexorável da taxa de lucro, entretanto, ele trata este teorema como uma tendência superficial, a qual, portanto, é sujeita a muitos fatores e tendências compensatórias27. Na medida em que a taxa de lucro efetivamente cai, de acordo com Marx, ela o faz como uma manifestação econômica superficial de um desenvolvimento histórico mais fundamental, a tendência de a composição orgânica do capital – isto é, a razão entre capital constante (máquinas, matérias-primas etc.) e capital variável (trabalho assalariado) – crescer.

A idéia de uma diminuição do capital variável em relação ao capital constante é central para compreender a força da teoria do valor em Marx. Marx argumenta, como é amplamente sabido, que o valor é constituído apenas pelo gasto socialmente necessário de tempo de trabalho humano direto. Ao contrário de Adam Smith, contudo, Marx não considera o valor uma forma trans-histórica de riqueza, mas uma forma de riqueza historicamente específica ao capitalismo. A distinção que ele faz entre a produção de valor e a de valor de uso não devem ser compreendidas trans-historicamente e ontologicamente, mas como constitutivas da crescente contradição do capitalismo entre a produção do valor como elemento estrutural definidor do capitalismo e a enorme capacidade de produção de valor de uso gerada pelo capitalismo. O potencial inscrito nessa contradição do capitalismo aponta para uma possível transformação fundamental da natureza e da distribuição social do trabalho. A realização dessa possibilidade, entretanto, é constantemente restringida pela reprodução sistêmica de trabalho determinado pelo valor, apesar de esse trabalho tornar-se crescentemente anacrônico em termos do potencial produtivo do todo.

A mudança na composição do capital, portanto, não é importante na crítica de Marx principalmente por fornecer uma melhor explicação para a queda tendencial da taxa de lucro, fundamentando assim de forma mais sólida um teorema da economia política clássica. Ao invés disso, ela é importante em primeiro lugar porque, abaixo do nível superficial dos preços e dos lucros, expressa a transformação do trabalho e da produção que eventualmente aponta para a possibilidade de uma sociedade pós-capitalista. Longe de ser primordialmente um meio de explicar as crises, então, o teorema da queda tendencial da taxa de lucro, como retrabalhado por Marx, expressa, de forma indireta, um processo de contínua estruturação e reestruturação da vida social, um processo marcado por uma crescente distância entre a estruturação atual do trabalho e da vida social e a maneira em que eles poderiam ser estruturados na ausência do capital. Marx transforma um teorema da economia política – o qual muitos tomaram como uma indicação dos limites econômicos do capital ó em uma expressão superficial de uma dinâmica histórica mais fundamental. A força da sua crítica é menos “provar” o colapso econômico inevitável do capitalismo do que desvelar uma crescente disparidade entre o que é e o que poderia ser, uma disparidade que constitui as condições de possibilidade objetivas/subjetivas de uma ordenação diferente da vida social. A idéia de tal disparidade enquanto uma disparidade vivida permitiria uma investigação da gênese histórica das sensibilidades, das necessidades e dos imaginários que vai além de considerações de distribuição ou interesses materiais diretos. Em outras palavras, a contradição crescente do capitalismo compreendida dessa maneira (de forma não economicista) gera a possibilidade de um futuro qualitativamente diferente como uma dimensão imanente do presente.

Esse nível de consideração, contudo, está ausente em Arrighi, assim como em Brenner. Então, as categorias que são essenciais para a crítica de Marx – valor, mercadoria, capital – estão também basicamente ausentes ou são implicitamente compreendidas em termos econômicos restritivos. Assim, por exemplo, quando Brenner aborda o tratamento de Marx da queda tendencial da taxa de lucro, ele afirma que, de acordo com Marx, o crescimento da composição orgânica de capital leva a um aumento da razão produto/trabalho, que é insuficiente para contrabalançar a queda paralela na razão produto/capital, que ela também produz. Portanto, a taxa de lucro cai porque a produtividade global deverá cair28. Esta interpretação funde completamente valor e valor de uso em Marx, obscurecendo a afirmação de Marx de que um aumento na produtividade pode levar a uma diminuição na mais-valia. Isto, contudo, significa, mais fundamentalmente, que ela não reconhece a análise do valor de Marx como uma análise de uma forma de riqueza e vida social historicamente específica, possivelmente transitória. Por conseguinte, a trajetória histórica do capitalismo na direção de uma possível transformação qualitativa, como analisada por Marx, reduz-se a uma análise econômica das crises.

