Gramsci, Lênin e a Questão da Hegemonia*
Talvez o nosso primeiro mergulho no conceito de hegemonia possa nos mostrar a íntima relação existente entre a obra de Gramsci e a de Lênin, respeitando-se, é claro, os limites destes dois autores que, embora contemporâneos, tiveram experiências bastante diferenciadas, transitando por situações históricas particularíssimas.
Lênin e a Hegemonia
Foi o próprio Gramsci que em diversas passagens de sua obra reconheceu a paternidade leninista do conceito hegemonia. Ele afirmou: “o princípio teórico-político da hegemonia (…) é a maior contribuição teórica de Ilitch à filosofia da práxis”. Ainda em outro momento reafirmou esta mesma ideia: “é possível afirmar”, disse ele, “que a característica essencial da filosofia da práxis mais moderna (referindo-se a Lênin) consiste no conceito histórico-político de hegemonia”.
Estas afirmações, extraídas de seus Cadernos do Cárcere, são provas mais do que suficientes de que ele não pretendeu criar algo de essencialmente novo e sim desenvolver algo existente (pelo menos no que diz respeito ao conceito de hegemonia), algo que seria para ele o “ponto essencial” do marxismo, “a maior contribuição teórica” de Lênin.
O conceito de hegemonia foi, decerto, como afirmou Gramsci, uma das maiores contribuições de Lênin à ciência política marxista, embora, contraditoriamente, como lembrou Luciano Gruppi, poucas vezes esta terminologia tenha aparecido em sua obra, e as poucas vezes em que se utilizou o termo foi durante o breve espaço de tempo que antecedeu a revolução de 1905.
Vejamos então como o conceito apareceu na obra de Lênin durante esse curto período. Escreveu o revolucionário russo: “Segundo o ponto de vista do proletariado, a hegemonia pertence a quem luta com maior energia (…) ao chefe ideológico da democracia”. Portanto, hegemonia tinha para ele o claro sentido de direção política e só poderia ser construída quando uma classe abandonasse a sua visão exclusivista de corporação; no caso do proletariado, quando ele abandonasse a visão economicista – e corporativista – da luta exclusivamente sindical e se agarrasse ao fio condutor das grandes transformações que se dá através da luta política revolucionária. Se o proletariado, enquanto classe, quisesse construir sua hegemonia sobre o conjunto da sociedade, precisaria abandonar o “estreito limite da luta econômica contra o patrão e o governo” e se colocar na linha de frente das lutas “contra qualquer manifestação de arbitrariedade e de opressão onde quer que ela se produza, qualquer que seja a classe ou camada social atingida”. Lembramos que nesse período a Rússia vivia sob o domínio despótico do czarismo.
Ter hegemonia significava para o proletariado, antes de tudo, ganhar para seu lado a maioria das classes subalternas, mas para isto seria preciso que ele fosse a direção mais consequente de sua luta, porta-voz autêntico das aspirações do conjunto do povo. Podemos dizer que, em Lênin, o conceito de hegemonia se articulava com o conceito de vanguarda, compreendido enquanto direção consentida de um arco, mais ou menos amplo, de alianças.
No entanto, ser vanguarda não poderia ser encarado apenas como um ato de “autoafirmação revolucionária”. Para uma força política se constituir enquanto vanguarda seria preciso que estivesse inserida na ação política das massas populares. Para ele, não bastava dizer-se vanguarda, era preciso “proceder de forma a que todos os outros destacamentos se dessem conta e fossem obrigados a reconhecer” que os socialistas marchavam à frente. Concluiu: “Os representantes dos outros destacamentos não seriam imbecis a ponto de acreditarem que somos vanguarda só porque dizemos que somos”.
Nos primeiros anos do século passado os social-democratas russos se viram divididos em relação à resposta a ser dada para uma série de questões, dentre elas: O proletariado deveria ou não participar do processo de revolução burguesa? Deveria ou não buscar dar a este processo uma solução que lhe favorecesse? Deveria ou não exercer um papel dirigente?
