Revolução e Contra-Revolução na Alemanha[N162]
Setembro de 1852
Transcrição autorizada
Primeira Edição: Escrito por Engels de Agosto de 1851 a Setembro de 1852. Publicado no jornal New-York Daily Tribune de 25 e 28 de Outubro, 6, 7, 12 e 28 de Novembro de 1851; 27 de Fevereiro, 5, 15, 18 e 19 de Março, 9, 17 e 24 de Abril, 27 de Julho, 19 de Agosto, 18 de Setembro, 2 e 23 de Outubro de 1852. Assinado: Karl Marx.
Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Editorial”Avante!” – Edição dirigida por um colectivo composto por: José BARATA-MOURA, Eduardo CHITAS, Francisco MELO e Álvaro PINA.
Tradução: Publicado segundo o texto do jornal- Traduzido do inglês por José BARATA-MOURA.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo, março 2007.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial “Avante!” – Edições Progresso Lisboa – Moscovo, 1982.
Índice
I — A Alemanha no dealbar da revolução
II — O Estado prussiano
III — Os outros Estados alemães
IV —Áustria
V — A insurreição de Viena
VI — A insurreição de Berlim
VII — A Assembleia Nacional de Frankfurt
VIII — Polacos, Checos e Alemães
IX — Pan-eslavismo, a guerra do Schleswig-Holstein
X — O levantamento de Paris. A Assembleia de Frankfurt
XI — A insurreição de Viena
XII — A tomada de Viena. A traição a Viena
XIII — A Assembleia Constituinte prussiana. A Assembleia Nacional
XIV — A restauração da ordem. A Dieta e as câmaras
XV — O triunfo da Prússia
XVI — A Assembleia Nacional e os governos
XVII — Insurreição
XVIII — Pequenos negociantes
XIX — O encerramento da insurreição
Notas de Fim de Tomo:
[N162] No trabalho de Engels Revolução e Contra-Revolução na Alemanha é feito o balanço da revolução alemã de 1848-1849 e, a partir das posições do materialismo histórico, são profundamente analisadas as suas premissas, as principais etapas do seu desenvolvimento, as posições das diferentes classes e partidos. Nele são desenvolvidos os princípios tácticos da luta revolucionária do proletariado e lançadas as bases da doutrina marxista da insurreição armada.
A série de artigos Revolução e Contra-Revolução na Alemanha foi publicada no New-York Daily Tribune em 1851-1852 e foi escrita por Engels a pedido de Marx, nessa altura ocupado com investigações económicas. Foi publicada no Tribune com a assinatura de Marx, que era o correspondente oficial do jornal; só em 1913, devido à publicação da correspondência entre Marx e Engels, se soube que este trabalho fora escrito por Engels. (retornar ao texto)
I — A Alemanha no dealbar da revolução
O primeiro acto do drama revolucionário no continente europeu terminou. Os “poderes que estavam” antes do furacão de 1848 são, de novo, “os poderes que estão” e os senhores mais ou menos populares por um dia, governantes provisórios, triúnviros, ditadores — com o seu séquito de representantes, comissários civis, comissários militares, prefeitos, juizes, generais, oficiais e soldados — são lançados para costas estrangeiras e “transportados para além dos mares”, para a Inglaterra ou para a América, a fim de aí formarem novos governos “in partibus infidelium”[N91], comités europeus, comités centrais, comités nacionais, e de anunciarem o seu advento com proclamações tão solenes como as de quaisquer outros potentados menos imaginários.
Não pode imaginar-se uma derrota mais assinalável do que a sofrida pelo partido — ou antes: partidos — revolucionários continentais em todos os pontos da linha de batalha. Mas, e daí? Não abarcou a luta das classes médias britânicas pela sua supremacia social e política quarenta e oito anos e a das classes médias francesas quarenta anos de lutas sem exemplo? E esteve alguma vez o seu triunfo mais próximo do que no preciso momento em que a monarquia restaurada se julgou mais firmemente estabelecida do que nunca? Os tempos daquela superstição que atribuía as revoluções à malevolência de uns poucos agitadores já passaram há muito. Toda a gente sabe, hoje em dia, que onde quer que haja convulsão revolucionária tem de haver por detrás alguma carência social que é impedida de se satisfazer por instituições gastas. A carência pode não ser ainda sentida de uma maneira tão forte e tão geral que possa assegurar um sucesso imediato, mas toda a tentativa de repressão pela força apenas fará com que ela se produza cada vez com mais força até rebentar com os seus grilhões. Se, então, fomos batidos não temos outra coisa a fazer senão começar de novo desde o princípio. E, felizmente, o provavelmente muito curto intervalo de descanso que nos é consentido, entre o final do primeiro e o começo do segundo acto do movimento, dá-nos tempo para um trabalho muito necessário: o estudo das causas que tornaram necessárias tanto a última erupção como a sua derrota; causas que não são de procurar nos esforços, talentos, faltas, erros ou traições acidentais de alguns dos dirigentes, mas no estado social geral e nas condições de existência de cada uma das nações convulsionadas. Que os súbitos movimentos de Fevereiro e Março de 1848 não foram obra de indivíduos isolados, mas manifestações espontâneas, irresistíveis, de carências e de necessidades nacionais, mais ou menos claramente entendidas, mas muito distintamente sentidas por numerosas classes em todos os países, é um facto reconhecido por toda a parte; mas, quando se inquire das causas dos sucessos contra-revolucionários, é-se confrontado de todos os lados com a resposta de que foi o senhor Este ou o cidadão Aquele que “traiu” o povo. Resposta esta que pode ser muito verdadeira ou não, consoante as circunstâncias, mas que em circunstância alguma explica o que quer que seja — nem mesmo mostra como é que veio a acontecer que o “povo” consentisse, desse modo, em ser traído. E quão poucas hipóteses tem um partido político cujos inteiros recursos consistam num conhecimento do facto solitário de que o cidadão Tal ou Tal não é digno de confiança!
O inquérito e a exposição das causas, tanto da convulsão revolucionária como da sua supressão, são, além disso, de suprema importância, de um ponto de vista histórico. Todas estas pequenas querelas pessoais e recriminações — todas estas asserções contraditórias, de que foi Marrast ou Ledru-Rollin ou Louis Blanc ou qualquer outro membro do governo provisório ou todos eles que pilotaram a revolução pelo meio dos rochedos em que naufragou — que interesse podem ter, que luz podem proporcionar ao americano, ou ao inglês, que observou estes vários movimentos a uma distância demasiado grande para lhe permitir distinguir qualquer dos pormenores das operações? Ninguém em seu perfeito juízo acreditará alguma vez que onze homens(1*), a maior parte deles de capacidade muito indiferente tanto para o bem como para o mal, foram capazes, em três meses, de arruinar uma nação de trinta e seis milhões, a não ser que esses trinta e seis milhões vissem tão pouco adiante do nariz como os tais onze. Mas, como é que veio a acontecer que esses trinta e seis milhões fossem de imediato chamados a decidir por si próprios qual o caminho a seguir — apesar de, em parte, andarem às apalpadelas num crepúsculo sombrio — e como é que, então, eles se perderam e os seus antigos dirigentes puderam, por um momento, regressar à liderança, esta é precisamente a questão.
Se, portanto, tentamos apresentar aos leitores de The Tribune[N163] as causas que, enquanto tornavam necessária a revolução alemã de 1848, conduziam, quase tão inevitavelmente, à sua repressão momentânea em 1849 e 1850, não deve esperar-se que forneçamos uma história completa dos acontecimentos tal como se passaram naquele país. Acontecimentos ulteriores e o juízo das gerações vindouras decidirão que porção dessa confusa massa de factos, aparentemente acidentais, incoerentes e incongruentes, deve fazer parte da história universal. O tempo de uma tal tarefa ainda não chegou; temos de nos confinar aos limites do possível e de ficar satisfeitos se pudermos encontrar causas racionais, baseadas em factos inegáveis, para explicar os principais acontecimentos, as principais vicissitudes desse movimento, e para nos dar uma pista quanto à direcção que a próxima — e talvez não muito distante — erupção irá imprimir ao povo alemão.
E, em primeiro lugar, qual era o estado da Alemanha no dealbar da revolução?
A composição das diferentes classes do povo que formam o alicerce de toda a organização política era, na Alemanha, mais complicada do que em qualquer outro país. Enquanto, em Inglaterra e em França, o feudalismo havia sido inteiramente destruído ou, pelo menos, como no primeiro país, reduzido a umas poucas formas insignificantes por uma classe média rica e poderosa, concentrada em grandes cidades e, particularmente, na capital, a nobreza feudal na Alemanha tinha conservado uma grande porção dos seus antigos privilégios. O sistema feudal da tenência prevalecia quase em toda a parte. Os senhores da terra tinham mesmo conservado a jurisdição sobre os seus tenentes. Privados dos seus privilégios políticos, do direito de controlar os príncipes, tinham preservado quase toda a sua supremacia medieval sobre o campesinato dos seus domínios, assim como a sua isenção de impostos. O feudalismo era mais florescente em algumas localidades do que em outras, mas em parte alguma, a não ser na margem esquerda do Reno, estava inteiramente destruído. Esta nobreza feudal, então extremamente numerosa e em parte muito rica, era considerada, oficialmente, como o primeiro “estado”(2*) do país. Fornecia os funcionários superiores do governo, comandava quase exclusivamente o exército.
A burguesia da Alemanha não era de longe tão rica e concentrada como a de França ou de Inglaterra. As antigas manufacturas da Alemanha tinham sido destruídas pela introdução do vapor e pela supremacia em rápida extensão das manufacturas inglesas; as manufacturas mais modernas, que arrancaram com o sistema continental de Napoleão[N15], estabelecidas em outras partes do país, não compensaram a perda das antigas, nem foram suficientes para criar um interesse manufactureiro forte o bastante para impor as suas necessidades à atenção de governos ciosos de qualquer extensão de riqueza e de poder não nobres. Se a França manteve vitoriosamente as suas manufacturas de seda durante cinquenta anos de revoluções e guerras, a Alemanha, durante o mesmo tempo, perdeu quase completamente o seu antigo negócio de linho. Os distritos manufactureiros, além disso, eram poucos e muito disseminados; situados muito no interior e utilizando, na maior parte, portos estrangeiros, holandeses e belgas, para as suas importações e exportações, tinham poucos ou nenhuns interesses em comum com as grandes cidades portuárias no mar do Norte e no Báltico; eram, acima de tudo, incapazes de criar grandes centros manufactureiros e de negócios, como Paris e Lyon, Londres e Manchester. As causas deste atraso das manufacturas alemãs eram múltiplas, mas duas são suficientes para dar conta dele: a situação geográfica desfavorável do país, longe do Atlântico, que se tinha tornado a grande via para o comércio mundial, e as contínuas guerras em que a Alemanha esteve envolvida, desde o século dezasseis até aos dias de hoje, e que eram travadas no seu solo. Foi esta carência de número e, particularmente, de algo como um número concentrado, que impediu as classes médias alemãs de atingir aquela supremacia política de que o burguês inglês gozava desde 1688 e que o francês conquistou em 1789. E, contudo, desde 1815, a riqueza, e com a riqueza a importância política, da classe média na Alemanha estava em contínuo crescimento. Os governos, embora relutantemente, eram compelidos a inclinar-se, ao menos, perante os seus interesses materiais imediatos. Pode mesmo dizer-se com verdade que, de 1815 a 1830 e de 1832 a 1840, cada partícula de influência política que, tendo sido concedida à classe média nas constituições dos Estados mais pequenos, de novo lhes foi arrancada durante os dois períodos atrás citados de reacção política — que cada uma dessas partículas foi compensada por uma vantagem algo mais prática que lhes foi concedida. Cada derrota política da classe média trouxe consigo uma vitória no campo da legislação comercial. E certamente que a Tarifa Protectora Prussiana[N164] de 1818 e a formação do Zollverein[N165] valeram bastante mais aos comerciantes e manufactureiros da Alemanha do que o direito equívoco de expressarem, nas câmaras de algum diminuto ducado, a sua falta de confiança em ministros que se riam dos seus votos. Assim, com a riqueza crescente e o comércio em expansão, a burguesia cedo chegou a um estádio em que achou o desenvolvimento dos seus mais importantes interesses refreado pela constituição política do país — pela sua divisão fortuita entre trinta e seis príncipes com tendências e caprichos em conflito; pelos grilhões feudais à volta da agricultura e do comércio com ela relacionado; pela superintendência bisbilhoteira a que uma burocracia ignorante e presunçosa submetia todas as suas transacções. Ao mesmo tempo, a extensão e consolidação do Zollverein, a introdução geral da comunicação a vapor, a crescente concorrência no comércio interno, aproximaram as classes comerciais dos diferentes Estados e províncias, igualizaram os seus interesses, centralizaram a sua força. A consequência natural foi a sua passagem em massa para o campo da oposição liberal e o facto de terem ganho a primeira luta séria da classe média alemã pelo poder político. Esta mudança pode ser datada de 1840, do momento em que a burguesia da Prússia assumiu a liderança do movimento da classe média da Alemanha. Mais adiante, teremos de voltar a este movimento da oposição liberal de 1840-1847.
A grande massa da nação, que não pertencia nem à nobreza nem à burguesia, consistia, nas cidades, na classe do pequeno comércio e dos lojistas e nos operários e, no campo, no campesinato.
A classe do pequeno comércio e dos lojistas é excessivamente numerosa na Alemanha, em consequência do desenvolvimento interrompido que os grandes capitalistas e manufactureiros, como classe, tiveram, naquele país. Nas maiores cidades, ela forma quase a maioria dos habitantes; nas mais pequenas, predomina inteiramente, dada a ausência de concorrentes à influência mais ricos. Esta classe, uma das mais importantes de todo o corpo político moderno, e em todas as revoluções modernas, é ainda mais importante na Alemanha, onde durante as recentes lutas geralmente desempenhou o papel decisivo. A sua posição intermédia entre a classe dos grandes capitalistas, comerciantes e manufactureiros, a burguesia, propriamente dita, e a classe proletária ou industrial determina o seu carácter. Aspirando à posição da primeira, o menor golpe adverso da fortuna deita abaixo os indivíduos desta classe para as fileiras da segunda. Nos países monárquicos e feudais, a freguesia da corte e da aristocracia torna-se necessária para a sua existência; a perda desta freguesia poderia arruinar uma grande parte dela. Nas cidades mais pequenas, uma guarnição militar, um governo de condado, um tribunal com a sua comitiva, constituem, muito frequentemente, a base da sua prosperidade; retirem-nos, e os lojistas, os alfaiates, os sapateiros, os marceneiros, vão por aí abaixo. Deste modo, eternamente sacudida entre a esperança de entrar nas fileiras da classe mais rica e o medo de ser reduzida à condição de proletários ou mesmo de pobres; entre a esperança de promover os seus interesses, conquistando uma parte da direcção dos negócios públicos, e o receio de, por uma oposição intempestiva, desencadear a ira de um governo que dispõe da sua própria existência, porque tem o poder de retirar os seus melhores fregueses; possuidora de pequenos meios, cuja insegurança de posse está na razão inversa do seu montante; esta classe é extremamente vacilante nas suas opiniões. Humilde e rasteiramente submissa perante um governo feudal ou monárquico poderoso, passa para o lado do liberalismo quando a classe média está em ascensão; apodera-se de violentos acessos democráticos logo que a classe média assegurou a sua própria supremacia, mas volta a cair no abjecto desânimo do medo, assim que a classe abaixo dela, os proletários, intenta um movimento independente. Veremos, a pouco e pouco, esta classe na Alemanha passar, alternadamente, de um destes estádios para o outro.