Arrighi, por sua vez, argumenta que o que ele chama de “a versão de Marx da ‘lei’ da queda tendencial da taxa de lucro” era idêntico à tese de Adam Smith em relação à taxa de lucro. Tanto Ricardo quanto Marx aceitaram integralmente a tese de Smith, de acordo com Arrighi. A única diferença foi que Marx criticou a versão de Smith da “lei” como demasiado pessimista em relação ao potencial de longo prazo do capitalismo para promover o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade29. Essa equiparação de Smith e Marx, contudo, significa que Arrighi também funde a economia política à sua crítica, isto é, uma compreensão trans-histórica do valor enquanto riqueza com uma compreensão do valor enquanto uma forma de riqueza historicamente específica ao capitalismo.

A abordagem de Arrighi introduz de forma efetiva uma dimensão muito importante à análise do capitalismo – a do Estado, ou melhor, do sistema estatal. Ela o faz, entretanto, em detrimento das dimensões centrais de uma teoria crítica do capitalismo que aponte para a possibilidade de uma outra forma de vida. O próprio Arrighi nota que o seu livro tem um enfoque estreito, excluindo a consideração de assuntos como a luta de classes30. Mas a estreiteza à qual ele se refere não é meramente empírica. Dada a estrutura teórica do livro, mesmo se Arrighi introduzisse tais assuntos, ele não poderia tratá-los de forma coerentemente relacionada com sua abordagem.

Não está em questão se Arrighi ou Brenner são fiéis a um dogma revelado (“fundamentalista”), mas se as suas abordagens são inteiramente adequadas ao objeto de suas investigações – a dinâmica do capitalismo contemporâneo. As considerações que delineei buscam esclarecer a diferença entre tais perspectivas de economia política crítica, focadas em temas econômicos, e o projeto da crítica à economia política.

David Harvey em A condição pós-moderna também enfatiza a predominância da financeirização ao discutir o período desde 197331. O tratamento de Harvey da financeirização, entretanto, é menos centrado no Estado do que o de Arrighi, o qual é ligado à questão dos hegemons ascendentes e declinantes. De fato, Harvey enfatiza que, no mundo contemporâneo, o capital não tem locus ou posição determinada, mas é difuso e global32. Como resultado da concorrência universal por capitais, diferenças marginais nas taxas de lucro tornam-se cada vez mais importantes, com conseqüências significativas para os níveis salariais em países metropolitanos, para a extensão global desigual do trabalho assalariado e para a direção e volume dos fluxos de capitais globais. Esses fluxos, de acordo com Harvey, executam uma forma de disciplina que é muito mais difusa e eficaz que quaisquer instituições governamentais podem ser33.

Ao contrário de Arrighi e Brenner, Harvey recorreu a uma teoria do capital para elucidar o que ele considera uma mudança abissal na cultura assim como nas práticas político-econômicas34. Ele tenta lidar com o período desde 1973 não apenas em termos político-econômicos, mas também em termos de uma configuração alterada da vida. Além disso, ao fazê-lo tendo por referência uma teoria do capital, com suas distinções entre superfície e estrutura profunda e entre valorização e processos de trabalho, Harvey é capaz de se contrapor criticamente a abordagens pós-industriais, argumentando que o que elas compreendem como uma nova época é apenas um elemento de uma dinâmica mais complexa de restrição, continuidade e mudança. Assim, por exemplo, ao considerar a transformação do capitalismo nas décadas recentes, Harvey enfoca as demandas de valorização mediando a produção, ao invés de enfocar a natureza dos processos de trabalho de maneira não mediada. Então, ele caracteriza as mais novas configurações do capitalismo em termos de “acumulação flexível”, em vez de utilizar o termo mais orientado aos processos de trabalho, “especialização flexível”35. Dessa maneira, Harvey é capaz de mostrar que esta última fase de desenvolvimento capitalista gera todo um conjunto de práticas produtivas – do ressurgimento da superexploração do trabalho [sweatshops] até a robótica – que na superfície parecem antagônicas e que não podem ser adequadamente apreendidas por teorias pós-industriais com o seu foco unilateral nos processos de trabalho. Esta abordagem distingue a teoria crítica do capitalismo de qualquer teoria do desenvolvimento tecnológico linear e, decerto, de qualquer teoria do determinismo tecnológico.