Em particular, quanto a estas questões se levantaram aqueles que afirmavam que o proletariado não deveria participar enquanto força dirigente do processo revolucionário. A revolução burguesa deveria ser obra exclusiva da própria burguesia. O proletariado deveria apenas dar o seu consentimento, apoiando-a “criticamente”, sem sujar as suas mãos. Deveria esperar, pacientemente, a sua vez. Àqueles que a questão do poder para o proletariado não estava colocada na ordem do dia, a hegemonia também não se constituía enquanto problema a ser resolvido.
Mas, para Lênin, ao contrário – a quem o problema do poder político estava colocado desde o primeiro dia –, a conquista da hegemonia se constituía num problema-chave que deveria ser rapidamente resolvido. Ganhar o conjunto das classes subalternas para sua direção política, eis a tarefa primeira do proletariado revolucionário e dos seus partidos políticos. Eis a tarefa a que Lênin se lançou com todas as suas forças.
Como Lênin encarava a questão da conquista da hegemonia em 1905?
Ao contrário dos mencheviques que acreditavam que o proletariado deveria abandonar a direção da luta política, durante a primeira fase da revolução, nas mãos da própria burguesia, Lênin defendeu a tese de que o proletariado deveria procurar manter-se na direção do movimento. “Não apenas podemos”, afirmou Lênin, “mas devemos dirigir de qualquer forma essa atividade das diversas camadas de oposição se quisermos ser vanguarda”.
Lênin continuou: “mas se quisermos ser democratas avançados (vanguarda da luta contra a autocracia) devemos ter a preocupação de nos incitar a pensar exatamente naqueles que só estão descontentes com o regime universitário, ou apenas com o regime dos zemstvos (…) a pensar que todo o regime político nada vale. Nós devemos assumir a organização de uma ampla luta política sob a direção de nosso partido”.
No caso russo, a conquista da hegemonia para o proletariado significava a conquista das massas dos camponeses, e isto só seria possível com o estabelecimento de um programa mínimo que incluísse a reivindicação da propriedade da terra, bandeira de cunho burguês que, contraditoriamente, iria para além dos limites em que a burguesia liberal desejava manter a revolução.
Portanto, a conquista da hegemonia exigia certas concessões do proletariado às demais classes subalternas, às vezes até às frações das classes exploradoras. A hegemonia, enquanto resultado do processo de conquista da direção política, exigia o atendimento de alguns interesses específicos destas classes e frações de classes. Lênin afirmou: “Só estabelecendo uma relação de ampla aliança com os camponeses é que o proletariado pode se tornar força dirigente da revolução e pode romper como o nexo entre a revolução democrática e hegemonia burguesa”.
O problema da construção da hegemonia do proletariado foi, para Lênin, um problema-chave não só nos períodos que antecedem a revolução, como instrumento necessário para a conquista do poder político, mas também nos momentos posteriores de construção de uma nova sociedade.
Lênin teve o mérito de resgatar o marxismo do pântano do economicismo no qual, em grande medida, havia mergulhado após a morte de Engels. Resgatou o papel ativo dos homens, organizados em partidos políticos, enquanto agentes vivos do processo de transformação social. Uma transformação que se dá fundamentalmente na esfera da luta política e revolucionária. Nesta trilha, aberta por Lênin, seguiria Gramsci.
Gramsci e a hegemonia
“Os comunistas turinenses haviam colocado concretamente a questão da hegemonia do proletariado, ou seja, a base social da ditadura do proletariado e do Estado proletário”. Assim Gramsci abordou o problema da hegemonia em sua obra clássica A Questão Meridional. Nela, podemos perceber que, para ele, pelo menos nesta obra pré-cárcere, hegemonia e ditadura eram dois aspectos indissociáveis do poder operário e popular.