A classe operária na Alemanha, no seu desenvolvimento social e político, está tão atrás da da Inglaterra e da França, como a burguesia alemã está atrás da burguesia desses países. Tal patrão, tal empregado. A evolução das condições de existência de um proletariado numeroso, forte, concentrado e inteligente, vai de mãos dadas com o desenvolvimento das condições de existência de uma classe média numerosa, rica, concentrada e poderosa. O próprio movimento da classe operária nunca é independente, nunca tem um carácter exclusivamente proletário, antes de que todas as diferentes facções da classe média e, particularmente, a sua facção mais progressiva, os grandes manufactureiros, tenham conquistado poder político e remodelado o Estado de acordo com as suas necessidades. É então que o inevitável conflito entre o patrão e o empregado se torna iminente e não pode mais ser adiado; que a classe operária não pode mais ser relegada com esperanças e promessas ilusórias que nunca se realizarão; que o grande problema do século dezanove, a abolição do proletariado, passa finalmente para o primeiro plano, francamente e na sua verdadeira dimensão. Ora, na Alemanha, a massa da classe operária é empregada não por aqueles senhores da manufactura moderna de que a Grã-Bretanha fornece tão esplêndidos especímenes, mas por pequenos negociantes cujo inteiro sistema de manufactura é uma mera relíquia da Idade Média. E assim como há uma diferença enorme entre o grande senhor do algodão e o pequeno sapateiro ou o mestre alfaiate, há também uma distância correspondente entre o operário fabril bem desperto das modernas Babilónias manufactureiras e o tímido jornaleiro alfaiate ou marceneiro de uma pequena cidade de província, que vive em circunstâncias e trabalha segundo um plano muito pouco diferente do daquele mesmo tipo de homens há alguns quinhentos anos atrás. Esta ausência geral de modernas condições de vida, de modos de produção industrial modernos, era certamente acompanhada por uma muito igual ausência geral de ideias modernas e não é por isso de espantar que, aquando do dealbar da revolução, uma grande parte das classes laboriosas gritasse pelo restabelecimento imediato das guildas e das corporações de mesteirais privilegiadas da Idade Média. Todavia, a partir dos distritos manufactureiros, onde predominava o sistema de produção moderno, e em consequência das facilidades de intercomunicação e de desenvolvimento mental proporcionadas pela vida migratória de um grande número de operários, formou-se um forte núcleo, cujas ideias acerca da emancipação da sua classe eram muito mais claras e estavam mais de acordo com os factos existentes e as necessidades históricas; mas eram uma simples minoria. Se o movimento activo das classes médias pode ser datado de 1840, o da classe operária começa o seu advento com as insurreições dos operários fabris da Silésia e da Boémia de 1844[N166] e teremos, em breve, ocasião de passar em revista os diferentes estádios por que este movimento passou.
Finalmente, havia a grande classe dos pequenos lavradores, o campesinato, que, com o seu apêndice de trabalhadores rurais, constitui a maioria considerável de toda a nação. Mas esta classe subdividia-se ainda ela própria em diferentes fracções. Havia, em primeiro lugar, os lavradores mais ricos, aquilo a que se chama na Alemanha Gross e Mittel-Bauern(3*), proprietários de herdades mais ou menos extensas e dirigindo cada um deles os serviços de vários trabalhadores agrícolas. Esta classe, colocada entre os grandes detentores feudais da terra, isentos de impostos, e o campesinato mais pobre e os trabalhadores rurais, encontrou, por razões óbvias, numa aliança com a classe antifeudal das cidades, o seu curso político mais natural. Havia, depois, em segundo lugar, os pequenos camponeses livres, que predominavam na região do Reno, onde o feudalismo tinha sucumbido ante os abalos poderosos da grande Revolução Francesa. Pequenos camponeses livres e independentes deste tipo existiam também aqui e além noutras províncias, ali onde tinham conseguido resgatar os encargos feudais que anteriormente impendiam sobre as suas terras. Esta classe, contudo, era uma classe de camponeses livres apenas de nome, uma vez que a sua propriedade estava geralmente hipotecada, a tal ponto e em condições tão onerosas que não era o camponês, mas o usurário que tinha avançado o dinheiro, o real proprietário da terra. Em terceiro lugar, os rendeiros feudais, que não podiam ser facilmente expulsos dos seus arrendamentos, mas que tinham de pagar uma renda perpétua ou de realizar em perpetuidade uma certa quantidade de trabalho em favor do senhor do feudo. Finalmente, os trabalhadores agrícolas, cuja situação, em muitas grandes casas agrícolas, era exactamente a da mesma classe em Inglaterra e que, em todos os casos, viviam e morriam pobres, mal alimentados e escravos dos seus patrões. Estas três últimas classes da população agrícola, os pequenos camponeses livres, os rendeiros e os trabalhadores agrícolas, nunca se preocuparam muito com a política antes da revolução, mas é evidente que este acontecimento teve de lhes abrir uma nova via, cheia de brilhantes perspectivas. A cada uma delas a revolução oferecia vantagens e, uma vez o movimento bem engrenado, era de esperar que cada uma por sua vez se lhe haveria de juntar. Mas, ao mesmo tempo, é também evidente e igualmente testemunhado pela história de todos os países modernos, que a população agrícola, em consequência da sua dispersão por um grande espaço e da dificuldade em conseguir um entendimento entre qualquer parte considerável dos seus membros, nunca pode tentar um movimento independente com sucesso; requer o impulso iniciador da gente das cidades, mais concentrada, mais esclarecida, mais facilmente posta em movimento.
O pequeno esboço precedente das classes mais importantes que no seu agregado formavam a nação alemã no dealbar dos recentes movimentos será já suficiente para explicar uma grande parte da incoerência, incongruência e manifesta contradição que prevaleceu naquele movimento. Quando interesses tão variados, tão em conflito, entrecruzando-se tão estranhamente, são levados a uma colisão violenta; quando estes interesses em conflito se misturam, em cada distrito, em cada província, em diferentes proporções; quando, acima de tudo, não há um grande centro no país, não há uma Londres, não há uma Paris, cujas decisões, pelo seu peso, possam obviar à necessidade de lutar pela mesma questão repetidamente em cada localidade; que outra coisa será de esperar senão que a contenda se dissolverá ela própria numa massa de lutas desconexas, nas quais se gasta uma quantidade enorme de sangue, de energia e de capital, mas que apesar de tudo permanece sem quaisquer resultados decisivos?
O desmembramento político da Alemanha em três dúzias de principados mais ou menos importantes é, igualmente, explicada por esta confusão e multiplicidade dos elementos que compõem a nação e que, uma vez mais, variam em cada localidade. Onde não há interesses comuns, não pode haver unidade de objectivos e, muito menos, de acção. É verdade que a Confederação Germânica[N95] foi declarada para sempre indissolúvel; contudo, a Confederação e o seu órgão, a Dieta[N167] nunca representaram a unidade alemã. O mais alto grau a que, na Alemanha, a centralização alguma vez foi levada foi o estabelecimento do Zollverein; com isto, os Estados do mar do Norte foram também levados a uma união aduaneira própria[N168], permanecendo a Áustria entregue à sua proibitiva tarifa separada. A Alemanha, para todos os fins práticos, teve a satisfação de ser dividida entre três poderes independentes só, em vez de entre trinta e seis. Claro que a proeminente supremacia do tsar da Rússia(4*), tal como se estabeleceu em 1814, não sofreu qualquer alteração por este facto.
Tendo tirado estas conclusões preliminares das nossas premissas, veremos, no artigo seguinte, como as várias classes do povo alemão anteriormente referidas foram postas em movimento, uma após outra, e que carácter este movimento assumiu com o irromper da revolução francesa em 1848.
Londres, Setembro de 1851.
II — O Estado prussiano >>>
Início da página
Notas de Rodapé:
(1*) Membros do governo provisório francês. (retornar ao texto)
(2*) No original “Order”. Trata-se de uma referência à nobreza como “estado social”. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(3*) Em alemão no texto: grandes e médios camponeses. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(4*) Alexandre I. (retornar ao texto)
Notas de Fim de Tomo:
[N15] Sistema continental ou bloqueio continental: proibição, imposta em 1806 por Napoleão I aos países do continente europeu, de comerciarem com a Inglaterra. O bloqueio continental caiu após a derrota de Napoleão na Rússia. (retornar ao texto)
[N91] In partibus infidelium (literalmente: no país dos infiéis): adição ao título dos bispos católicos designados para cargos puramente nominais em países não cristãos. Esta expressão encontra-se frequentemente em Marx e Engels aplicada a diferentes governos emigrados, formados no estrangeiro sem ter minimamente em conta a situação real no país. (retornar ao texto)
[N95] A Confederação Germânica, criada em 8 de Junho de 1815 no Congresso de Viena, constituía uma união dos Estados alemães absolutistas-feudais e consolidou o fraccionamento político e económico da Alemanha. (retornar ao texto)
[N163] Tribune: título abreviado do jornal burguês progressista The New- York Daily Tribune (A Tribuna Diária de Nova Iorque), que se publicou entre 1841 e 1924. Entre Agosto de 1851 e Março de 1862 Marx e Engels colaboraram no jornal. (retornar ao texto)
[N164] Tarifa Protectora Prussiana de 1818: abolição dos direitos alfandegários internos no território da Prússia. (retornar ao texto)
[N165] Zollverein (União Aduaneira), fundada em 1834 sob os auspícios da Prússia. Agrupava quase todos os Estados alemães; estabelecendo uma fronteira alfandegária comum, facilitou a futura unificação política da Alemanha. (retornar ao texto)
[N166] A insurreição dos tecelãos da Silésia de 4-6 de Junho de 1844, o primeiro grande choque de classe entre o proletariado e a burguesia na Alemanha, e a insurreição dos operários checos na segunda metade de Junho de 1844 foram cruelmente esmagadas pelas tropas governamentais. (retornar ao texto)
[N167] Dieta: órgão central da Confederação Germânica, com sede em Frankfurt-am-Main, foi um instrumento da política reaccionária dos governos alemães. (retornar ao texto)
[N168] A chamada União Aduaneira. (Steuerverein) foi constituída em Maio de 1834, e dela faziam parte os seguintes Estados alemães: Hannover, Braunschweig, Oldenburg e Schaumburg-Lippe, interessados no comércio com a Inglaterra. Em 1854 esta união separada desfez-se e os seus participantes entraram para o Zollverein (União Aduaneira) (ver nota 165). (retornar ao texto)
II — O Estado prussiano
O movimento político da classe média, ou burguesia, na Alemanha, pode ser datado de 1840. Foi precedido de sintomas que mostravam que a classe endinheirada e industrial daquele país estava a amadurecer para uma situação que não mais lhe ia permitir continuar apática e passiva sob a pressão de um monar-quismo meio feudal, meio burocrático. Os príncipes mais pequenos da Alemanha, em parte, para garantir para si próprios uma maior independência relativamente à supremacia da Áustria e da Prússia, ou relativamente à influência da nobreza nos seus próprios Estados, em parte, a fim de consolidar num todo as províncias desconexas, reunidas sob o seu domínio pelo Congresso de Viena[N169], outorgaram, um após outro, constituições de carácter mais ou menos liberal. Podiam fazê-lo sem qualquer perigo para si próprios; pois, se a Dieta da Confederação, esse mero fantoche da Áustria e da Prússia, fosse intrometer-se na sua independência como soberanos, eles sabiam que ao resistir às suas imposições seriam apoiados pela opinião pública e pelas Câmaras; e se, pelo contrário, essas Câmaras se tornassem demasiado fortes, eles podiam prontamente ordenar ao poder da Dieta que quebrasse toda a oposição. As instituições constitucionais da Baviera, de Wiirttemberg, de Baden ou de Hannover, em tais circunstâncias, não podiam dar lugar a qualquer luta séria pelo poder político e, por conseguinte, o grande volume da classe média alemã manteve-se, na generalidade, acima das questiúnculas que surgiram nas legislaturas dos pequenos Estados, sabendo bem que sem uma mudança fundamental na política e constituição dos dois grandes poderes da Alemanha nenhuns esforços nem vitórias secundários seriam de qualquer utilidade. Mas, ao mesmo tempo, surgiu nessas pequenas assembleias uma raça de advogados liberais, oposicionistas profissionais: os Rotteck, os Welcker, os Roemer, os Jordan, os Stuve, os Eisenmann, esses grandes “homens populares” (Volksmànner) que, após uma oposição de vinte anos. mais ou menos barulhenta, mas sempre infrutuosa, foram levados ao cume do poder pela maré revolucionária primaveril de 1848 e que, depois de aí terem mostrado a sua total impotência e insignificância, foram de novo deitados a baixo num momento. Estes primeiros especímenes em solo alemão de negociante em política e oposição tornaram familiar ao ouvido alemão, com os seus discursos e escritos, a linguagem do constitucionalismo e, precisamente pela sua existência, prognosticaram a aproximação de um tempo em que a classe média havia de se apoderar e de restaurar no seu verdadeiro significado as frases políticas que estes professores e advogados faladores tinham por hábito usar, sem conhecerem muito bem o sentido que originalmente se lhes prendia.
Também a literatura alemã laborava sob a influência da excitação política em que toda a Europa tinha sido lançada pelos acontecimentos de 1830[N170]. Um constitucionalismo mal digerido ou um republicanismo ainda menos digerido era pregado por quase todos os escritores da altura. Tornou-se cada vez mais hábito, particularmente das espécies inferiores de litterati(5*), disfarçar a falta de esperteza das suas produções com alusões políticas que estavam seguras de atrair a atenção. A poesia, os romances, as recensões, o drama, toda a produção literária, abundava naquilo a que se chamava “tendência”, isto é, em exibições mais ou menos tímidas de um espírito antigovernamental. Em ordem a completar a confusão de ideias reinantes depois de 1830 na Alemanha, misturavam-se a estes elementos de oposição política recordações universitárias mal digeridas de filosofia alemã e respigos mal compreendidos de socialismo francês, particularmente, de Saint-Simonismo; e a clique de escritores que discorria sobre este conglomerado heterogéneo de ideias intitulava-se presunçosamente “Jovem Alemanha”[N171] ou “a Escola Moderna”. Arrependeram-se depois dos seus pecados de juventude, mas não melhoraram o seu estilo de escrever.
Finalmente, a filosofia alemã — esse mais complicado, mas, ao mesmo tempo, mais seguro termómetro do desenvolvimento do espírito alemão — tinha-se declarado a favor da classe média, quando Hegel, na sua Filosofia do Direito(6*), proclamou a monarquia constitucional a forma final e mais perfeita de governo. Por outras palavras, ele proclamava o advento próximo das classes médias do país ao poder político. Depois da sua morte a escola dele não ficou por aí. Enquanto a parte mais avançada dos seus seguidores, por um lado, sujeitava toda a crença religiosa à ordália de uma crítica rigorosa e abanava até aos alicerces o edifício antigo do cristianismo, apresentava, ao mesmo tempo, princípios políticos mais arrojados do que até aí aos ouvidos alemães tinha sido dado ouvir expor, e tentava voltar a pôr em destaque a memória dos heróis da primeira revolução francesa. A abstrusa linguagem filosófica com que estas ideias estavam enfarpeladas, se obscurece a mente tanto do escritor como do leitor, igualmente cega os olhos do censor, e foi assim que os escritores “Jovens Hegelianos” gozaram de uma liberdade de imprensa desconhecida em qualquer outro ramo da literatura.