Da mesma maneira, focando-se no capital, Harvey é capaz de mostrar que esta nova fase do capitalismo acarreta uma dialética complexa de descentralização e centralização, heterogeneidade e homogeneidade. Nesta base, Harvey realiza uma crítica severa às abordagens pós-modernas que hipostasiam um lado desta dialética, confundindo, por isso, desenvolvimentos em curso com uma ruptura libertária em relação ao passado. Por compreenderem criticamente a ordem existente apenas em termos de centralização e homogeneidade, tais abordagens celebram a descentralização e a heterogeneidade também geradas pelo capitalismo contemporâneo. Longe de serem críticas, abordagens pós-modernas, de acordo com Harvey, são expressões de uma nova configuração do capital que elas não apreendem. Dessa maneira, elas servem para velar e defender o capital em sua mais nova manifestação36.

Buscando relacionar mudanças culturais pós-modernas a uma nova configuração do capital, Harvey vai além das posições que compreendem o capitalismo apenas em termos econômicos. Sua abordagem da relação entre cultura e capitalismo também vai além da teoria da regulação, que busca de fato tomar conhecimento da cultura como um momento constitutivo de uma dada etapa do capitalismo, mas o faz, ao assumir uma relação completamente contingente entre cultura e capitalismo, na base de uma compreensão da cultura que é essencialmente vazia. Enquanto a última abordagem fornece uma análise funcionalista da relação entre as formas culturais e qualquer configuração de larga escala do capitalismo, Harvey busca relacioná-las intrinsecamente37.

A abordagem de Harvey suscita de forma explícita a questão da dinâmica histórica. O seu argumento de que as décadas passadas assistiram à emergência de uma nova configuração do capitalismo lembra-nos de que essa emergência envolve um processo de mudança (uma nova configuração) e de continuidade (capitalismo). Ao distinguir as formas superficiais das formas básicas do capitalismo, ele também indica que o que permanece inalterado é um elemento central do capitalismo.

Essas considerações ajudam a esclarecer alguns elementos do capitalismo e a significância da análise do capital. Vista de maneira retrospectiva, a dominação do capital existiu em várias configurações históricas, desde formas mais mercantis até formas liberais do século XIX, estatais do século XX e, agora, formas globais neoliberais. Essas configurações cambiantes indicam que o capitalismo não pode ser identificado completamente com nenhuma das suas configurações. Ao mesmo tempo, referir-se a essas várias configurações como formas do capitalismo implica que um núcleo característico – o capital – é a base de todas elas.

Isto, contudo, sugere que o núcleo do capitalismo produz suas várias configurações históricas. Embora uma discussão completa do tema do caráter historicamente dinâmico do capitalismo não seja possível no espaço deste ensaio38, deve ser notado que se trata de uma dialética complexa de mudança e reprodução, pela qual os elementos centrais do capitalismo produzem mudança e, ao mesmo tempo, reproduzem-se. Essa dinâmica dialética é baseada na distinção entre superfície e estrutura profunda no capitalismo e torna acessível a possibilidade de um futuro para além do capital, mesmo ao reproduzir o núcleo básico do presente e, por meio disso, obstruir a realização do futuro.

A abordagem que estou delineando, então, não pressupõe a existência de uma dinâmica histórica, como característica da vida social humana, mas analisa a forma de dominação social intrínseca à sociedade moderna capitalista como produtora de uma dinâmica histórica. Isto é, ela baseia essa dinâmica nas formas sociais historicamente específicas que estão no coração do capitalismo – como a mercadoria e o capital. Ao basear a dinâmica histórica da sociedade moderna capitalista em formas sociais historicamente específicas, esta abordagem busca superar a oposição entre uma noção de uma lógica da história trans-histórica e seu complemento relacionado ó, uma noção trans-histórica do acaso histórico. Eu argumentaria que tal abordagem dialética não-linear permite uma teoria do desenvolvimento capitalista mais sofisticada do que aquelas que permanecem dentro da estrutura teórica da oposição tradicional, dualista, essencialmente metafísica, entre determinismo e contingência.