Mas existia uma condição para que a hegemonia do proletariado se efetuasse. “O proletariado”, afirmou ele, “pode se tornar classe dirigente e dominante na medida em que consegue criar um sistema de alianças de classes que permita mobilizar contra o capitalismo e o Estado burguês a maioria da população trabalhadora”. Era preciso ampliar a base social da revolução e do novo poder que surgiria; para tanto, era necessária a construção de uma ampla frente sob direção política e cultural da classe operária e do seu partido político – o Partido Comunista.
Luciano Gruppi nos lembrou que, ao contrário de Gramsci, Lênin em seus textos parecia reduzir o conceito de hegemonia a um “determinado tipo de aliança”, jamais utilizando o termo para designar o próprio exercício da Ditadura do Proletariado. O motivo, segundo ele, seria que Lênin estava “empenhado numa polêmica direta, numa áspera luta contra os reformistas, contra os socialdemocratas que negavam o conceito marxista de Ditadura do Proletariado”.
Este autor está apenas parcialmente correto. O reforço, ou melhor, o resgate do termo Ditadura do Proletariado, não se deu, exclusivamente, por causa do acirrado debate ocorrido no seio das correntes socialdemocratas, mas, sim, fundamentalmente, devido à precisão conceitual do termo. Para Lênin, o exercício da Ditadura do Proletariado pressupunha hegemonia política desta classe. Esta era um componente necessário para a construção e a estabilidade do novo regime.
Os dois conceitos, ditadura e hegemonia, não se confundiam (embora esta confusão possa existir em trechos da obra de Gramsci). O primeiro dizia respeito à essência particular do novo poder que surge, o Estado operário – é bom relembrarmos a fórmula concisa de Engels, Estado = ditadura de classe. O segundo significava a direção político-ideológica que forjaria a base social necessária para a conquista do poder político e a construção do Estado socialista.
Neste sentido, podemos afirmar que o conceito de hegemonia, embora não explicitado, esteve presente em toda a obra política de Lênin, ganhando maior importância durante os períodos revolucionários (1905 e 1917) e também nos primeiros anos de construção do poder socialista, traduzindo-se no difícil problema da aliança entre operários e camponeses, entre operários e intelectualidade formada no seio da sociedade capitalista etc.
Gramsci afirmou: “ou o proletariado, através de seu partido político consegue (…) criar um sistema de alianças no sul, ou então as massas camponesas buscarão dirigentes políticos nesta mesma zona, ou seja, entregar-se-ão completamente nos braços da pequena burguesia amendolina, tornando-se reserva da contrarrevolução”. Continuou: “o problema camponês continua a ser o problema central de qualquer revolução em nosso país e de qualquer revolução que queira dar frutos: e, por isto, deve ser posto com coragem e decisão”. A Itália era ainda um país agrícola com uma grande população camponesa. Mais uma vez vemos aqui o pensamento de Lênin com toda a sua força.
Na Itália, tais teses cumpriram um papel importante, visto que o movimento operário e socialista, desde a direita socialdemocrata – que tendia a formar uma aliança prioritária apenas com burguesia liberal nortista – até os esquerdistas de Amadeo Bordiga – contrários a qualquer concessão em relação ao programa máximo dos comunistas – mostravam-se contrários a uma aliança estratégica entre os operários do norte e os camponeses do sul. Portanto, colocar o problema da construção da aliança operária e camponesa na Itália era também colocar concretamente o problema da construção da hegemonia pelo proletariado no processo revolucionário italiano. Sem medo de forçar a nota podemos afirmar que Gramsci foi o principal dirigente revolucionário leninista na Itália do final dos anos de 1910 e início dos anos de 1920.
Coerção e hegemonia
Uma pergunta então surge: poderia existir um Estado que se mantivesse sem a coerção ou sem hegemonia? A resposta do marxismo deveria ser não. No entanto, vários autores afirmaram que aqui haveria uma diferença fundamental entre as concepções de Lênin e de Gramsci. Um absolutizaria a coerção e outro o consenso na definição do Estado, especialmente o socialista. Acredito que as diferenças entre os dois pensadores não sejam tão significativas assim. O que existiu foi o reforço de um ou outro aspecto da ditadura de classe, entendida sempre como articulação complexa entre direção político-ideológica e coerção. Nenhum Estado poderia se sustentar permanentemente apenas através da coerção física e, pelo contrário, nenhum Estado, por mais democrático que seja, pode abrir mão de utilizar amplamente os mecanismos repressivos de que dispõe para manter a ordem estabelecida.