Era, portanto, evidente que a opinião pública, na Alemanha, estava a passar por uma grande mudança. Gradualmente, a vasta maioria daquelas classes cuja educação ou posição na vida habilitava, sob uma monarquia absoluta, a obter alguma informação política e a formar algo de parecido com uma opinião política independente, uniu-se numa poderosa falange de oposição contra o sistema existente. E, ao formular um juízo sobre a lentidão do desenvolvimento político na Alemanha, ninguém deve deixar de ter em conta a dificuldade em obter uma informação correcta sobre qualquer assunto, num país onde todas as fontes de informação estavam sob o controlo do governo; onde, desde a escola de caridade e da catequese ao jornal e à universidade, nada era dito, ensinado, impresso ou publicado a não ser o que previamente havia obtido a sua aprovação. Veja-se Viena, por exemplo. A gente de Viena, que, na indústria e nas manufacturas, não tem talvez na Alemanha ninguém que lhe leve a palma, que, em espírito, coragem e energia revolucionária, tem provado ser de longe superior a todos, estava ainda mais ignorante quanto aos seus reais interesses e cometeu mais disparates durante a revolução do que qualquer outra; e isto deveu-se, em muito grande medida, à quase absoluta ignorância no que respeita aos assuntos políticos mais comuns em que o governo de Metternich tinha conseguido mante-la.
Não são precisas mais explicações [para compreender] por que é que, sob semelhante sistema, a informação política era um monopólio quase exclusivo daquelas classes da sociedade que se podiam permitir pagar para que ela fosse contrabandeada para dentro do país e, mais particularmente, daqueles cujos interesses eram mais seriamente atacados pelo estado de coisas existente — a saber, as classes manufactureira e comercial. Elas foram, por conseguinte, as primeiras a unirem-se numa massa contra a continuação de um absolutismo mais ou menos disfarçado e o começo do movimento revolucionário real na Alemanha tem que ser datado da sua passagem para as fileiras da oposição.
O pronunciamento oposicionista da burguesia alemã deve ser datado de 1840, da morte do anterior rei da Prússia(7*), o último fundador sobrevivente da Santa Aliança de 1815[N80]. O novo rei era conhecido como não sendo um apoiante da monarquia predominantemente burocrática e militar do seu pai. O que as classes médias francesas tinham esperado do advento de Luís XVI, esperava a burguesia alemã, em certa medida, de Frederico Guilherme IV da Prússia. De todos os lados se concordava em que o velho sistema estava ultrapassado, estava gasto, tinha de ser abandonado; e aquilo que tinha sido suportado em silêncio durante o reinado do antigo rei era agora proclamado em voz alta como intolerável.
Mas, se Luís XVI, “Louis-le-Désiré”(8*), tinha sido um simplório singelo e despretensioso, meio consciente da sua própria nulidade, sem quaisquer opiniões definidas, dominado principalmente pelos hábitos contraídos durante a sua educação, “Frederico-Guilherme-le-Désiré?” era algo de muito diferente. Enquanto certamente ultrapassava o seu original francês em fraqueza de carácter, não era desprovido nem de pretensões nem de opiniões. Tinha travado conhecimento, de um modo mais ou menos amadorístico, com os rudimentos da maioria das ciências e julgava-se, por conseguinte, suficientemente ilustrado para considerar como definitivos os seus juízos acerca de qualquer questão. Assegurou-se de que era um orador de primeira, e não havia, certamente, nenhum caixeiro-viajante em Berlim que o pudesse bater, tanto na prolixidade de pretenso espírito como na fluência da elocução. E, acima de tudo, ele tinha as suas opiniões. Odiava e desprezava o elemento burocrático da monarquia prussiana, mas apenas porque todas as suas simpatias iam para o elemento feudal. Fundador, ele próprio, e um dos principais colaboradores do Semanário Político de Berlim[N172], da chamada Escola Histórica[N173] (uma escola que vivia das ideias de Bonald, De Maistre, e outros escritores da primeira geração dos Legitimistas Franceses[N59]), visava uma restauração, tão completa quanto possível, da posição social predominante da nobreza. O rei, primeiro nobre do seu reino, rodeado, em primeira instância, por uma esplêndida corte de poderosos vassalos, príncipes, duques e condes; em segunda instância, por uma baixa nobreza numerosa e rica; reinando discricionariamente sobre os seus leais burgueses e camponeses e sendo ele próprio, portanto, o chefe de uma completa hierarquia de graus ou castas sociais, cada uma das quais devia gozar dos seus privilégios particulares e estar separada das outras pela quase inultrapassável barreira do nascimento ou de uma posição social, fixa e inalterável; contrabalançando-se tão bem o conjunto destas castas ou “estados(9*) do reino” uns aos outros, ao mesmo tempo, em poder e influência, que deveria ficar para o rei uma completa independência de acção — tal era o beau ideal(10*) que Frederico Guilherme IV se comprometeu a realizar e que, de novo, no momento presente, está a tentar realizar.
Levou algum tempo até que a burguesia prussiana, não muito versada em questões teóricas, descobrisse o real alcance da tendência do seu rei. Mas o que ela descobriu muito cedo foi que ele se debruçava sobre as coisas de uma maneira exactamente oposta à que ela queria. Mal o novo rei sentiu o seu “dom de palavra” liberto pela morte do pai, logo se pôs a proclamar as suas intenções num sem-número de discursos; e cada discurso, cada acto dos seus, contribuiu em muito para alhear dele as simpatias da classe média. Ele não se teria preocupado muito com isso, se não tivesse sido interrompido nos seus sonhos poéticos por duras e alarmantes realidades. Infelizmente, aquele romantismo não é muito rápido nas contas e aquele feudalismo, desde Dom Quixote, não conta com o seu anfitrião! Frederico Guilherme IV partilhou demasiado aquele desprezo pelo dinheiro a pronto que sempre tinha sido a mais nobre herança dos filhos dos cruzados. Quando subiu ao trono, encontrou um sistema de governo oneroso, apesar de organizado parcimoniosamente, e um Tesouro moderadamente cheio. Em dois anos, qualquer vestígio de excedente foi gasto em festas da corte, deslocações reais, presentes, subvenções aos nobres necessitados, arruinados e vorazes, etc, e os impostos regulares não mais foram suficientes para as exigências tanto da corte como do governo. E, por conseguinte, Sua Majestade muito cedo se encontrou colocada entre um brilhante défice, de um lado, e uma lei de 1820, do outro, segundo a qual qualquer novo empréstimo ou qualquer aumento dos impostos existentes sem o assentimento da “futura representação do povo” eram tornados ilegais. Esta representação não existia; o novo rei estava ainda menos inclinado do que o pai a criá-la; e se se tivesse inclinado, sabia que a opinião pública havia maravilhosamente mudado desde a sua subida ao trono.
Na verdade, as classes médias que, em parte, tinham esperado que o novo rei outorgasse imediatamente uma Constituição, proclamasse a liberdade de imprensa, tribunais com jurados, etc. — em suma, tomasse ele próprio a liderança daquela revolução pacífica que eles queriam a fim de obterem a supremacia política — as classes médias descobriram o seu erro e viraram-se ferozmente contra o rei. Na província do Reno, e de um modo mais ou menos geral por toda a Prússia, estavam tão exasperadas que, não possuindo elas próprias homens capazes de as defenderem na imprensa, foram até ao ponto de uma aliança com o partido filosófico extremo, de que já atrás falámos. O fruto desta aliança foi a Gazeta Renana[N174] de Colónia, um jornal que foi suprimido depois de quinze meses de existência, mas de que se pode datar a existência da imprensa jornalística na Alemanha. Isto foi em 1842.
O pobre rei, cujas dificuldades financeiras eram a sátira mais aguda às suas propensões medievais, muito cedo descobriu que não podia continuar a reinar sem fazer algumas ligeiras concessões ao clamor popular por aquela “Representação do Povo” que, como último remanescente das promessas há muito esquecidas de 1813 e 1815, tinha sido incorporada na lei de 1820. Achou que o modo menos objectável de satisfazer esta desagradável lei era reunir conjuntamente os Comités Permanentes das Dietas Provinciais. As Dietas Provinciais tinham sido instituídas em 1823. Em cada uma das oito províncias do reino, consistiam em:
A alta nobreza, as antigas famílias reais do Império Germânico, cujos chefes eram membros da Dieta por direito de nascimento.
Os representantes dos cavaleiros ou da baixa nobreza.
Os representantes das cidades; e
Os deputados do campesinato ou da classe dos pequenos lavradores.
Estava tudo arranjado de tal maneira que em todas as províncias as duas secções da nobreza tinham sempre uma maioria na Dieta. Cada uma destas oito Dietas Provinciais elegia um Comité, e estes oito Comités eram agora chamados a Berlim, em ordem a formar uma Assembleia de Representantes com o propósito de votar o tão desejado empréstimo. Foi afirmado que o Tesouro estava cheio, e que o empréstimo era requerido, não para necessidades correntes, mas para a construção de um Caminho-de-Ferro do Estado. Mas os Comités unidos[N175] responderam ao rei com uma recusa frontal, declarando-se incompetentes para agir como representantes do povo, e apelaram para Sua Majestade no sentido de cumprir a promessa de uma Constituição Representativa que o seu pai tinha feito quando precisou da ajuda do povo contra Napoleão.
A sessão dos Comités unidos provou que o espírito de oposição não mais estava confinado à burguesia. Uma parte do campesinato tinha-se juntado a ela e muitos nobres, sendo eles próprios grandes lavradores nas suas propriedades e negociantes de cereais, lã, álcool e linho, necessitando das mesmas garantias contra o absolutismo, a burocracia e a restauração feudal, tinham-se igualmente pronunciado contra o governo e a favor de uma Constituição Representativa. O plano do rei tinha falhado rotundamente; não tinha obtido dinheiro e havia aumentado o poder da oposição. As sessões subsequentes das próprias Dietas Provinciais foram ainda menos felizes para o rei. Todas elas pediram reformas, o cumprimento das promessas de 1813 e 1815, uma Constituição e uma imprensa livre; as resoluções de algumas delas sobre este assunto foram redigidas de uma maneira bastante pouco respeitosa e as respostas mal-humoradas do rei exasperado tornaram o mal ainda pior.
Entretanto, as dificuldades financeiras do governo continuaram a aumentar. Durante algum tempo, abatimentos feitos aos dinheiros destinados aos diferentes serviços públicos, transacções fraudulentas com a “Seehandlung”[N176], estabelecimento comercial que especulava e negociava por conta e risco do Estado e que já há muito agia como seu corretor, tinham sido suficientes para manter as aparências; emissões alargadas de papel-moeda do Estado tinham fornecido alguns recursos; e o segredo acerca de tudo isto tinha sido bastante bem guardado. Mas todos estes expedientes cedo ficaram esgotados. Foi tentado outro plano: o estabelecimento de um banco, cujo capital devia ser fornecido, em parte, pelo Estado e, em parte, por accionistas privados, em que a direcção principal pertencia ao Estado, de tal maneira que permitisse ao governo dispor numa grande medida dos fundos deste banco e, assim, repetir as mesmas transacções fraudulentas que não mais podia realizar com a “Seehandlung”. Mas,,é claro, não se encontraram capitalistas que entregassem o seu dinheiro em tais condições; os estatutos do banco tiveram que ser alterados e a propriedade dos accionistas garantida contra as usurpações do Tesouro, antes que quaisquer acções fossem subscritas. Por conseguinte, tendo este plano falhado, não restava senão tentar um empréstimo — no caso de se encontrarem capitalistas que emprestassem o seu dinheiro sem exigirem a autorização e a garantia daquela misteriosa “futura Representação do Povo”. Dirigiram-se a Rothschild e ele declarou que se o empréstimo fosse garantido por essa “Representação do Povo”, ele se encarregaria imediatamente da coisa — se não, não poderia ter nada a ver com a transacção.
Portanto, toda a esperança de obter dinheiro se tinha desvanecido e não havia qualquer possibilidade de escapar à fatal “Representação do Povo”. A recusa de Rothschild foi conhecida no Outono de 1846 e, em Fevereiro do ano seguinte, o rei chamou a Berlim todas as oito Dietas Provinciais, constituindo-as numa “Dieta Unida”[N177]. Esta Dieta, em caso de necessidade, devia desempenhar-se da tarefa requerida pela lei de 1820; votaria empréstimos e aumentos de impostos mas para além disso não teria quaisquer direitos. A sua opinião acerca da legislação geral devia ser meramente consultiva; devia reunir, não em períodos fixados, mas quando aprouvesse ao rei; não devia discutir senão o que aprouvesse ao governo apresentar-lhe. Claro que os seus membros ficaram muito pouco satisfeitos com o papel que se esperava que desempenhassem. Repetiram os desejos que haviam enunciado quando se reuniram nas assembleias provinciais; as relações entre eles e o governo cedo se tornaram acrimoniosas e quando o empréstimo, que de novo se afirmou ser necessário para construções ferroviárias, lhes foi pedido, recusaram-se de novo a concedê-lo.
Muito cedo este voto levou a que a sua sessão terminasse. O rei, cada vez mais exasperado, mandou-os embora com uma reprimenda, mas continuou a ficar sem dinheiro. E, de facto, tinha toda a razão em estar alarmado com a sua posição, ao ver que a Liga Liberal, chefiada pelas classes médias, que compreendia uma larga parte da baixa nobreza e todos os variados descontentamentos que tinham sido acumulados nas diferentes fracções das camadas inferiores — que esta Liga Liberal estava determinada a obter o que queria. Em vão declarara o rei, no discurso de abertura, que nunca, mas nunca, outorgaria uma Constituição no sentido moderno da palavra; a Liga Liberal insistia numa tal Constituição Representativa moderna, antifeudal, com todas as suas sequelas, liberdade de imprensa, tribunais com jurados, etc; e antes de a obter não concederia nem um tostão. Uma coisa era evidente: que as coisas não podiam continuar desta maneira durante muito tempo e que uma das partes tinha de ceder ou que uma ruptura, uma luta sangrenta, tinha de se seguir. E as classes médias sabiam que estavam nas vésperas de uma revolução, e prepararam-se para ela. Procuraram obter, por todos os meios possíveis, o apoio da classe operária das cidades e do campesinato nos distritos agrícolas, e é bem sabido que, mesmo nos finais de 1847, não havia praticamente um único personagem político proeminente entre a burguesia que não se proclamasse “socialista”, a fim de assegurar a simpatia da classe proletária. Veremos já a seguir estes “socialistas” em acção.
Esta impaciência da burguesia dirigente em adoptar pelo menos a aparência exterior do socialismo foi causada por uma grande mudança que sobreveio nas classes trabalhadoras da Alemanha. Desde 1840, tinha havido uma fracção de operários alemães que, tendo viajado pela França e pela Suíça, se tinham mais ou menos embebido de noções socialistas e comunistas toscas que eram, então, correntes entre os operários franceses. A crescente atenção prestada a semelhantes ideias em França, desde 1840, pôs em voga, também na Alemanha, o socialismo e o comunismo e, a partir de 1843, todos os jornais estavam cheios de discussões sobre questões sociais. Em breve se formou na Alemanha uma escola de socialistas, que se distinguia mais pela obscuridade do que pela novidade das suas ideias; os seus principais esforços consistiram na tradução das doutrinas francesas de Fourier, Saint-Simon e outras para a linguagem abstrusa da filosofia alemã[N178]. A escola comunista alemã, completamente diferente desta seita, foi formada mais ou menos ao mesmo tempo.