A abordagem de Harvey indica esses temas. Porém, sua elaboração sobre o núcleo do capitalismo é tal que aspectos importantes de uma teoria crítica do capital permanecem excluídos ou, no mínimo, pouco desenvolvidos. Para Harvey, há três elementos centrais do capitalismo: ele é orientado para o crescimento, é baseado na exploração de trabalho vivo na produção e é necessariamente dinâmico do ponto de vista tecnológico e organizacional. Esses três fatores centrais são, entretanto, inconsistentes. Conseqüentemente, o desenvolvimento capitalista é caracterizado por uma tendência à sobreacumulação, que o torna propenso à crise. Historicamente, então, o problema do capitalismo tem sido a administração da sobreacumulação39. Com base nessa análise, Harvey passa então a analisar a transição do fordismo ao pós-fordismo40.

Esta compreensão do núcleo do capitalismo permite a Harvey distinguir estrutura profunda e superfície, a partir do que ele formula sua crítica às abordagens pós-modernas, e analisar restrições e imperativos que caracterizaram o desenvolvimento do capitalismo de um modo de regulação a outro. No entanto, seu foco no caráter propenso à crise do capitalismo não aborda a distância crescente entre a forma que a vida social tem sob o capitalismo e a forma que poderia ter, não fosse o capitalismo. Uma abordagem que problematizasse mais explicitamente a categoria capital, e a colocasse em seu centro, poderia se focar com mais rigor nessa distância.

A diferença entre as duas abordagens torna-se clara quanto ao tema da relação entre as formas de subjetividade e objetividade no capitalismo. Harvey trata concepções cambiantes de espaço e tempo, por exemplo, como reações a mudanças do capitalismo. O capitalismo realiza o que Harvey denomina compressões espaço-temporais. Elas alteram as experiências que as pessoas têm do espaço e do tempo, as quais são expressas culturalmente e sobre as quais se reflete teoricamente41. Por mais esclarecedora que possa ser a análise de Harvey, sua ênfase na experiência como mediadora entre capitalismo e cultura permanece basicamente extrínseca às formas sociais expressas pelas categorias marxianas. De tal maneira, falta a ela a dimensão epistemológica/subjetiva daquelas categorias, a qual permite a elas abordar uma quantidade maior de assuntos concernentes a formas de conhecimento e subjetividade. Por exemplo, a abordagem categorial pode abordar outras teorias da economia ou da história como expressões equívocas enraizadas como possibilidades nas próprias formas sociais. Tal abordagem não pretende apenas explicar percepções e teorias sobre o mundo, tais como aquelas de Smith, Ricardo ou Hegel, como não sendo inteiramente adequadas aos seus objetos42; ela também busca fundamentar a própria possibilidade da crítica. A última é evidentemente relacionada à questão da criação histórica pelo capitalismo de necessidades e sensibilidades que apontam para além do capitalismo. Tal abordagem categorial trata, então, formas de subjetividade como intrínsecas às próprias categorias.

As diferenças entre essas duas abordagens tornam-se mais evidentes quando se considera a discussão de Harvey acerca de pós-modernismo e capitalismo. Quando ele relaciona os dois, trata implicitamente o capitalismo como unidimensional. Harvey não trata, em outras palavras, o capital como algo que aponta para além de si próprio mesmo ao se reconstituir. Isto é, ele não questiona se o pós-modernismo também tem um momento emancipatório, mesmo se muito diferente daqueles expressos por auto-compreensões pós-modernas. Dentro da estrutura teórica que estou delineando, o pós-modernismo poderia ser compreendido como um tipo de póscapitalismo prematuro, que indica possibilidades geradas, mas não realizadas, no capitalismo. Ao mesmo tempo, pelo fato de o pós-modernismo não compreender o seu contexto, ele pode servir como uma ideologia de legitimação à nova configuração do capitalismo, da qual é parte.

