Os 25 anos do ECA e as crianças de hoje
As crianças que nasceram com o ECA, em 1990, estão, hoje, com vinte e cinco anos. Com as que nasceram depois, somam cerca de 80 milhões. Isto significa que 40% da população brasileira atual nasceram e cresceram sob a égide do Estatuto da Criança e do Adolescente! Dentre esses, 58 milhões – com idade entre 0 e 18 anos – estão, neste momento, sob o olhar da proteção integral. E gozam do direito à prioridade absoluta na garantia dos seus direitos.
Quanto o ECA influiu em suas vidas? Quanto ele nos instruiu sobre a “peculiar” fase de crescimento e desenvolvimento das crianças e adolescentes? Comparando com o período em que essa faixa etária era vista pelo enfoque do Código de Menores, é possível constatar alterações significativas no modo de as pessoas, as organizações sociais e o aparelho do Estado pautarem seus atos, julgamentos, iniciativas e políticas em relação à criança e aos adolescentes?
Este breve artigo reflete sobre as relações entre o ECA e a Primeira Infância – fase da vida das crianças ater seis anos de idade.
Por mais que se diga que o ECA se ocupa mais do adolescente do que da criança – o que é verdade, mas de certa forma compreensível, em função do contexto social e histórico em que foi construído – o que ele estabelece relativamente às crianças é revolucionário e inovador, continua atual e necessário, mesmo depois de um quarto de século de vigência. Porque seu cerne é feito de concepções, princípios e diretrizes estruturantes. Ele não quer “embelezar a superfície”, mas criar outro conceito e outra forma de integração da criança e do adolescente na sociedade, baseada no reconhecimento deles como pessoas, sujeitos de direito, cidadãos em processo de formação e já capazes de participar.
Tais princípios e diretrizes não foram concebidos por um pequeno grupo de especialistas ou militantes sociais num gabinete fechado, nem fruto de uma pretensa inspiração superior. Eles vinham nascendo e se explicitando no seio da sociedade, nos âmbitos das ciências sociais e das práticas profissionais da sociologia, da psicologia, do direito, da saúde, da educação, da assistência social, por várias décadas. Na Assembleia Nacional Constituinte eles ganharam espaço formal, institucional e jurídico e foram inscritos na Constituição Federal de 1988, como resultado de uma ampla participação social. O art. 227 é o texto emblemático que fixa o paradigma de todo o Estatuto.
As resistências e contraposições surgem de grupos remanescentes do passado, ainda enamorados do “código de menores”, e de visões obtusas que se recusam a ver a criança e o adolescente como pessoas em “peculiar processo de desenvolvimento”, abertas para a vida, ansiosas pelos horizontes humanos. Talvez, ainda, não chegaram a compreender o que significa essa expressão e as decorrências que ela determina na forma de acolher, proteger e promover as crianças e adolescentes.
Os pontos que, a meu ver, marcam um novo tempo para o agir da família, da sociedade e do Estado em relação à criança na Primeira Infância são:
1. Proteção Integral (art. 1º). Substitui-se o estreito limite do cuidado parcial, de uma ou outra área de atenção pela atenção e cuidado global da criança como pessoa completa. Proteção integral é diferente da soma de todas as áreas ou direitos. Essencialmente, é a visão da criança como pessoa, sujeito social de direito.
2. A criança é considerada sujeito social de direitos, como toda pessoa humana. Não é segregada para um mundo “infantil” no qual devesse ser vista como incompleta, frágil, ou “coitadinha” a ser protegida das possíveis ou reais agressões externas. O Estatuto afirma que a criança goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, além daqueles específicos do ser criança e de estar num processo de formação e desenvolvimento típico da idade. Abandona-se a dicotomia criança – adulto nos itens dignidade, respeito, direitos… (arts. 3º e 4º caput e arts. 5º e 6º). O Projeto de Lei nº 6.998/2013 vem complementar esse olhar com foco na Primeira Infância.