Em 1844, ocorreram os motins dos tecelões da Silésia, seguidos pela insurreição dos estampadores de tecidos de algodão em Praga. Estes motins, reprimidos com crueldade, motins de operários, não contra o governo, mas contra os patrões, causaram uma profunda sensação e deram um novo estímulo à propaganda socialista e comunista entre os operários. O mesmo aconteceu com os motins pelo pão durante o ano de fome de 1847. Em suma, do mesmo modo que a oposição constitucional reunia em torno da sua bandeira a grande massa das classes possidentes (com excepção dos grandes proprietários rurais feudais), as classes trabalhadoras das grandes cidades, em busca da sua emancipação, voltavam-se para as doutrinas socialista e comunista, ainda que, com as leis de imprensa então existentes, apenas lhes fosse dado conhecer muito pouco acerca delas. Não seria de esperar que tivessem ideias muito definidas acerca do que queriam — sabiam apenas que o programa da burguesia constitucional não continha tudo o que queriam e que as suas necessidades de modo algum estavam contidas no conjunto de ideias constitucionais.
Não havia, então, na Alemanha, um partido republicano separado. Ou se era monárquico constitucional, ou socialista ou comunista mais ou menos claramente definido.
Com estes elementos, a mínima colisão tinha de produzir uma grande revolução. Enquanto a alta nobreza e os velhos funcionários civis e militares eram os únicos apoios seguros do sistema existente; enquanto a baixa nobreza, as classes médias dos negócios, as universidades, os professores de todos os graus de ensino e mesmo uma parte das fileiras inferiores da burocracia e dos oficiais do exército, estavam todos coligados contra o governo; enquanto, por detrás destes, estavam as massas descontentes do campesinato e dos proletários das grandes cidades, apoiando, por enquanto, a oposição liberal, mas murmurando já palavras estranhas acerca de tomar as coisas nas suas próprias mãos; enquanto a burguesia estava pronta para derrubar o governo e os proletários se preparavam para derrubar, por sua vez, a burguesia; — este governo seguia obstinadamente um rumo que tinha de produzir uma colisão. No começo de 1848, a Alemanha estava nas vésperas de uma revolução e certamente que esta revolução viria, mesmo que a revolução francesa de Fevereiro a não tivesse acelerado.
Veremos, no artigo seguinte, quais os efeitos desta revolução de Paris sobre a Alemanha.
Londres, Setembro de 1851.
III — Os outros Estados alemães >>>
Início da página
Notas de Rodapé:
(5*) Em latim no texto: literatos. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(6*) Cf. G. W. F. Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts (Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito), § 273. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(7*) Frederico Guilherme III. (retornar ao texto)
(8*) Em francês no texto: Luís, o Desejado. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(9*) Ver nota da p. 313. Note-se, contudo, que Engels emprega desta vez a palavra “estales”. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(10*) Em francês no texto: belo ideal. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
Notas de Fim de Tomo:
[N59] Legitimistas: partidários da dinastia “legítima” dos Bourbons, derrubada em 1830, que representava os interesses dos detentores de grandes propriedades fundiárias hereditárias. Na luta contra a dinastia reinante dos Orleães (1830-1848), que se apoiava na aristocracia financeira e na grande burguesia, uma parte dos legitimistas recorria frequentemente à demagogia liberal, apresentando-se como defensores dos trabalhadores contra os exploradores burgueses. (retornar ao texto)
[N80] Santa Aliança: agrupamento reaccionário dos monarcas europeus, fundada em 1815 pela Rússia tsarista, pela Áustria e pela Prússia para esmagar os movimentos revolucionários de alguns países e manter neles regimes monarco-feudais. (retornar ao texto)
[N169] No Congresso de Viena de 1814-1815 a Áustria, a Inglaterra e a Rússia tsarista, que chefiavam a reacção europeia, retalharam o mapa da Europa com o objectivo de restaurar as monarquias legítimas, contra os interesses da unificação nacional e da independência dos povos. (retornar ao texto)
[N170] Em Julho de 1830 teve lugar em França uma revolução burguesa que foi seguida por insurreições numa série de países europeus: Bélgica, Polónia, Alemanha e Itália. (retornar ao texto)
[N171] Jovem Alemanha: grupo literário que surgiu nos anos 30; nas suas obras artísticas e jornalísticas reflectia o estado de espírito oposicionista da pequena burguesia e agiu em defesa da liberdade de consciência e de imprensa. (retornar ao texto)
[N172] Berliner politisches Wochenblatt (Semanário Político de Berlim), órgão extremamente reaccionário editado entre 1831 e 1841, com a participação de vários representantes da escola histórica do direito. (retornar ao texto)
[N173] Escola histórica do direito: corrente reaccionária da historiografia e do direito que surgiu na Alemanha em fins do século XVIII. (retornar ao texto)
[N174] Rheinische Zeitung für Politik, Handel und Gewerbe (Gazeta Renana sobre Política, Comércio e Indústria): jornal publicado em Colónia de 1 de Janeiro de 1842 a 31 de Março de 1843. Marx colaborou no jornal a partir de Abril de 1842, e em Outubro desse mesmo ano tornou-se seu redactor. (retornar ao texto)
[N175] Comités unidos: órgãos consultivos da Prússia constituídos na base de estados sociais, e que eram eleitos pelas Dietas Provinciais entre os seus componentes. (retornar ao texto)
[N176] Seehandlung (comércio marítimo): sociedade de comércio e de crédito fundada em 1772 na Prússia. Gozava de uma série de importantes privilégios estatais e concedia grandes empréstimos ao governo. (retornar ao texto)
[N177] Dieta Unida: assembleia unificada das Dietas Provinciais constituídas na base de estados sociais, que se reuniu em Berlim em Abril de 1847 para garantir ao rei um empréstimo externo. Em virtude da recusa do rei em satisfazer as mais modestas exigências políticas da maioria burguesa da Dieta, esta recusou-se a garantir o empréstimo, pelo que, em Junho desse mesmo ano, foi dissolvida pelo rei. (retornar ao texto)
[N178] Alusão às obras dos representantes do socialismo alemão ou “verdadeiro”, corrente reaccionária que se difundiu na Alemanha nos anos 40 do século XIX, particularmente entre a intelectualidade pequeno-burguesa. (retornar ao texto)
III — Os outros Estados alemães
No último artigo, tínhamo-nos confinado quase exclusivamente àquele Estado que, entre os anos de 1840 e 1848, foi de longe o mais importante no movimento alemão; isto é, à Prússia. É, no entanto, tempo de passar uma rápida vista de olhos pelos outros Estados da Alemanha durante o mesmo período.
Quanto aos pequenos Estados, desde os movimentos revolucionários de 1830, tinham passado a estar completamente sob a ditadura da Dieta, isto é, da Áustria e da Prússia. As várias constituições, estabelecidas tanto como um meio de defesa contra as imposições dos grandes Estados como para assegurar a popularidade aos seus principescos autores e unidade às heterogéneas assembleias das províncias, formadas pelo Congresso de Viena sem qualquer princípio orientador — estas constituições, por ilusórias que fossem, tinham-se mostrado, contudo, perigosas para a autoridade dos próprios pequenos príncipes durante os tempos agitados de 1830 e de 1831. Foram quase todas destruídas; o que delas se consentiu que ficasse era menos do que uma sombra, e era preciso a autocomplacência loquaz de um Welcker, de um Rotteck, de um Dahlmann, para imaginar que poderiam decorrer alguns resultados da oposição humilde, misturada com uma adulação degradante, que lhes era permitido mostrar nas câmaras impotentes destes pequenos Estados.
A parte mais enérgica da classe média destes pequenos Estados, pouco depois de 1840, abandonou todas as esperanças que anteriormente havia depositado no desenvolvimento de um governo parlamentar nestas dependências da Áustria e da Prússia. Mal a burguesia prussiana, e as classes com ela aliadas, mostrou uma séria resolução de lutar pelo governo parlamentar na Prússia, logo se consentiu que tomasse a liderança do movimento constitucional em toda a Alemanha não austríaca. É um facto que hoje já não pode ser contestado que o núcleo destes constitucionalistas da Alemanha Central — que depois se separaram da Assembleia Nacional de Frankfurt e a quem, em virtude do lugar das suas reuniões separadas, chamaram o Partido de Gotha[N179] —, desde muito antes de 1848, concebera um plano que, com poucas modificações, propôs, em 1849, aos representantes de toda a Alemanha. Pretendiam uma exclusão completa da Áustria da Confederação Germânica, o estabelecimento de uma nova Confederação com uma nova lei fundamental e um Parlamento federal, sob a protecção da Prússia, e a incorporação dos Estados mais pequenos nos maiores. Tudo isto deveria ser levado a cabo no momento em que a Prússia enfileirasse na monarquia constitucional, estabelecesse a liberdade de imprensa, assumisse uma política independente da Rússia e da Áustria e habilitasse, deste modo, os constitucionalistas dos Estados mais pequenos a obterem um controlo real sobre os respectivos governos. O inventor deste esquema foi o Professor Gervinus, de Heidelberg (Baden). Por conseguinte, a emancipação da burguesia prussiana devia ser o sinal para a das classes médias da Alemanha, em geral, e para uma aliança, ofensiva e defensiva, de ambas contra a Rússia e a Áustria; porque a Áustria era considerada, como iremos ver, como um país inteiramente bárbaro, do qual muito pouco se sabia e esse pouco não era muito abonatório da sua população; a Áustria, portanto, não era considerada como uma parte essencial da Alemanha.
Quanto às outras classes da sociedade nos pequenos Estados, seguiram mais ou menos rapidamente na esteira dos seus pares na Prússia. A classe dos lojistas ficava cada vez mais descontente com os seus respectivos governos, com o aumento dos impostos, com a privação daqueles simulacros de privilégios políticos de que se costumava gabar quando fazia comparações com os “escravos do despotismo” na Áustria e na Prússia; mas, até então, não tinha nada de definido na sua oposição que a pudesse marcar como um partido independente, distinto do constitucionalismo da alta burguesia. O descontentamento entre o campesinato ia igualmente crescendo, mas é bem sabido que este sector do povo, em tempos calmos e pacíficos, nunca reivindicará os seus interesses nem assumirá a sua posição como uma classe independente, excepto nos países em que o sufrágio universal esteja estabelecido. As classes trabalhadoras nos mesteres e manufacturas das cidades começavam a estar contagiadas pelo “veneno” do socialismo e do comunismo, mas, havendo poucas cidades de importância fora da Prússia e ainda menos distritos manufactureiros, o movimento desta classe, devido à carência de centros de acção e propaganda, era extremamente lento nos pequenos Estados.
Tanto na Prússia como nos pequenos Estados, a dificuldade de dar saída à oposição política criou uma espécie de oposição religiosa nos movimentos paralelos do Catolicismo Alemão e do Livre Congregacionalismo[N180]. A história fornece-nos numerosos exemplos de como, em países que gozam das bênçãos de uma Igreja de Estado e onde a discussão política está acorrentada, a profana e perigosa oposição ao poder terreno se esconde por detrás da luta mais santificada e aparentemente mais desinteressada contra o despotismo espiritual. Muito governo que não consentirá que nenhum dos seus actos seja discutido hesitará antes de criar mártires e de excitar o fanatismo religioso das massas. Por conseguinte, na Alemanha, em 1845, em cada Estado, tanto a religião católica romana como a protestante, ou ambas, eram consideradas parte integrante da lei do país. Em cada Estado, também, o clero de qualquer destas denominações, ou de ambas, constituía uma parte essencial do aparelho burocrático do governo. Atacar a ortodoxia protestante ou católica, atacar a clerezia, era, portanto, fazer um ataque por baixo de mão ao próprio governo. Quanto aos Católicos Alemães, a sua simples existência era um ataque aos governos católicos da Alemanha, particularmente, da Áustria e da Baviera; e como tal era tomada por estes governos. Os Livres Congregacionalistas, dissidentes protestantes algo semelhantes aos Unitários[N181] ingleses e americanos, professavam abertamente a sua oposição à tendência clerical e rigidamente ortodoxa do rei da Prússia e do, seu ministro favorito da Educação e do Culto, senhor Eichhorn. As duas novas seitas que durante algum tempo se expandiram rapidamente, a primeira nos países católicos e a segunda nos protestantes, não tinham qualquer outra distinção a não ser a sua origem diferente; no que toca às suas doutrinas, concordavam perfeitamente neste ponto muito importante: todos os dogmas estabelecidos eram nugatórios. Esta falta de qualquer definição era a própria essência delas; tinham a pretensão de construir aquele grande templo sob cujo tecto todos os alemães se poderiam unir; representavam, portanto, numa forma religiosa, outra ideia política do momento: a da unidade alemã; e, todavia, elas nunca se puderam entender entre si.
A ideia da unidade alemã, que as seitas atrás mencionadas procuraram realizar, pelo menos, numa base religiosa, inventando uma religião comum para todos os alemães, fabricada expressamente para o seu uso, hábitos e gosto — esta ideia estava, com efeito, largamente espalhada, particularmente nos pequenos Estados. Desde a dissolução do Império Germânico por Napoleão[N182], o apelo à união de todos os disjecta membra(11*) do corpo alemão tinha sido a expressão mais geral do descontentamento com a ordem de coisas estabelecida, e isto acontecia, sobretudo, nos pequenos Estados em que as despesas com uma corte, uma administração, um exército, em suma, o peso morto dos impostos, cresciam na razão directa da pequenez e impotência do Estado. Mas o que deveria ser esta unidade alemã quando levada a cabo, era uma questão sobre a qual os partidos estavam em desacordo. A burguesia, que não queria quaisquer convulsões revolucionárias sérias, ficava satisfeita com aquilo que nós vimos que ela considerava “praticável”, ou seja, uma união de toda a Alemanha, excluindo a Áustria, sob a supremacia de um governo constitucional da Prússia; e, seguramente, naquela altura, nada mais poderia ser feito, sem desencadear perigosas tempestades. A classe dos lojistas e o campesinato, na medida em que estes últimos se preocupavam com estas coisas, nunca chegaram a qualquer definição dessa unidade alemã por que tão sonoramente clamavam; uns poucos sonhadores, na maior parte reaccionários feudais, ansiavam pelo restabelecimento do Império Germânico; uns quantos ignorantes, soi-disant(12*) radicais, admiradores das instituições suíças, de que ainda não tinham tido aquela experiência prática que, mais tarde, os desenganou do modo mais caricato, pronunciavam-se a favor de uma república federada; e foi só o partido mais extremo que, naquela altura, ousou pronunciar-se por uma República alemã una e indivisível[N183]. Por consequência, a unidade alemã era em si própria uma questão prenhe de desunião, discórdia e, em certos casos, mesmo de guerra civil. Resumindo, então: esta era a situação da Prússia e dos pequenos Estados da Alemanha nos finais de 1847. A classe média, sentindo o seu poder, e resolvida a não suportar durante muito mais tempo os grilhões com que um despotismo feudal e burocrático prendia as suas transacções comerciais, a produtividade industrial, a sua acção comum como classe; uma parte da nobreza fundiária, transformada em produtora de meras mercadorias transaccionáveis ao ponto de ter os mesmos interesses e de defender a mesma causa que a classe média; a classe dos pequenos artesãos e comerciantes, descontente, resmungando contra os impostos, contra os obstáculos levantados ao curso dos seus negócios, mas sem qualquer plano definido acerca daquelas reformas susceptíveis de assegurar a sua posição no corpo social e político; o campesinato, oprimido aqui por exacções feudais, além por prestamistas, usurários e advogados; os operários das cidades, contagiados pelo descontentamento geral, odiando igualmente o governo e os grandes capitalistas industriais, e apanhando o contágio das ideias socialistas e comunistas; em suma, uma massa heterogénea de oposição, decorrente de vários interesses, mas mais ou menos conduzida pela burguesia, em cujas primeiras filas marchava a burguesia da Prússia e, particularmente, da província do Reno. Do outro lado, governos em desacordo sobre muitos pontos, desconfiados uns dos outros e, particularmente, do da Prússia, em quem, contudo, tinham de se fiar para protecção; na Prússia, um governo abandonado pela opinião pública, abandonado mesmo por uma parte da nobreza, apoiando-se num exército e numa burocracia que cada dia ficava mais contaminada pelas ideias e sujeita à influência da burguesia oposicionista — um governo, além disso, sem um tostão, no sentido mais literal da palavra, e que não podia arranjar um centavo para cobrir o seu défice crescente, a não ser rendendo-se sem condições à oposição da burguesia. Alguma vez existiu posição mais esplêndida para a classe média de qualquer país na sua luta pelo poder contra o governo estabelecido?
