Não é correto dizer que a história passada dos comunistas, e de todos, já estava predeterminada, assim como não é verdade dizer que o futuro está nas mãos dos jovens que virão. A “velha toupeira” escavou e continua escavando, mas como é cega, não sabe de onde vem e para onde vai, ou se anda em círculo. Quem não quer ou não pode confiar na providência deve fazer o que pode para entender e assim ajudar.
Lucio Magri. O alfaiate de Ulm – uma possível história do partido comunista italiano.

É preciso reconhecer: até aqui, em 2015, perdemos mais do que ganhamos. Depois de uma disputa presidencial acirrada em 2014, com vitória para o campo progressista, nos últimos seis meses temos acumulado derrotas pesadas e, de certo modo, também esperadas ou, no mínimo previsíveis. Perdemos com Educado Cunha na presidência da Câmara; perdemos ao não produzirmos um contraditório efetivo aos desmandos jurídicos de Sérgio Moro; perdemos ao não confrontar de forma eficiente a hegemonia discursiva da mídia que promove o caos; perdemos ao não puxar nas ruas a reforma política; perdemos com a mente neoliberal ortodoxa de Levy e seu ajuste; perdemos com o cerco policialesco a Lula; perdemos ao ter de engolir decisões regressivas como a da redução da maioridade penal; perdemos com o absurdo pedido de explicações do TCU sobre as finanças do 1º governo Dilma; perdemos com o declínio progressivo da aprovação do governo Dilma.

Experimentamos agora um sentimento de frustração. Estamos desanimados. Vejo ao meu redor companheiros decepcionados e pessimistas. Muitos acham que, inevitavelmente, teremos de entregar os pontos em breve. Já se fala que Dilma vai cair ainda este ano, já se fala em data marcada para o golpe e que não há muito o que fazer. Já se fala que o Congresso fará, entre sorrisos, um dos mais sujos serviços da história do país. O medo parece nos paralisar pensamento e ação. Para os mais otimistas, a utopia transformou-se tanto que está quase irreconhecível. Com mais ou menos esperanças, estamos de acordo que dar uma resposta na prática à vida política brasileira é muito mais complicado na nossa contingência.

Muitos colocam a culpa deste estado difícil na inação do governo, na maneira como a base progressista de partidos que estão com ele não souberam se colocar diante da ofensiva do golpismo e do conservadorismo. Eu não estou de acordo com isso, mas pode ser que haja aí alguma razão. Entretanto, o que menos precisamos agora é estarmos cheios de razão, enquanto lá fora o mundo real é ocupado pelas forças do mais ancestral obscurantismo à brasileira. Pode ser que tenham razão os cronistas da derrota ao recuperarem, com os arranjos mais diversos, uma velha legenda dos estudos marxistas segundo a qual “o velho mundo pode produzir a barbárie, mas não há um mundo novo para substituí-lo” . O grande problema das esquerdas brasileiras hoje não está, entretanto, em entender as razões de tal impasse. Elas são bem conhecidas e temos, com muita argúcia, conseguido refletir sobre elas. Por que então não conseguimos agir para transformar tais razões? Eis a nossa questão. E não temos muito tempo para elucubrar, pois é preciso agir. “Mas agir onde? Com quem?” vocês me perguntam. E eu lhes respondo: é hora de a nossa resposta brotar das ruas, do estado de permanente mobilização.

Perdendo há muitos anos as eleições presidenciais, as forças conservadoras da sociedade brasileira não ficaram paradas. Elas intensificaram a sua ocupação de espaços institucionais, politizando segundo seus interesses (e, portanto, cordialmente) as instâncias que deveriam garantir o funcionamento do Estado Democrático para todos e não apenas para os patrões. Claro que isso não é nenhuma novidade no Brasil, mas, neste momento, as personagens que guiam esse processo assumiram um grau de descaramento e cinismo que jamais se viu.

Os ferozes prosélitos da direita tupiniquim tomaram para eles o direito à ironia. E como têm se rido de nós, atônitos! Com escárnio, corruptos usam a lei contra a corrupção dos outros; cinicamente, o presidente da Câmara usa o regimento para atender aos seus caprichos; na mais deslavada desfaçatez a mídia bombardeia o caos na opinião pública. Sim, eles perderam a vergonha de dizer que as instituições da democracia existem para trabalhar a favor de interesses espúrios de grupos sociais herdeiros da velha casa grande. As instituições ocupadas por interesses obscurantistas, entreguistas e reacionários irão, se nada fizermos coletivamente, em nome da democracia, pisotear a vontade popular.