Esta diferença na tônica foi fruto dos diferentes momentos históricos nos quais se inseriram um e outro autor. Lênin escreveu os seus principais trabalhos sobre o Estado e, portanto, sobre a ditadura de classe, num período bastante próximo do assalto ao poder na Rússia, em plena efervescência revolucionária na Europa e, portanto, inserem-se num período de acirramento da luta de classes e em meio a um acalorado debate entre a ala esquerda e direita da socialdemocracia. Esta última negava categoricamente o papel central da violência revolucionária nos processos de transições socialistas e a necessidade de implantação de uma Ditadura do Proletariado – exercício da coerção política sobre a burguesia contrarrevolucionária.
Tudo isto levou Lênin a concentrar as suas atenções no problema do Estado enquanto instrumento de coerção nas mãos de uma classe, em detrimento aos papéis de educador e de dirigente de qualquer Estado, mesmo os mais despóticos. Contudo, jamais deixou de alertar para a existência do outro fator. Mesmo em obras como O Estado e a Revolução e O Renegado Kautsky, ambas de 1917, estes aspectos (educativo e dirigente) estavam presentes, embora de maneira não central.
Foi o próprio Lênin que nos falou do papel do Estado socialista, que seria o de “dirigir, organizar (…) ser o educador, o dirigente de todos os explorados, na obra de organização da vida social, sem a burguesia e contra ela”. Estas características conviveriam, lado a lado, com o exercício da coerção sobre o que restou das classes exploradoras derrubadas do poder.
Gostaria ainda de citar duas outras passagens extraídas do Esquerdismo, doença infantil do comunismo, e nas quais Lênin reforçou o papel de educador e de direção do Estado proletário. “A Ditadura do Proletariado”, escreveu, “é uma luta tenaz, cruel e terrível, violenta e pacífica, militar, econômica, pedagógica e administrativa, contra as forças da tradição da velha sociedade”, e concluiu: “sob a Ditadura do Proletariado, será preciso reeducar milhões de camponeses e pequenos proprietários, intelectuais burgueses, subordinando todos à direção do proletariado”.
Antônio Gramsci, por sua vez, escreveu no momento de recuo da revolução europeia e de avanço do nazi-fascismo. Por fim, o próprio entendimento de que o Estado seria um instrumento de coerção de uma classe sobre a outra já estava demasiadamente consolidado no interior do movimento comunista a ponto de se tornar o único aspecto a ser considerado. Este foi, sem dúvida, o reflexo de uma leitura dogmática e a-histórica dos textos do próprio Lênin.
Ele buscou, justamente, resgatar as contribuições de Lênin e aprofundá-las. Afirmou que o problema do Estado era mais complexo. Sem discordar de que o Estado era fundamentalmente um instrumento de coerção, estendeu o seu estudo a outro aspecto: o Estado enquanto dirigente e educador, buscando compreender o papel que as ideologias desempenhavam neste processo. Compreendeu que a produção e a reprodução das relações sociais não podiam se dar, exclusivamente, através da coerção; elas se davam de múltiplas (e complexas) formas, nas quais as ideologias jogavam um papel decisivo. Para Gramsci, o Estado seria “hegemonia encouraçada de coerção”. Era preciso superar as teses simplistas imperantes no seio da III Internacional e ele, com a ajuda de Lênin, em certo sentido, as superou.
* Este artigo foi publicado no livro Questões de Partido: Atualidade do partido leninista no Brasil (Ed. Anita Garibaldi, 2003), organizado por Walter Sorrentino.
** Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.
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