Londres, Setembro de 1851.
IV —Áustria >>>
Início da página
Notas de Rodapé:
(11*) Em latim no texto: membros dispersos. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(12*) Em francês no texto: pretensamente. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
Notas de Fim de Tomo:
[N179] Partido de Gotha: foi fundado em Junho de 1849 por representantes da grande burguesia contra-revolucionária e por liberais de direita; tinha como objectivo a unificação de toda a Alemanha, com excepção da Áustria, sob a chefia da Prússia dos Hohenzollern. (retornar ao texto)
[N180] Catolicismo Alemão: movimento religioso que surgiu em 1844 e que abarcou camadas importantes da pequena e média burguesia; estava voltado contra as manifestações extremas de misticismo e hipocrisia na Igreja católica. Rejeitando a primazia do papa de Roma e muitos dogmas e ritos da Igreja católica, os “católicos alemães” procuravam adaptar o catolicismo às necessidades da burguesia alemã.
Livre Congregacionalismo: congregação que se separou da Igreja protestante oficial em 1846. Esta oposição religiosa foi uma das formas pelas quais se manifestou o descontentamento da burguesia alemã nos anos 40 do século XIX pela ordem reaccionária na Alemanha. Em 1859 verificou-se a fusão do “Livre Congregacionalismo” com os “católicos alemães”. (retornar ao texto)
[N181] Unitários ou antitrinitários: representantes de uma corrente religiosa que surgiu no século XVI na Alemanha e reflectia a luta das massas populares e da parte radical da burguesia contra o regime e a Igreja feudais. O unitarismo penetrou na Inglaterra e na América no século XVII. No século XIX a doutrina do unitarismo colocava em primeiro plano os aspectos ético-morais da religião, actuando contra os seus aspectos exteriores, rituais. (retornar ao texto)
[N182] Até Agosto de 1806 a Alemanha fez parte do chamado Sacro Império Romano da nação alemã, fundado no século X, e que representava a união dos principados feudais e cidades livres que reconheciam o poder supremo do imperador. (retornar ao texto)
[N183] A palavra de ordem de uma república alemã una e indivisível foi lançada já em vésperas da revolução por Marx e Engels. (retornar ao texto)
IV —Áustria
Temos de considerar agora a Áustria, esse país que, até Março de 1848, aos olhos das nações estrangeiras, estava quase tão fechado como a China antes da última guerra com a Inglaterra[N184].
É evidente que não podemos ter aqui em consideração senão a Áustria alemã. Os assuntos dos austríacos polacos, húngaros ou italianos não pertencem ao nosso tema e, na medida em que, desde 1848, influenciaram o destino dos austríacos alemães terão, mais adiante, de ser tidos em conta.
O governo do príncipe Metternich girava sobre dois eixos: em primeiro lugar, manter cada uma das diferentes nações submetidas ao domínio austríaco sob a vigilância de todas as outras nações postas em condições semelhantes; em segundo lugar, e este foi sempre o princípio fundamental das monarquias absolutas, assentar os seus apoios em duas classes, os senhores feudais da terra e os grandes capitalistas da especulação bolsista, e equilibrar, ao mesmo tempo, a influência e o poder de cada uma destas classes com os da outra, de modo a deixar ao governo uma completa independência de acção. A nobreza fundiária, cujo rendimento provinha inteiramente de proventos feudais de toda a espécie, não podia senão apoiar um governo que constituía a sua única protecção contra essa classe espezinhada de servos de cujos despojos vivia; e sempre que a parte menos rica deles se levantava contra o governo — como na Galícia, em 1846 —, Metternich, num instante, largava contra eles esses mesmos servos que, de qualquer modo, tiravam proveito da ocasião de exercer uma terrível vingança sobre os seus opressores mais imediatos[N185]. Por outro lado, os grandes capitalistas da Bolsa estavam presos ao governo de Metternich pelo vasto quinhão de fundos públicos do país que possuíam. A Áustria, restaurada no seu pleno poder em 1815, tendo restaurado e mantido a monarquia absoluta em Itália desde 1820, liberta de parte das suas obrigações pela bancarrota de 1810, tinha, depois da paz, restabelecido muito cedo o seu crédito nos grandes mercados financeiros europeus e na proporção em que o seu crédito aumentou foi sacando [fundos]. Por conseguinte, todos os grandes prestamistas europeus tinham comprometido partes consideráveis do seu capital nos fundos austríacos; todos eles estavam interessados em manter o crédito desse país e como o crédito público austríaco, para ser mantido, exigia sempre novos empréstimos, eles eram obrigados, de tempos a tempos, a avançar novos capitais em ordem a manter o crédito das garantias daquilo que já tinham avançado. A longa paz após 1815 e a aparente impossibilidade de um velho império de mil anos, como a Áustria, ser derrubado aumentou o crédito do governo de Metternich numa proporção maravilhosa e tornou-o mesmo independente da boa vontade dos banqueiros e especuladores da Bolsa de Viena, pois enquanto Metternich pudesse obter muito dinheiro em Frankfurt e Amesterdão teria, é claro, a satisfação de ver os capitalistas austríacos a seus pés. Além disso, eles estavam, sob qualquer outro aspecto, à sua mercê; os grandes lucros que os banqueiros, os especuladores financeiros e os fornecedores do Estado sempre projectam sacar de uma monarquia absoluta eram compensados pelo poder quase ilimitado que o governo possuía sobre as suas pessoas e fortunas; portanto, não era de esperar deste quadrante a menor sombra de oposição. Metternich estava, por conseguinte, seguro do apoio das duas classes mais poderosas e influentes do Império, possuindo, além disso, um exército e uma burocracia que, para todos os objectivos do absolutismo, não poderiam ser mais bem constituídos. Os funcionários civis e militares ao serviço da Áustria formam uma raça à parte; os seus pais estiveram ao serviço do Kaiser e os seus filhos também estarão; não pertencem a nenhuma das múltiplas nacionalidades que se congregam sob a asa da águia de duas cabeças; são, e sempre foram, transferidos de uma ponta do Império para a outra, da Polónia para a Itália, da Alemanha para a Transilvânia; húngaro, polaco, alemão, romeno, italiano, croata, todo o indivíduo que não esteja revestido da autoridade “imperial e régia” e apresente um carácter nacional separado é igualmente desprezado por eles; não têm nacionalidade, ou melhor: só eles constituem realmente a nação austríaca. É evidente que uma hierarquia civil e militar como esta tem de ser um instrumento dócil e, ao mesmo tempo, poderoso nas mãos de um chefe inteligente e enérgico.
Quanto às outras classes da população, Metternich segundo o verdadeiro espírito do estadista do ancien regime(13*), preocupou–se pouco com o seu apoio. Em relação a elas tinha apenas uma política: sacar delas o mais possível sob a forma de impostos e, ao mesmo tempo, mantê-las quietas. A classe média negociante e manufactureira só lentamente crescia na Áustria. O comércio do Danúbio, comparativamente, era pouco importante; o país não possuía senão um porto, Trieste, e o comércio deste porto era muito limitado. Quanto aos manufactureiros, gozavam de considerável protecção que chegava, na maioria dos casos, à exclusão completa de toda a concorrência estrangeira; mas esta vantagem tinha-lhes sido concedida tendo principalmente em vista aumentar a sua capacidade de pagar impostos e era contrabalançada em alto grau por restrições internas às manufacturas, privilégios de guildas e outras corporações feudais, que eram escrupulosamente mantidos enquanto não impedissem os objectivos e perspectivas do governo. Os pequenos negociantes estavam encaixados nos limites estreitos destas guildas medievais que mantinham os diferentes mesteres numa perpétua guerra de privilégios entre si e, ao mesmo tempo, davam uma espécie de estabilidade hereditária aos membros destas associações involuntárias pela quase exclusão de indivíduos da classe operária da possibilidade de se elevarem eles próprios na escala social. Finalmente, o camponês e o operário eram tratados como mera matéria de impostos e o único cuidado que se tinha por eles era o de os manter, tanto quanto possível, nas mesmas condições de vida em que então existiam e em que os seus pais tinham existido antes deles. Com este objectivo, era mantida toda a velha autoridade hereditária estabelecida do mesmo modo que a do Estado; a autoridade do senhor da terra sobre o pequeno rendeiro, a do manufactureiro sobre o operário, a do pequeno mestre sobre o oficial e o aprendiz, a do pai sobre o filho, era mantida pelo governo rigidamente por toda a parte, e qualquer forma de desobediência era punida, como se fosse uma transgressão da lei, por aquele instrumento universal da justiça austríaca — o bastão.
Finalmente, para fechar num sistema compreensivo todas estas tentativas de criar uma estabilidade artificial, o alimento intelectual permitido à nação era seleccionado com a mais minuciosa precaução e distribuído tão parcimoniosamente quanto possível. Por toda a parte a educação estava nas mãos do clero católico, cujos chefes, do mesmo modo que os grandes proprietários feudais de terras, estavam profundamente interessados na conservação do sistema existente. Ás universidades estavam organizadas de uma maneira que só lhes permitia produzir especialistas que podiam possuir ou não uma grande proficiência em diversos ramos particulares do conhecimento, mas que, em qualquer caso, excluía aquela universal educação liberal que é suposto as outras universidades concederem. Não havia absolutamente qualquer imprensa periódica, excepto na Hungria, e os jornais húngaros estavam proibidos em qualquer outra parte do reino. Quanto à literatura geral, as suas fileiras não se tinham ampliado durante um século; tinham-se estreitado de novo após a morte de José II. E, ao longo da fronteira em que os Estados austríacos confinavam com um país civilizado, foi estabelecido um cordon(14*) de censores literários em ligação com o cordon de funcionários das alfândegas, impedindo que qualquer livro ou jornal estrangeiro entrassem na Áustria antes de que o seu conteúdo tivesse sido inteiramente passado pelo crivo duas ou três vezes, e declarado puro mesmo da menor contaminação do maligno espírito da época.
Durante cerca de trinta anos, a partir de 1815, este sistema funcionou com um sucesso espantoso. A Áustria permaneceu quase desconhecida para a Europa e tão-pouco a Europa era conhecida na Áustria. O estado social de cada classe da população e da população como um todo parecia não ter sofrido a menor mudança. Qualquer que fosse o rancor que pudesse existir entre uma classe e outra — e a existência deste rancor era, para Metternich, a principal condição de governo, [rancor] que ele até alimentava, tornando as classes superiores instrumento de todas as exacções do governo e lançando, deste modo, o odioso sobre elas —, qualquer que fosse o ódio que o povo pudesse nutrir pelos funcionários inferiores do Estado, existia, no conjunto, pouco ou nenhum descontentamento com o governo central. O Imperador era adorado e o velho Francisco Primeiro parecia ser corroborado pelos factos quando, duvidando da durabilidade deste sistema, acrescentava complacentemente: “e, contudo, ele durará enquanto eu viver e Metternich”.
Mas havia um lento movimento subterrâneo em curso que frustrava todos os esforços de Metternich. A riqueza e influência da classe média manufactureira e comerciante aumentavam. A introdução de maquinaria e do vapor nas manufacturas transtornou — na Áustria, do mesmo modo que por toda a parte tinha feito — as velhas relações e condições de vida de classes inteiras da sociedade; transformou servos em homens livres, pequenos agricultores em operários de manufacturas; minou as velhas corporações de ofícios feudais e destruiu os meios de existência de muitas delas. A nova população comercial e manufactureira entrou por toda a parte em colisão com as velhas instituições feudais. As classes médias, cada vez mais obrigadas a viajar para o estrangeiro por causa dos seus negócios, introduziram algum conhecimento mítico dos países civilizados que se situavam para além das linhas aduaneiras imperiais; a introdução do caminho-de-ferro acelerou, finalmente, tanto o movimento industrial como o intelectual. Havia também um elemento perigoso no aparelho de Estado austríaco, a saber: a Constituição feudal húngara, com os seus debates parlamentares e as suas lutas da massa empobrecida e oposicionista da nobreza contra o governo e os seus aliados, os magnatas. Pressburg(15*), sede da Dieta, estava mesmo às portas de Viena. Todos estes elementos contribuíam para criar entre as classes médias das cidades um espírito, não propriamente de oposição, porque a oposição ainda era impossível, mas de descontentamento, um desejo generalizado de reformas, mais de natureza administrativa do que constitucional. E, do mesmo modo que na Prússia, uma parte da burocracia juntava-se à burguesia. Entre esta casta hereditária de funcionários, as tradições de José II não estavam esquecidas: os funcionários do governo mais cultos — que, por vezes, se tinham eles próprios interessado por imaginárias possíveis reformas — preferiam, de longe, o despotismo progressista e intelectual daquele Imperador ao despotismo “paternalista” de Metternich. Uma parte da nobreza mais pobre alinhava igualmente com a classe média e, no que toca às classes mais baixas da população, que sempre tinham encontrado montes de razões para se queixar dos seus superiores, se não mesmo do governo, na maioria dos casos, não podiam senão aderir aos desejos reformadores da burguesia. Foi mais ou menos por esta altura, em 1843 ou 1844, que se estabeleceu na Alemanha aquele particular ramo da literatura que correspondia a esta mudança. Alguns escritores austríacos, romancistas, críticos literários, maus poetas, todos de talento bastante medíocre, mas dotados daquela peculiar industriosidade própria da raça judaica, estabeleceram-se em Leipzig e outras cidades alemãs fora da Áustria, e aí, fora do alcance de Metternich, publicaram um certo número de livros e panfletos sobre os assuntos austríacos. Eles e os seus editores fizeram disso um “grande negócio”. Toda a Alemanha estava desejosa de ser iniciada nos segredos da política da China europeia e os próprios austríacos, que obtinham essas publicações pelo contrabando por atacado que se processava pela fronteira da Boémia, tinham ainda maior curiosidade. É claro que os segredos revelados nessas publicações não eram de grande importância e os planos de reforma esquematizados pelos seus bem-intencionados autores tocavam as raias de uma inocuosidade que quase chegava a virgindade política. Uma constituição e uma imprensa livre para a Áustria eram coisas consideradas inalcançáveis; reformas administrativas, extensão dos direitos das dietas provinciais, admissão de livros e jornais estrangeiros e uma censura menos severa — os leais e humildes desejos destes bons austríacos pouco mais além iam do que isto.