Eis a grande ironia: se o Governo Dilma cair, cairá dentro dos limites da pretensa legalidade democrática brasileira. Não haverá “golpe”, não haverá “revolta popular” no sentido denotativo dos termos. Grande parte da população está sonâmbula, aferrada a valores pequeno-burgueses retrógrados e consumistas; não é ela completamente despolitizada que irá capitanear a mudança, pois é mera boiada manobrável. Da mesma forma, quem comanda o infame baile antidemocrático sabe que não precisa recorrer a puídos uniformes verde-oliva que cheiram a naftalina: há outro exército conservador infiltrado nas veias das instituições nacionais.

Tais instituições dispensam hoje a aparência de racionalidade, trabalham demoniacamente pelo(s) golpe(s), estão funcionando para banir o PT e a “ameaça do comunismo” em conluio com forças internacionais interessadas no petróleo, na água, na floresta, no mercado consumidor brasileiro. Por isso, digo que dificilmente haverá saída para o Governo dentro dessas instituições que não esteja sustentada por uma contundente mobilização civil, capaz de interpelar os atores institucionais para o cumprimento da legalidade democrática.

Neste momento, portanto, a resposta tem de ser nossa, não há outra possível. São os setores progressistas e politizados da sociedade civil que vão puxar a resistência contra o obscurantismo, contra o golpismo, contra o fascismo colonial que vemos crescer dia-a-dia dentro das instituições. Somos nós, os estudantes; somos nós, os professores; somos nós, os sem-terra; somos nós, os sem-teto; somos nós, as mulheres; somos nós, os trabalhadores; somos nós, os que sofremos com nossas escolhas sexuais; somos nós, os desempregados; somos nós, os perseguidos; somos nós que viemos daqueles que viveram nos quilombos, nas senzalas, nas tribos: nós é que precisamos inventar a nossa resistência.

Precisamos resistir contra o golpismo não apenas em nome de um Governo, que como todos outros é passível de erros e acertos. Precisamos resistir juntos, suprapartidariamente, pois as instituições não têm funcionado a favor de nossos interesses, nós que estamos sob as botinas brilhantes do capital. Nós que vimos alguns avanços nos últimos anos não queremos perder espaços que, a muito custo, conquistamos. Nós, que não temos outro poder além do nosso trabalho, outro bem além da nossa vida, que se gasta para enriquecer os vendilhões, nós queremos a garantia do funcionamento das instituições a favor do progresso social e não do retrocesso fascista.

E para isso, a política brasileira precisará levar um choque de sociedade civil. É verdade que temos sido derrotados, mas na derrota também conhecemos melhor quem é o nosso inimigo. Sabemos bem os nomes deles, basta olhar ao redor e ver quem está sorrindo agora quem está ironizando nossas necessidades e nossos valores políticos. Esta é a hora de os diversos núcleos de organização política popular se reunirem e ocuparem as ruas, caso contrário continuaremos perdendo. Precisamos mostrar a quem devem servir as instituições.

Não é hora de confiar na providência. Não é hora de se encastelar em redes sociais. Não é hora de hesitar. Não é hora de esperar que o Governo, os Partidos de esquerda, a Justiça façam alguma coisa. A ação desses entes está limitada pelo sítio conservador das instituições e só se emancipará com a onda que deverá vir da nossa união. Nosso inimigo é a direita. Nossa meta são as reformas estruturais de sentido nacional-popular: reforma política, reforma tributária, reforma agrária, reforma urbana. Nós ainda temos uns aos outros e ainda temos as ruas. As ruas: o lugar onde se constrói coletivamente a liberdade.

Termino com uma tradução livre de um poema do grande poeta alemão Bertold Brecht à espera de que possamos construir a nossa resposta:

A quem hesita
Bertold Brecht

Dizes:
para nós vai de mal a pior. A escuridão
cresce. As forças diminuem.
Depois de trabalhar tantos anos
estamos agora em uma condição
mais difícil do que quando
havíamos começado.

E o inimigo está na ponta
mais potente que nunca.
Parece que suas forças cresceram. Ele tomou
uma aparência invencível.
E nós cometemos erros,
não se pode mais mentir.
Somos cada vez menos. Nossas
palavras de ordem são confusas. Uma parte
das nossas palavras
foram desfiguradas pelo inimigo para
que se tornassem irreconhecíveis.

Daquilo que dizíamos, o que está errado ou falso?
Alguma coisa ou tudo? Com quem
podemos contar agora? Somos sobreviventes, levados
pela corrente? Permaneceremos recuados, sem
compreender mais ninguém ou por ninguém sermos compreendidos?

Ou contaremos com a sorte?

Isto me perguntas tu. Não esperes
nenhuma resposta
além da tua.

Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). Acaba de lançar o livro de poemas e outros nem tanto assim (7letras, 2015). www.alexandrepilati.com

*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cujas perspectivas nos aparecem sempre encobertas por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.

  MAGRI, Lucio. O alfaiate de Ulm. São Paulo: Boitempo, 2014. p.26.