3. A definição do contorno dentro do qual se aplica o princípio da prioridade absoluta (art. 227 da CF): primazia de receber proteção e socorro; precedência de atendimento nos serviços públicos e destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção da infância e juventude (art. 4º, parágrafo único)
4. A determinação de formular políticas sociais públicas para promover a proteção integral. Embora ela devesse ser suficiente, dada sua clareza e abrangência, para que as crianças na Primeira Infância tivessem a completa atenção do Estado, grande parcela das crianças fica na sombra, no anonimato, na berlinda dos orçamentos públicos e das políticas sociais. O “discurso” está pleno críticas ao menoscabo das crianças frente à atenção dada às demandas da adolescência, em grande parte incrementadas pela mídia e pelas cobranças da sociedade. Por isso, o PL 6.998/2013 procura abrir o foco do ECA para dar mais visibilidade à Primeira Infância.
5. A original instituição de um sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente. Este é, sem dúvida, o ponto mais alto do ECA, porque cria uma estrutura de instituições e serviços abrangente de todos os direitos em todas as circunstâncias da vida desses cidadãos. Esse sistema confere permanência, autonomia e autogestão à proteção integral. Ele deve funcionar segundo o conceito de redes de organizações comprometidas e responsáveis para que toda criança e adolescente tenham desenvolvimento “sadio e harmonioso, em condições dignas de existência” (art. 7º).
6. A atenção para a individualidade da criança e do adolescente, respeitando a diversidade. Para o ECA, não há uma criança padrão, um paradigma universal, um modelo a ser imitado no crescimento e desenvolvimento de cada indivíduo. Tanto que o artigo que “define” criança e adolescente se atém ao critério etário, sem caracterizações, adjetivações ou ubicação histórica ou sociocultural. E sim crianças concretas, que, desde seu contexto familiar, comunitário, étnico, religioso, social, enfim, cultural, avançam em personalização, em autorrealização, na convivência familiar e comunitária, contando com a proteção da família, da sociedade e do Estado.
Todo o Estatuto está impregnado desta concepção, de forma extensiva e difusa, e pode-se vê-la em diversos itens. Um deles é o art. 28, § 6º, I, que, referindo-se às crianças indígenas e remanescentes quilombolas, preceitua que “sejam consideradas e respeitadas sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, bem como suas instituições…”.
No direito de a criança ser ouvida, o ECA é tímido e parou aquém da Convenção dos Direitos da Criança, das Nações Unidas. Mas já faz uma breve sinalização de que também esse item deve ser considerado. Não é só o adulto que fala, seja ele o pai, a mãe, o cuidador, o conselheiro tutelar, o juiz… Não são apenas eles que têm voz, interpretação e decisão sobre os assuntos de interesse da criança. Também ela tem o que dizer e deve ser ouvida (art. 28, § 1º).
O Projeto de Lei nº 6.998/2013 determina um avanço enorme na concepção da capacidade e no direito da criança, desde a Primeira Infância, de participar e de ser ouvida e compreendida em suas formas de expressão ou suas “diferentes linguagens”, em tudo o que lhe diz respeito.
Os vinte e cinco anos de ECA foram produtivos na implantação e implementação dos princípios constitucionais relativos à criança nas políticas públicas e nas relações sociais. Ficaram para trás, bem longe, as roupas esfarrapadas com que o Código de Menores e a representação social da criança vestiam esses cidadãos e os dividiam em dois grupos – “criança” e “menor”. Mas não é hora de coroar o Estatuto com louros de vitória – talvez esta nunca seja completa e definitiva – porque riscos de retrocesso surgem de vez em quando, na legislação e em políticas de assistência social e educação infantil. Isso, no entanto, não enfraquece o ECA nem nosso compromisso político com a criança e o adolescente na garantia de seus direitos. Bem escreveu o poeta: “Poderão cortar todas as flores, mas não acabarão jamais com a primavera“ (Pablo Neruda).
Que os 80 milhões de brasileiros que estão vivendo a infância, a adolescência e a juventude vejam no ECA um farol que iluminou mentalidades, apontou um novo horizonte e sinalizou como a família, a sociedade e o Estado devem atuar para que seja assegurado a cada criança e adolescente o cumprimento de cada um e todos os seus direitos.
Vital Didonet é filósofo, pedagogo e assessor legislativo da Rede Nacional da Primeira Infância
Publicado no Le Monde Diplomatique Brasil