Em todo o caso, a impossibilidade crescente de impedir o intercâmbio literário da Áustria com o resto da Alemanha e através da Alemanha com o mundo contribuiu em muito para a formação de uma opinião pública antigovernamental e pôs, finalmente, alguma pouca informação política ao alcance de uma parte da população austríaca. Por conseguinte, pelos finais de 1847, a Áustria foi apanhada, ainda que num grau inferior, por aquela agitação política e político-religiosa que então prevalecia em toda a Alemanha; e se o seu progresso na Áustria foi mais silencioso, não deixou, todavia, de encontrar elementos revolucionários suficientes sobre que trabalhar. Havia o camponês, servo ou rendeiro feudal, deitado por terra pelas exacções do senhor ou do governo; em seguida, o operário fabril, forçado pelo bastão do polícia a trabalhar sob quaisquer condições que o manufactureiro resolvesse conceder; depois, o jornaleiro, privado pelas leis corporativas de qualquer hipótese de alcançar uma independência no seu negócio; em seguida, o mercador, que a cada passo do negócio tropeçava com regulamentos absurdos; depois, o manufactureiro, em conflito ininterrupto com as guildas de ofícios ciosas dos seus privilégios ou com funcionários ávidos e intrometidos; em seguida, o mestre-escola, o savant(16*), o funcionário mais culto, lutando em vão contra um clero ignorante e presunçoso ou contra um superior estúpido e mandão. Em suma, não havia uma única classe satisfeita, porque as pequenas concessões que o governo era obrigado a fazer, uma vez por outra, eram feitas, não à sua custa, porque o Tesouro não podia suportar isso, mas à custa da alta aristocracia e do clero; e, no que toca aos grandes banqueiros e detentores de fundos, os últimos acontecimentos na Itália, a oposição crescente da Dieta húngara e os invulgares espírito de descontentamento e exigência de reformas que se manifestavam por todo o Império, não eram de natureza a fortalecer a sua confiança na solidez e solvência do Império austríaco.
Por conseguinte, também a Áustria estava caminhando, lenta mas seguramente, para uma poderosa mudança, quando, subitamente, se deu em França um acontecimento que imediatamente desencadeou a tempestade iminente e veio desmentir a asserção do velho Francisco, segundo a qual o edifício se havia de aguentar durante a sua vida e a de Metternich.
Londres, Setembro 1851.
V — A insurreição de Viena >>>
Início da página
Notas de Rodapé:
(13*) Em francês no texto: antigo regime. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(14*) Em francês no texto: cordão. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(15*) Nome eslovaco: Bratislava. (retornar ao texto)
(16*) Em francês no texto: sábio, cientista. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
[N184] Trata-se da chamada primeira guerra do ópio (1839-1842), guerra de rapina da Inglaterra contra a China, e que deu início à transformação da China numa semicolónia. (retornar ao texto)
Notas de Fim de Tomo:
N185] Em Fevereiro-Março de 1846, simultaneamente com uma insurreição de libertação nacional em Cracóvia, rebentou uma grande insurreição camponesa na Galícia, que as autoridades austríacas utilizaram para esmagar o movimento insurreccional da pequena nobreza. Depois de ter sufocado a insurreição em Cracóvia, o governo austríaco esmagou também a insurreição camponesa na Galícia. (retornar ao texto)
V — A insurreição de Viena
A 24 de Fevereiro de 1848, Louis Philippe foi expulso de Paris e proclamada a República Francesa. A 13 de Março seguinte, o povo de Viena derrubou o poder do príncipe Metternich e fê-lo fugir vergonhosamente do país. A 18 de Março, o povo de Berlim pegou em armas e, após uma luta obstinada de oito horas, teve a satisfação de ver o próprio rei render-se às suas mãos. Levantamentos simultâneos, de natureza mais ou menos violenta, mas todos com o mesmo sucesso, ocorreram nas capitais dos pequenos Estados da Alemanha. Se o povo alemão não realizou a sua primeira revolução, lançou-se, pelo menos, razoavelmente na via revolucionária.
Quanto aos incidentes destas várias insurreições, não podemos entrar aqui em pormenores: o que temos de explicar é o seu carácter e a posição que as diferentes classes da população tomaram em relação a eles.
Pode dizer-se que a revolução de Viena foi feita por uma população quase unânime. A burguesia, à excepção dos banqueiros e especuladores da Bolsa, a classe dos pequenos negociantes, os operários, todos eles, se levantaram de pronto contra um governo detestado por todos, um governo tão universalmente odiado que a pequena minoria de nobres e de senhores do dinheiro que o tinha apoiado se tornou invisível logo ao primeiro ataque. As classes médias tinham sido mantidas num tal grau de ignorância política por Metternich que, para elas, as notícias de Paris acerca do reino da Anarquia, do Socialismo e do Terror e acerca das lutas iminentes entre a classe dos capitalistas e a classe dos trabalhadores pareciam perfeitamente ininteligíveis. Na sua inocência política, ou não podiam dar significado a essas notícias ou acreditavam que elas eram diabólicas invenções de Metternich para os levar à obediência pelo medo. Além disso, eles nunca tinham visto operários agir como uma classe ou levantar-se em defesa dos seus próprios e distintos interesses de classe. A partir da sua experiência anterior, não tinham qualquer ideia da possibilidade de surgirem quaisquer diferenças entre classes que agora estavam tão cordialmente unidas em derrubar um governo odiado por todos. Viam os operários concordar com eles em todos os pontos: uma constituição, julgamentos com jurados, liberdade de imprensa, etc. Por conseguinte, pelo menos em Março de 1848, eles estavam de alma e coração com o movimento e o movimento, por outro lado, logo os constituiu (pelo menos, em teoria) em classe predominante do Estado. Mas é destino de todas as revoluções que esta união de diferentes classes, que em algum grau é sempre a condição necessária de qualquer revolução, não pode subsistir durante muito tempo. Logo que se obtém a vitória contra o inimigo comum, os vencedores ficam divididos em campos diferentes e viram as suas armas uns contra os outros. É este rápido e apaixonado desenvolvimento deste antagonismo de classes que, em organismos sociais velhos e complicados, transforma uma revolução num tão poderoso agente de progresso social e político; é esta erupção incessantemente rápida de novos partidos que se sucedem uns aos outros no poder que, durante estas comoções violentas, faz a uma nação percorrer em cinco anos mais caminho do que o que teria sido percorrido num século em condições normais.
A revolução em Viena fez da classe média a classe teoricamente predominante; isto é, as concessões arrancadas ao governo foram tais que, uma vez seguidas na prática e mantidas durante algum tempo, teriam inevitavelmente assegurado a supremacia da classe média. Mas, praticamente, a supremacia desta classe estava longe de ter sido estabelecida. É certo que, com o estabelecimento da Guarda Nacional, que deu armas à burguesia e aos pequenos negociantes, esta classe tanto obteve força como importância; é verdade que com a instalação de um “Comité de Segurança”, uma espécie de governo revolucionário irresponsável, em que a burguesia predominava, ela estava colocada no topo do poder. Mas, ao mesmo tempo, as classes trabalhadoras também foram parcialmente armadas; elas e os estudantes tinham suportado o ímpeto da luta, na medida em que tinha havido luta; e os estudantes, em número de cerca de 4000, bem armados e de longe mais disciplinados do que a Guarda Nacional, formavam o núcleo, a verdadeira força do exército revolucionário, e de modo algum estavam dispostos a agir como um mero instrumento nas mãos do Comité de Segurança. Se bem que eles o reconhecessem e fossem mesmo os seus mais entusiásticos apoiantes, formavam, contudo, uma espécie de corpo independente e bastante turbulento, que deliberava por si próprio na “Aula”, mantinha uma posição intermédia entre a burguesia e as classes trabalhadoras, impedia por meio de uma agitação constante que as coisas voltassem à velha tranquilidade de todos os dias e, muitas vezes, impunham as suas resoluções ao Comité de Segurança. Os operários, por outro lado, quase inteiramente lançados no desemprego, tinham de ser empregues nas obras públicas a expensas do Estado e o dinheiro para este fim tinha, evidentemente, de ser tirado da bolsa dos contribuintes ou dos cofres da cidade de Viena. Tudo isto não podia senão tornar-se muito desagradável para os homens de negócios de Viena. As manufacturas da cidade, projectadas para o consumo das cortes ricas e aristocráticas de um grande país, estavam, como é óbvio, inteiramente paradas pela revolução e pela fuga da aristocracia e da corte; o comércio estava paralisado e a agitação e excitação contínuas mantidas pelos estudantes e pelos operários não eram certamente o meio de “restaurar a confiança”, segundo a frase consagrada. Por conseguinte, muito cedo surgiu uma certa frieza entre as classes médias, por um lado, e os turbulentos estudantes e operários, por outro; e se, durante bastante tempo, esta frieza não passou a hostilidade aberta foi porque o Ministério e, em particular, a Corte, na sua impaciência de restaurar a velha ordem das coisas, constantemente justificavam as suspeições e a turbulenta actividade dos partidos mais revolucionários e constantemente faziam surgir, mesmo diante dos olhos das classes médias, o espectro do velho despotismo de Metternich. Deste modo, a 15 de Maio e, de novo, a 26, houve novos levantamentos de todas as classes em Viena, em virtude de o governo ter tentado atacar ou minar algumas das liberdades recentemente conquistadas e, em cada ocasião, a aliança entre a Guarda Nacional ou a classe média armada, e os estudantes e os operários cimentou-se de novo, por algum tempo.
No que toca às outras classes da população, a aristocracia e os senhores do dinheiro tinham desaparecido e o campesinato estava operosamente empenhado, por toda a parte, em remover o feudalismo até aos últimos vestígios. Graças à guerra em Itália[N186] e às preocupações que Viena e a Hungria davam à Corte, foi deixado em completa liberdade e teve mais sucesso no seu trabalho de libertação na Áustria do que em qualquer outra parte da Alemanha. Muito pouco tempo depois, a Dieta austríaca teve apenas de confirmar os passos já dados na prática pelo campesinato e o que quer que o governo do príncipe Schwarzenberg ainda possa conseguir restaurar nunca terá o poder de restabelecer a servidão feudal do campesinato. E se a Áustria, no momento presente, está de novo relativamente tranquila e mesmo forte é principalmente porque a grande maioria do povo, os camponeses, foram os que realmente ganharam com a revolução e porque, quaisquer que tenham sido as coisas que o governo restaurado atacou, estas vantagens palpáveis, substanciais, conquistadas pelo campesinato permanecem até agora intocadas.
Londres, Outubro de 1851.
VI — A insurreição de Berlim >>>
Início da página
Notas de Fim de Tomo
[N186] Trata-se da guerra de libertação nacional do povo italiano contra o domínio austríaco em 1848-1849. O comportamento traiçoeiro das classes dominantes italianas, que receavam a unificação da Itália pela via revolucionária, conduziu à derrota na luta contra a Áustria. (retornar ao texto)
VI — A insurreição de Berlim
O segundo centro da acção revolucionária foi Berlim. E, pelo que foi dito nos artigos anteriores, pode adivinhar-se que essa acção esteve longe de ter o mesmo apoio unânime de quase todas as classes de que foi acompanhada em Viena. Na Prússia, a burguesia tinha-se envolvido já em lutas efectivas com o governo; o resultado da “Dieta Unida” tinha sido uma ruptura; estava iminente uma revolução burguesa e essa revolução poderia ter sido, na sua primeira eclosão, quase tão unânime como a de Viena, não fora a revolução de Fevereiro em Paris. Este acontecimento precipitou tudo, embora, ao mesmo tempo, tenha sido levado a cabo sob uma bandeira totalmente diferente daquela sob a qual a burguesia prussiana se preparava para desafiar o seu governo. A revolução de Fevereiro derrubou, em França, precisamente, o mesmo tipo de governo que a burguesia prussiana estava para estabelecer no seu próprio país. A revolução de Fevereiro anunciava-se a si própria como uma revolução das classes trabalhadoras contra as classes médias; proclamava a queda do governo da classe média e a emancipação do operário. Ora, a burguesia prussiana tinha tido, nos últimos tempos, bastante agitação da classe operária no seu próprio país. Depois do primeiro terror dos motins da Silésia ter desaparecido, chegou mesmo a tentar dar a essa agitação um aspecto que lhe fosse favorável; mas sempre tinha conservado um horror salutar pelo socialismo e pelo comunismo revolucionários; e, deste modo, quando viu à cabeça do governo em Paris homens que ela considerava como os mais perigosos inimigos da propriedade, da ordem, da religião, da família e dos outros penates do burguês moderno, prontamente sentiu um considerável arrefecimento do seu próprio ardor revolucionário. Sabia que o momento tinha de ser aproveitado e que sem a ajuda das massas trabalhadoras seria derrotada; e, contudo, faltou-lhe a coragem. Deste modo, pôs-se ao lado do governo nos primeiros levantamentos parciais e provinciais, tentou manter calmo o povo de Berlim, que durante cinco dias se concentrou em multidões diante do palácio real para discutir as notícias e reclamar mudanças no governo; e quando, por fim, depois das notícias da queda de Metternich, o rei(17*) fez algumas ligeiras concessões, a burguesia considerou a revolução como completada e foi agradecer a Sua Majestade por ter satisfeito todos os desejos do seu povo. Mas seguiu-se, então, o ataque dos militares à multidão, as barricadas, a luta e a derrota da realeza. Então, tudo mudou; as mesmas classes trabalhadoras que a burguesia tinha tido a tendência de manter na retaguarda, tinham sido empurradas para a frente, tinham lutado e ganho e, de repente, ficaram conscientes da sua força. Restrições ao sufrágio, à liberdade de imprensa, ao direito de ser jurado, ao direito de reunião — restrições que teriam sido muito agradáveis à burguesia, porque não teriam tocado senão nas classes que estavam abaixo dela — não mais eram agora possíveis. O perigo de uma repetição das cenas de “anarquia” parisiense era iminente. Perante este perigo, todas as anteriores diferenças desapareceram. Contra o operário vitorioso, se bem que ele ainda não tivesse dado a conhecer qualquer reivindicação específica para si próprio, os amigos e os adversários de muitos anos uniram-se e a aliança entre a burguesia e os partidários do sistema derrubado concluiu-se sobre as próprias barricadas de Berlim. Tiveram de se fazer as necessárias concessões, mas não mais do que as inevitáveis; teve de se formar um ministério com os dirigentes da oposição da Dieta Unida e, em troca dos serviços prestados para salvar a Coroa, iria ter o apoio de todos os pilares do antigo governo, da aristocracia feudal, da burocracia, do exército. Foi sob estas condições que os senhores Camphausen e Hansemann empreenderam a formação de um gabinete.