Isto leva a um tema mais geral com o qual teorias críticas do capitalismo têm de lidar. Em uma transição global anterior do capitalismo, os marxistas freqüentemente opuseram o planejamento racional geral à irracionalidade anárquica do mercado. Em vez de necessariamente apontar para além do capitalismo, contudo, tais críticas no mais das vezes ajudaram a legitimar o subseqüente capitalismo centrado no Estado. Da mesma maneira, a hipostasia contemporânea da diferença, da heterogeneidade e do hibridismo não aponta necessariamente para além do capitalismo, mas pode servir de véu e legitimar uma nova forma global que combina descentralização e heterogeneidade da produção e do consumo com crescente centralização do controle e homogeneidade estrutural.

Cada uma dessas posições, entretanto, também teve um momento emancipatório. A tarefa difícil é separar conceitualmente a dimensão emancipatória das possibilidades criadas pelo capitalismo das formas não-emancipatórias ou antiemancipatórias em que elas foram geradas. Uma teoria crítica do capitalismo deveria ser capaz de elucidar como formas de incompreensão abordagens que confundem uma dimensão da vida social gerada pelo capitalismo com o todo. Ao obscurecer o núcleo básico do capitalismo como uma forma de vida social, tais abordagens são apenas aparentemente emancipatórias. Suas orientações críticas acabam promovendo e legitimando a dominação do capital em novas formas, como o capitalismo centrado no Estado e o capitalismo pós-moderno. Isto não significa que o potencial emancipatório da coordenação social geral ou do reconhecimento da diferença deva ser desconsiderado. Mas esse potencial só pode ser realizado quando for associado com a superação histórica do capital, o núcleo da nossa forma de vida social.

Apesar de todas as suas vantagens, as abordagens distintas formuladas por Brenner, Arrighi e Harvey não são bem-sucedidas em elucidar por completo o núcleo histórico do capital de uma maneira que aponte para a possibilidade de sua superação histórica. Entretanto, sem uma análise do capital que não se restrinja ao modo de distribuição, mas que possa, no entanto, abordar os impulsos emancipatórios expressos pelo marxismo tradicional, por um lado, e pelo pós-modernismo, por outro, nossas concepções de emancipação continuaram a oscilar entre uma homogeneização geral (realizada ou pelo mercado ou pelo Estado) e um particularismo, uma oscilação que replica as próprias formas dualistas da mercadoria e do capital.

*Publicado em 2007 na coletânea Political Economy and Global Capitalism: The 21st century, Present and Future (Anthem Press). A tradução é de Fernando Rugitsky para a revista Novos Estudos CEBRAP.

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NOTAS

[1] Brenner, Robert. “The economics of global turbulence: a special report on the world economy, 1950-98″. New Left Review, no 229, mai.-jun. 1998; Arrighi, Giovanni. The long Twentieth Century: money, power, and the origins of our times. Londres/ Nova York: Verso, 1994 [ [ Links ]tradução brasileira: O longo século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso tempo. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro/ São Paulo: Contraponto/Unesp, 1996] ; David Harvey. The conditions of postmodernity: an enquiry into the origins of cultural change. Oxford Blackwell, 1989. Tradução brasileira: A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 9ª. ed. Trad. Adail Sobral e Maria E. Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2000].
[2] Ver Harvey, op. cit., p. 135 [trad. brasileira: p. 131. Daqui em diante as referências de páginas entre colchetes serão das traduções brasileiras citadas (N. T.)].
[3] Brenner, op. cit., pp. 1-7.
[4] Ibidem, p. 36.
[5] Ibidem, pp. 8, 18.
[6] Ibidem, pp. 18-24.
[7] Ibidem, pp. 23 e ss.
[8] Ibidem, pp. 8-11.
[9] Ibidem, pp. 91 e ss.
[10] Ibidem, pp. 27 e ss.
[11] Brenner caracteriza a Escola da Regulação como “malthusianismo de esquerda”, que situa a origem da lucratividade decrescente da economia na queda do dinamismo produtivo do paradigma tecnológico fordista. Ver Brenner, Robert. “Reply to critics”. Comparative Studies of South Asia, Africa, and the Middle East, vol. XIX, no 2, 1999, p. 62.
[12] Brenner, “The economics of global turbulence”, op. cit., p. 8.
[13] Ibidem, p. 11.
[14] Para uma elaboração mais extensa desses argumentos, ver Postone, Tempo, trabalho e dominação social.
[15] Arrighi, op. cit., p. xi [p. ix].
[16] Ibidem.
[17] Ibidem, p. xi [p. xi].
[18] Tilly, Charles. Big structures, large processes, huge comparisons. Nova York: Russell Sage, 1984, p. 147, apud Arrighi, op. cit., p. xi [p. ix].
[19] Arrighi, op. cit., p. 10 [p. 10].
[20] Ibidem, p. 9 [p. 10].
[21] Ibidem, pp. 255-258 [pp. 263-266].
[22] Ibidem, pp. xi, 6 [pp. xi, 6].
[23] Ibidem, pp. x, 5-6, 214-238 [pp. 5-6, 218-245].
[24] Ibidem, pp. 214-238 [pp. 218-245].
[25] Ibidem, pp. 23, 355-356 [pp. 23, 370-371].
[26] Ibidem, pp. 10-11 [pp. 10-11].
[27] Marx, K. Capital, vol. III. Trad. D. Fernbach. Harmondsworth: Penguin Books, 1981, pp. 317-375 [ [ Links ]trad. brasileira: O capital: crítica da economia política, vol. III, t. 1. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os economistas), pp. 161-200].
[28] Brenner, “The economics of global turbulence”, op. cit., p. 11.
[29] Arrighi, op. cit., pp. 222-223 [p. 227].
[30] Ibidem, p. xii [p. xii].
[31] Harvey, op. cit., pp. 160 e ss. [pp. 152 e ss.]. Como um aparte, deve ser notado que tanto Harvey como Arrighi têm uma crítica das finanças que não é romântica nem reacionária. Ambos tratam as finanças como produto do capital, não como algo separável da e imposto à produção capitalista.
[32] Ibidem, p. 163 [pp. 154-155].
[33] Ibidem, pp. 164-165 [pp. 156-157].
[34] Ibidem, p. vii [p. 7].
[35] Ibidem, pp. 124, 147, 186 e ss. [pp. 119, 140, 174 e ss.]. Para a noção de “especialização flexível”, ver Piore, Michael e Sabel, Charles. The second industrial divide. Nova York: Basic Books, 1984. [ Links ]
[36] Harvey, op. cit., pp. vii, 39 e ss., 113 e ss., 336 e ss., 350 e ss. [pp. 7, 45 e ss., 109 e ss., 301 e ss., 315 e ss.].
[37] Ibidem, pp. 201 e ss. [pp. 187 e ss.].
[38] Para uma discussão mais completa, ver Postone, Tempo, trabalho e dominação social.
[39] Harvey, op. cit., pp. 180-183 [pp. 169-172].
[40] Ibidem, pp. 184 e ss. [pp. 173 e ss.].
[41] Ibidem, pp. viii, 201-325 [pp. 9, 185-289].
[42] Esta abordagem não é limitada à análise de teorias, mas também serve como ponto de partida para uma análise de visões de mundo ou ideologias disseminadas. Poderia, por exemplo, começar a relacionar a crescente fragmentação global da sociedade capitalista em setores pós-industriais e setores cada vez mais marginalizados com a ascensão, por um lado, de políticas de identidade dentro de uma moldura pós-moderna e, por outro, de várias formas de “fundamentalismo”.

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Moishe Postone, canadense nascido em 1942, é professor de História na Universidade de Chicago, co-diretor do Chicago Center for Contemporary Theory e co-editor da revista Critical Historical Studies. PhD em história pela Johann Wolfgang Goethe-University, é um dos maiores teóricos marxistas da atualidade. Seu trabalho mais conhecido, Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx, foi publicado pela Boitempo em 2014. Colaborador da Revista Margem Esquerda, assina o artigo “O sujeito e a teoria social: Marx e Lukács sobre Hegel”, que integra a edição #24 da revista.