Era tal o medo demonstrado pelos novos ministros perante as massas sublevadas que, aos seus olhos, qualquer meio era bom desde que apenas tendesse a fortalecer os abalados fundamentos da autoridade. Pensavam, pobres infelizes enganados, que todo o perigo de uma restauração do antigo sistema tinha desaparecido e, desse modo, fizeram uso de toda a velha máquina do Estado com o fim de restaurar a “ordem”. Nem um único burocrata ou oficial do exército foi expulso; não se fez a menor alteração no antigo sistema burocrático da administração. Estes preciosos ministros constitucionais e responsáveis até reintegraram nos seus lugares aqueles funcionários que o povo, no primeiro calor do ardor revolucionário, tinha expulso em virtude dos seus actos anteriores de autoritarismo burocrático. Nada se alterou, na Prússia, a não ser as pessoas dos ministros; não se tocou sequer nos quadros ministeriais nos diferentes departamentos e foi dito aos constitucionais caçadores de lugares, que tinham formado o coro dos governantes recentemente promovidos e que tinham esperado a sua parte de poder e emprego, que esperassem até que uma estabilidade restaurada permitisse que se operassem mudanças no pessoal burocrático que agora não estavam isentas de perigo.
O rei, completamente abatido depois da insurreição do 18 de Março, muito cedo descobriu que era quase tão necessário àqueles ministros “liberais” como estes lhe eram a ele. O trono havia sido poupado pela insurreição; o trono era o último obstáculo que existia contra a “anarquia”; a classe média liberal e os seus dirigentes, agora no ministério, tinham, por conseguinte, todo o interesse em manter excelentes relações com a Coroa. O rei e a camarilha reaccionária que o rodeava não levaram tempo a descobrir isto e aproveitaram tal circunstância para impedir a marcha do ministério mesmo no que toca àquelas pequenas reformas que, de tempos a tempos, eram pretendidas.
O primeiro cuidado do ministério foi dar uma espécie de aparência legal às recentes mudanças violentas. A Dieta Unida foi convocada, apesar de toda a oposição popular, a fim de votar, como órgão legal e constitucional do povo, uma nova lei eleitoral para a eleição de uma assembleia, que deveria pôr-se de acordo com a Coroa acerca de uma nova Constituição. As eleições deveriam ser indirectas, elegendo a massa dos votantes um [certo] número de eleitores que, então, deveriam escolher os representantes. Apesar de toda a oposição, este sistema de eleições duplas foi aprovado. Em seguida, foi pedido à Dieta Unida um empréstimo de vinte e cinco milhões de dólares, a que o partido popular se opôs, mas que igualmente foi concedido.
Estes actos do ministério deram um desenvolvimento extremamente rápido ao partido popular ou, como agora se chamava, democrático. Este partido, dirigido pela classe do pequeno comércio e dos lojistas e unindo sob o seu estandarte, no começo da revolução, a grande maioria dos operários, reclamou o sufrágio universal e directo, tal como o estabelecido em França, uma única Assembleia Legislativa e um aberto e completo reconhecimento da revolução do 18 de Março como base do novo sistema governamental. A facção mais moderada ficaria satisfeita com uma monarquia assim “democratizada”, a facção mais avançada reclamava o estabelecimento último da República. Ambas as facções concordavam em reconhecer a Assembleia Nacional Alemã de Frankfurt como a autoridade suprema do país, enquanto os constitucionalistas e reaccionários sentiam um grande horror pela soberania deste órgão, que eles declaravam considerar como inteiramente revolucionário.
O movimento independente das classes trabalhadoras, com a revolução, tinha sido temporariamente desarticulado. As carências imediatas e as circunstâncias do movimento eram tais que não permitiam que quaisquer reivindicações específicas do partido proletário fossem trazidas para primeiro plano. De facto, enquanto o terreno não estivesse limpo para uma acção independente dos operários, enquanto o sufrágio universal e directo não estivesse ainda estabelecido, enquanto os 36 grandes e pequenos Estados continuassem a cortar a Alemanha em inúmeras parcelas, que mais podia o partido proletário fazer senão observar o movimento de Paris — para ele importantíssimo — e lutar em conjunto com os pequenos lojistas para a obtenção daqueles direitos que lhe permitiriam travar depois a sua própria batalha?
Havia, então, apenas três pontos pelos quais o partido proletário, na sua acção política, se distinguia essencialmente do partido da classe do pequeno comércio ou propriamente chamado democrático: em primeiro lugar, pelo avaliar diferentemente o movimento francês, em relação ao qual os democratas atacavam o partido extremo de Paris, enquanto os revolucionários proletários o defendiam; em segundo lugar, por proclamarem a necessidade de estabelecer uma República Alemã, una e indivisível, enquanto os próprios ultras mais extremistas entre os democratas apenas ousavam suspirar por uma República Federativa; e, em terceiro lugar, por darem mostras, em cada ocasião, daquela coragem revolucionária e prontidão para a acção em que qualquer partido dirigido e composto, principalmente, por pequenos negociantes sempre será deficiente.
O partido proletário ou realmente revolucionário só muito gradualmente conseguiu desviar a massa dos operários da influência dos democratas, cuja cauda, no começo da revolução, eles formavam. Mas, no devido tempo, a indecisão, fraqueza e cobardia dos dirigentes democráticos fez o resto e pode agora dizer-se que um dos principais resultados das convulsões dos últimos anos foi que, onde quer que a classe operária esteja concentrada em algo de semelhante a massas consideráveis, está inteiramente liberta daquela influência democrática que, durante 1848 e 1849, a conduziu a uma série sem fim de erros e de infortúnios. Mas é melhor não anteciparmos; os acontecimentos destes dois anos dão-nos amplas oportunidades de mostrar os senhores democratas em acção.
Tal como na Áustria, mas com menos energia, uma vez que o feudalismo não pressionava o conjunto de um modo tão forte como lá, [também] na Prússia o campesinato aproveitou a revolução para se libertar de pronto de todos os vínculos feudais. Mas aqui, pelas razões atrás expressas, logo as classes médias se voltaram contra ele, seu mais antigo e mais indispensável aliado; os democratas, igualmente assustados como os burgueses com aquilo a que se chamava ataques à propriedade privada, igualmente foram incapazes de os apoiar; e, assim, após três meses de emancipação, após lutas sangrentas e execuções militares, particularmente na Silésia, o feudalismo foi restaurado pelas mãos da burguesia ainda ontem antifeudal. Não há facto mais condenável que este que possa ser aduzido contra ela. Semelhante traição contra os seus melhores aliados, contra si própria, nunca foi cometida por qualquer partido na história e, quaisquer que sejam a humilhação e o castigo que possam estar reservados para este partido da classe média, com este único acto, tê-los-á merecido integralmente.
Londres, Outubro de 1851.
VII — A Assembleia Nacional de Frankfurt >>>
Início da página
Notas de Rodapé:
(17*) Frederico Guilherme IV. (retornar ao texto)
VII — A Assembleia Nacional de Frankfurt
Estará talvez na reminiscência dos nossos leitores que nos seis artigos precedentes seguimos o movimento revolucionário da Alemanha até às duas grandes vitórias populares de 13 de Março, em Viena, e de 18 de Março, em Berlim. Tanto na Áustria como na Prússia, vimos o estabelecimento de governos constitucionais e a proclamação de princípios liberais ou da classe média como regras directrizes de toda a política futura; e a única diferença observável entre os dois grandes centros de acção foi a de que, na Prússia, a burguesia liberal, na pessoa de dois ricos comerciantes, os senhores Camphausen e Hansemann, tomaram directamente as rédeas do poder, enquanto, na Áustria, onde a burguesia era politicamente muito menos culta, a burocracia liberal entrou em funções e declarou exercer o poder em nome dela. Vimos, além disso, como os partidos e classes da sociedade, que até aí estavam todos unidos na sua oposição ao antigo governo, se dividiram entre si depois da vitória ou mesmo durante a luta: e como essa mesma burguesia liberal, a quem apenas a vitória aproveitou, imediatamente se voltou contra os seus aliados de ontem, assumiu uma atitude hostil contra toda a classe ou partido de carácter mais avançado e concluiu uma aliança com os interesses feudais e burocráticos vencidos. Era, de facto, evidente, mesmo desde o começo do drama revolucionário, que a burguesia liberal não podia manter o seu terreno contra os partidos feudais e burocráticos derrotados, mas não destruídos, a não ser apoiando-se na ajuda dos partidos populares e mais avançados, e que ela igualmente precisava, contra a corrente dessas massas mais avançadas, da ajuda da nobreza feudal e da burocracia. Por conseguinte, era suficientemente claro que a burguesia, na Áustria e na Prússia não possuía força suficiente para manter o seu poder e para adaptar as instituições do país às suas próprias necessidades e ideias. O ministério burguês liberal era apenas uma etapa transitória, a partir da qual, de acordo com o aspecto que as circunstâncias pudessem tomar, o país ou havia de passar para o estádio mais avançado do republicanismo unitário ou havia de cair no antigo regime(18*) clerical-feudal e burocrático. Em qualquer caso, a luta real, decisiva, estava ainda para vir; os acontecimentos de Março não tinham senão iniciado o combate.
Sendo a Áustria e a Prússia os dois Estados dominantes da Alemanha, toda a vitória revolucionária decisiva em Viena ou em Berlim teria sido decisiva para toda a Alemanha. E, até onde chegaram, os acontecimentos de Março de 1848 nestas duas cidades decidiram o curso dos assuntos alemães. Seria, portanto, supérfluo recorrer aos movimentos que ocorreram nos Estados mais pequenos; e poderíamos, na verdade, confinar-nos exclusivamente à consideração dos assuntos austríacos e prussianos, se a existência destes Estados mais pequenos não tivesse dado origem a um órgão que, pela sua própria existência, era a prova mais flagrante da situação anormal da Alemanha e do carácter incompleto da recente revolução; um órgão tão anormal, tão caricato na sua própria posição e, todavia, tão convencido da sua própria importância que a história, muito provavelmente, nunca lhe fornecerá um par. Este órgão era a chamada Assembleia Nacional Alemã em Frankfurt am Main.
Após as vitórias populares de Viena e de Berlim, era evidente que teria de haver uma Assembleia Representativa para toda a Alemanha. Consequentemente, este órgão foi eleito e reuniu-se em Frankfurt, ao lado da velha Dieta Federal. O povo esperava que a Assembleia Nacional Alemã resolvesse toda a matéria em disputa e agisse como a autoridade legislativa suprema para toda a Confederação Germânica. Mas, ao mesmo tempo, a Dieta que a tinha convocado de modo algum tinha fixado as suas atribuições. Ninguém sabia se os seus decretos iriam ter força de lei ou se iriam estar sujeitos à sanção da Dieta ou dos diferentes governos. Nesta perplexidade, se a Assembleia estivesse possuída de um mínimo de energia, teria imediatamente dissolvido e mandado embora a Dieta — mais impopular do que a qual não havia qualquer órgão corporativo na Alemanha — e tê-la-ia substituído por um Governo Federal escolhido de entre os seus próprios membros. Ter-se-ia declarado a única expressão legal da vontade soberana do povo alemão e, deste modo, atribuído uma validade legal a qualquer um dos seus decretos. Acima de tudo, teria assegurado para si própria uma força organizada e armada no país, suficiente para abater qualquer oposição da parte dos governos. E tudo isto era fácil, muito fácil, naquele primeiro período da revolução. Mas isso teria sido esperar demasiado de uma Assembleia composta na sua maioria por advogados liberais e por professores doctrinaires(19*), uma Assembleia que, enquanto pretendia encarnar a própria essência do intelecto e da ciência alemães, não era, na realidade, senão um palco onde velhas e antiquadas personagens políticas exibiam, perante os olhos de toda a Alemanha, o seu involuntário ridículo e a sua impotência, tanto de pensamento como de acção. Esta Assembleia de velhas, desde o primeiro dia da sua existência, tinha mais medo do menor movimento popular do que todas as conspirações reaccionárias de todos os governos alemães juntos. Deliberava sob o olhar da Dieta, não, quase suplicava a sanção da Dieta para os seus decretos, uma vez que as suas primeiras resoluções tinham de ser promulgadas por aquele órgão odioso. Em vez de afirmar a sua própria soberania, estudadamente evitava a discussão de qualquer uma dessas questões perigosas. Em vez de se rodear de uma força popular, passou à ordem do dia por sobre todas as usurpações violentas dos governos; diante dos seus próprios olhos, Mainz foi colocada em estado de sítio e o povo foi desarmado e a Assembleia Nacional não se mexeu. Mais tarde, elegeu o arquiduque João da Áustria regente da Alemanha e declarou que todas as suas resoluções deviam ter força de lei; mas, depois o arquiduque João só foi investido na sua nova dignidade após ter sido obtido o consentimento de todos os governos, e ele foi investido, não pela Assembleia, mas pela Dieta; e quanto à força legal dos decretos da Assembleia, este ponto nunca foi reconhecido pelos governos maiores, nem feito valer pela própria Assembleia; permaneceu, por conseguinte, em suspenso. Tivemos depois o estranho espectáculo de uma Assembleia que pretendia ser o único representante legal de uma nação grande e soberana e, contudo, não possuía nem a vontade nem a força para fazer reconhecer as suas pretensões. Os debates deste órgão sem quaisquer resultados práticos, nem sequer tinham qualquer valor teórico, limitando-se a reproduzir, como reproduziam, os temas vulgares mais batidos de escolas filosóficas e jurídicas mais do que antiquadas, tendo cada frase que era dita — ou melhor, balbuciada — naquela Assembleia sido, já há muito, mil vezes impressa e mil vezes melhor.
Por conseguinte, a pretensa nova autoridade central da Alemanha deixou todas as coisas tal como as encontrou. Deste modo, longe de realizar a unidade da Alemanha há muito reclamada, não desalojou o mais insignificante dos príncipes que a dominavam; não estreitou os laços de união entre as suas províncias separadas; nunca deu um único passo para derrubar as barreiras alfandegárias que separavam Hannover da Prússia e a Prússia da Áustria; não fez sequer a menor tentativa para remover as portagens obnóxias que por toda a parte obstruíam a navegação fluvial na Prússia. Criou uma Frota Alemã — no papel; anexou a Polónia e o Schleswig; autorizou a Áustria alemã a empreender uma guerra contra a Itália e, todavia, proibiu os Italianos de perseguir os Austríacos até ao seu refúgio seguro na Alemanha; deu três vivas e mais um à República Francesa e recebeu embaixadas húngaras que certamente voltaram para casa com ideias muito mais confusas acerca da Alemanha do que aquelas com que tinham chegado.
No começo da revolução, esta Assembleia tinha sido o lobisomem de todos os governos alemães. Tinham contado com uma acção muito ditatorial e revolucionária da sua parte — por conta daquela mesma falta de definição em que se tinha achado necessário deixar a sua competência. Estes governos estabeleceram, portanto, o mais amplo sistema de intrigas com o fim de enfraquecer a influência deste órgão temido; mas provaram ter mais sorte do que agudeza de espírito, porque esta Assembleia fez o trabalho dos governos melhor do que eles próprios poderiam ter feito. O traço principal destas intrigas foi a convocação de assembleias legislativas locais e, em consequência, não apenas os pequenos Estados convocaram as suas legislaturas como também a Prússia e a Áustria reuniram Assembleias Constituintes. Nestas, tal como na Câmara de Representantes de Frankfurt, a classe média liberal ou os seus aliados, advogados liberais e burocratas, tinham a maioria e o curso que os assuntos tomaram em cada uma delas foi quase o mesmo. À única diferença foi que a Assembleia Nacional Alemã era o parlamento de um país imaginário, uma vez que tinha declinado a tarefa de formar aquilo que tinha sido a sua condição primeira de existência, a saber: uma Alemanha unida; que ela discutia as medidas imaginárias, e que nunca viriam a ser realizadas, de um governo imaginário de sua própria criação e que aprovava resoluções imaginárias com que ninguém se preocupava; enquanto, na Áustria e na Prússia, os órgãos constituintes eram, pelo menos, parlamentos reais, derrubando e criando ministérios reais e impondo, pelo menos, por algum tempo, as suas resoluções a príncipes que tinham de combater. Também eles eram cobardes e careciam de perspectivas largas de resolução revolucionária; também eles traíam o povo e repunham o poder nas mãos do despotismo feudal, burocrático e militar. Mas, então, eles eram, pelo menos, obrigados a discutir questões práticas de interesse imediato e a viver na terra com outras pessoas, enquanto os aldrabões de Frankfurt nunca ficavam mais felizes do que quando podiam vaguear pelas “aéreas paragens do sonho”, im Luftreich des Traums(20*). Por conseguinte, as sessões das Constituintes de Berlim e de Viena formam uma parte importante da história revolucionária alemã, enquanto as elucubrações da tolice colectiva de Frankfurt apenas têm interesse para o coleccionador de curiosidades literárias e de antiquário.
O povo da Alemanha, sentindo profundamente a necessidade de acabar com a obnóxia divisão territorial que dispersava e aniquilava a força colectiva da nação, esperou, durante algum tempo, encontrar na Assembleia Nacional de Frankfurt, pelo menos, o começo de uma nova era. Mas a conduta infantil daquele conjunto de sentenciosos cedo desencantou o entusiasmo nacional. Os vergonhosos debates ocasionados pelo armistício de Malmoe (Setembro de 1848)[N187] fizeram eclodir a indignação popular contra um órgão que, esperava-se, daria à nação um campo livre para a acção e que, em vez disso, levado por uma cobardia inigualada, apenas restaurou na sua anterior solidez os alicerces sobre que se ergue o presente sistema contra-revolucionário.
Londres, Janeiro de 1852.
VIII — Polacos, Checos e Alemães >>>
Início da página
Notas de Rodapé:
(18*) Em francês no texto: regime. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(19*) Em francês no texto: doutrinários. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(20*) Em alemão no texto. Citação de Heine, Deutschland, ein Wintermárchen (Alemanha. Um conto de Inverno), capítulo VII. (retornar ao texto)
Notas de Fim de Tomo:
[N187] Em 26 de Agosto de 1848, em Malmoe, foi concluída uma trégua entre a Dinamarca e a Prússia que, sob a pressão das massas populares, foi obrigada a participar na guerra ao lado dos insurrectos de Schleswig e Holstein, que lutavam pela união com a Alemanha contra o domínio dinamarquês. Travando uma guerra aparente contra a Dinamarca, a Prússia concluiu com ela um armistício vergonhoso por sete meses, que em Setembro foi ratificado pela Assembleia Nacional de Frankfurt. A guerra recomeçou em Março de 1849. No entanto, em Julho de 1850 a Prússia concluiu um tratado de paz com a Dinamarca que permitiu a esta última derrotar os sublevados. (retornar ao texto)
VIII — Polacos, Checos e Alemães
A partir daquilo que se afirmou nos artigos precedentes, é já evidente que, a menos que uma nova revolução se seguisse à de Março de 1848, na Alemanha, as coisas voltariam inevitavelmente ao que eram antes daquele acontecimento. Mas a natureza complicada do tema histórico sobre que estamos a tentar lançar alguma luz é tal que os acontecimentos subsequentes não podem ser claramente entendidos sem se ter em conta aquilo a que se pode chamar as relações exteriores da revolução alemã. E estas relações exteriores eram da mesma natureza intrincada dos assuntos internos.
Toda a metade oriental da Alemanha, até ao Elba, Saale e Floresta da Boémia, tem sido reconquistada, como é bem sabido, durante os últimos mil anos, a invasores de origem eslava. A maior parte desses territórios foi germanizada até à perfeita extinção de toda a nacionalidade e língua eslavas, há vários séculos; e se exceptuarmos alguns remanescentes totalmente isolados, que no conjunto contam menos de cem mil almas (Cachubos na Pomerânia, Vendes ou Sorábios na Lusácia), os seus habitantes são, para todos os fins e efeitos, alemães. Mas o caso é diferente ao longo de toda a fronteira da antiga Polónia e nos países de língua checa, na Boémia e na Morávia. Aqui as duas nacionalidades encontram-se misturadas em cada distrito, sendo as cidades geralmente mais ou menos alemãs, enquanto o elemento eslavo prevalece nas aldeias rurais, onde, contudo, também se desintegra gradualmente e é forçado a recuar ante o avanço constante da influência alemã.
A razão deste estado de coisas é esta: desde o tempo de Carlos Magno os alemães têm dirigido os seus mais constantes e perseverantes esforços para a conquista, colonização ou, pelo menos, civilização, do Leste da Europa. As conquistas da nobreza feudal, entre o Elba e o Oder, e as colónias feudais das ordens militares de cavaleiros na Prússia e na Livónia apenas prepararam o terreno para um sistema de germanização mais extenso e efectivo por parte das classes médias comerciais e manufactureiras que, desde o século XV, na Alemanha, como no resto da Europa ocidental, adquiriram uma importância política e social. Os Eslavos e, particularmente, os Eslavos ocidentais (polacos e checos) são essencialmente uma raça agrícola; nunca tiveram grande preferência pelo comércio e pelas manufacturas. A consequência foi que, com o aumento da população e a criação de cidades, nessas regiões, a produção de todos os artigos de manufactura caiu nas mãos de emigrantes alemães e a troca destas mercadorias por produtos agrícolas tornou-se monopólio exclusivo dos Judeus que, se pertencem a alguma nacionalidade, nestes países, são certamente mais alemães do que eslavos. Aconteceu isto, embora num grau menor, em todo o Leste da Europa. Em Petersburgo, Pesht, Jassy e mesmo em Constantinopla, o artesão, o pequeno lojista, o pequeno manufactureiro, é, até hoje, um alemão; quando usurário, o taberneiro, o vendedor ambulante — homem muito importante nestes países pouco povoados — é muito geralmente um judeu, cuja língua materna é um alemão horrivelmente corrompido. A importância do elemento alemão nas localidades da fronteira eslava que, deste modo, aumentava com o crescimento das cidades, do comércio e das manufacturas, foi ainda incrementada quando se achou necessário importar da Alemanha quase todo o elemento da cultura mental; depois do mercador e do artífice alemães, o padre alemão, o mestre-escola alemão, o savant alemão, vieram eles próprios estabelecer-se em solo eslavo. E, finalmente, o passo de ferro dos exércitos conquistadores ou o apossamento cauteloso e bem premeditado da diplomacia não apenas seguiram, mas, muitas vezes, se anteciparam, ao lento mas seguro avanço da desnacionalização em virtude dos desenvolvimentos sociais. Deste modo, grandes porções da Prússia Ocidental e da Posnânia foram germanizadas desde a primeira partilha da Polónia, por meio de vendas e de concessões de domínios públicos a colonos alemães, pelo encorajamento dado a capitalistas alemães para o estabelecimento de manufacturas, etc, nessas redondezas e, muito frequentemente, também, por medidas excessivamente despóticas contra os habitantes polacos do país.
Desta maneira, os últimos setenta anos tinham mudado completamente a linha de demarcação entre às nacionalidades alemã e polaca. Uma vez que a revolução de 1848 tinha provocado, desde logo, a exigência de uma existência independente por parte de todas as nações oprimidas e o direito de resolverem por si os seus próprios assuntos, era muito natural que os polacos, desde logo, reclamassem a restauração do seu país nas fronteiras da velha República Polaca de antes de 1772[N188]. É verdade que essa fronteira, mesmo nessa altura, se tinha tornado obsoleta, caso fosse tomada como delimitação das nacionalidades alemã e polaca; e a partir de então cada ano se tornava mais, em virtude do progresso da germanização; mas, então, os alemães tinham proclamado um tal entusiasmo pela restauração da Polónia que deviam esperar que lhes pedissem, como primeira prova da realidade das suas simpatias, que desistissem da sua parte dos despojos. Por outro lado, deveriam extensões inteiras de terra, habitadas principalmente por alemães, deveriam grandes cidades inteiramente alemãs, ser cedidas a um povo que até agora não tinha dado quaisquer provas da sua capacidade para progredir para além de um estado de feudalismo baseado na servidão agrícola? A questão era bastante intrincada. A única solução possível estava numa guerra com a Rússia; a questão de delimitação [de fronteiras] entre as diferentes nações revolucionadas passaria a secundária ante a de estabelecer primeiro uma fronteira segura contra o inimigo comum; os polacos, recebendo extensos territórios no Leste, tornar-se-iam mais tratáveis e razoáveis a ocidente; e, afinal, Riga e Mitau(21*) parecer-lhes-iam tão importantes como Danzig e Elbing(22*). Deste modo, o partido avançado da Alemanha, supondo que uma guerra com a Rússia era necessária para manter o movimento continental e considerando que o restabelecimento nacional mesmo de uma parte da Polónia conduziria inevitavelmente a uma tal guerra, apoiou os polacos; enquanto o partido liberal da classe média no poder anteviu claramente a sua queda com qualquer guerra nacional contra a Rússia, que chamaria ao governo homens mais activos e enérgicos, e, em consequência, com um entusiasmo fingido pela extensão da nacionalidade alemã, declarou a Polónia prussiana, sede principal da agitação revolucionária polaca, parte integrante do Império alemão que estava para vir. As promessas feitas aos polacos nos primeiros dias de excitação foram vergonhosamente quebradas; destacamentos polacos, formados com a aprovação do governo, foram dispersados e massacrados pela artilharia prussiana; e logo no mês de Abril de 1848, seis semanas depois da revolução de Berlim, o movimento polaco estava esmagado e a velha hostilidade nacional entre polacos e alemães reavivada. Este imenso e incalculável serviço ao autocrata russo foi realizado pelos ministros-mercadores liberais, Camphausen e Hansemann. Tem de acrescentar-se que esta campanha polaca foi o primeiro meio de reorganizar e de voltar a dar confiança a esse mesmo exército prussiano que depois derrubou o partido liberal e esmagou o movimento que os senhores Camphausen e Hansemann tanto trabalho tinham tido para pôr de pé. “Cada um é punido com o instrumento do seu próprio pecado.” Tal foi o destino de todos os arrivistas de 1848 e 1849, de Ledru-Rollin a Changarnier e de Camphausen a Haynau.
A questão da nacionalidade deu origem a uma outra luta na Boémia. Este país, habitado por dois milhões de alemães e três milhões de eslavos de língua checa, tinha grandes recordações históricas, quase todas ligadas à anterior supremacia dos checos. Mas, depois, a força deste ramo da família eslava tinha sido quebrada desde as guerras dos hussitas[N189], no século XV; as províncias que falavam a língua checa foram divididas, formando uma parte o reino da Boémia, outra o principado da Morávia, uma terceira, a região montanhosa dos Cárpatos dos Eslovacos, fazia parte da Hungria. Os Morávios e os Eslovacos tinham desde há muito perdido qualquer vestígio de sentimento e de vitalidade nacionais, apesar de, na maior parte, preservarem a sua língua. A Boémia estava rodeada de países inteiramente alemães por três lados em quatro. O elemento alemão tinha feito grandes progressos no seu próprio território; mesmo na capital, em Praga, as duas nacionalidades estavam muito igualmente equilibradas; e, por toda a parte, o capital, o comércio, a indústria, a cultura mental, estavam nas mãos dos alemães. O principal campeão da nacionalidade checa, o professor Palacky, não é ele próprio senão um alemão culto tresloucado que mesmo agora não sabe falar a língua checa correctamente e sem sotaque estrangeiro. Mas, como frequentemente acontece, as nacionalidades checas moribundas — moribundas segundo todo o facto conhecido na história, nos últimos quatrocentos anos — fizeram em 1848 um último esforço para recobrar a sua antiga vitalidade — um esforço cujo fracasso, independentemente de todas as considerações revolucionárias, devia provar que, doravante, a Boémia só podia existir como parte da Alemanha, embora uma parte dos seus habitantes pudesse ainda continuar, durante alguns séculos, a falar uma língua não alemã[N190].
Londres, Fevereiro de 1852.
IX — Pan-eslavismo, a guerra do Schleswig-Holstein >>>
Início da página
Notas de Rodapé:
(21*) Nome letão: Jelgava. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(22*) Nomes polacos: Gdansk e Elblag. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
Notas de Fim de Tomo:
[N188] Trata-se da fronteira da Polónia até à partilha em 1772, quando uma parte significativa do seu território foi dividido entre a Rússia, a Prússia e a Áustria-Hungria. (retornar ao texto)
[N189] Guerras dos hussitas: guerra de libertação nacional do povo checo em 1419-1437 contra os feudais alemães e a Igreja católica, que recebeu o nome do chefe da Reforma checa Jan Hus (1369-1415). (retornar ao texto)
[N190] Estão aqui expressas várias apreciações inexactas sobre o destino histórico de alguns povos eslavos da Europa central e meridional. Apontando correctamente a tendência própria do capitalismo para a centralização, para a assimilação violenta dos povos pequenos pelos grandes, neste caso Engels, na situação concreta do início dos anos 50, não teve em conta as enormes possibilidades destes povos na luta contra a opressão nacional e pela sua independência, a sua aspiração a criar os seus próprios Estados. Esta apreciação foi em certa medida determinada pelo facto de, no período de 1848-1849, a monarquia dos Habsburgos e o tsarismo russo, recorrendo à demagogia e a outros meios, terem conseguido utilizar os movimentos nacionais dos eslavos do Ocidente e do Sul contra as revoluções alemã e húngara. Estes movimentos, sob a influência de elementos burgueses e latifundiários de direita, foram objectivamente um instrumento da contra-revolução. Posteriormente, à medida que a classe operária foi crescendo e que se foi consolidando a sua consciência política e a sua organização, todas as correntes da luta democrática e revolucionária, incluindo o movimento de libertação nacional, sofreram um amplo desenvolvimento. Os impérios multinacionais faliram, e os pequenos povos – vítimas das pretensões das grandes potências – seguiram o caminho do desenvolvimento independente. Alguns deles fazem agora parte da comunidade das nações socialistas. (retornar ao texto)
IX — Pan-eslavismo, a guerra do Schleswig-Holstein
A Boémia e a Croácia (outro membro separado da família eslava, sobre o qual o húngaro agia do mesmo modo que o alemão sobre a Boémia) eram as sedes daquilo a que se chama no continente europeu o “pan-eslavismo”. Nem a Boémia nem a Croácia tinham força suficiente para existir por si próprias como nações. As suas respectivas nacionalidades, gradualmente minadas pela acção de causas históricas que inevitavelmente as absorvem numa família mais enérgica, apenas podiam esperar ser restauradas em algo de parecido com a independência por meio de uma aliança com outras nações eslavas. Havia vinte e dois milhões de polacos, quarenta e cinco milhões de russos, oito milhões de sérvios e búlgaros — por que não formar uma Confederação poderosa com todos os oitenta milhões de eslavos e repelir ou exterminar o invasor do sagrado solo eslavo, o Turco, o Húngaro e, acima de tudo, o odiado mas indispensável Niemetz, o Alemão? Assim, nos gabinetes de uns poucos dilettanti(23*) eslavos da ciência histórica foi erguido este ridículo e anti-histórico movimento, um movimento que pretendia nada menos do que subjugar o Ocidente civilizado ao Oriente bárbaro, a cidade ao campo, o comércio, as manufacturas, a inteligência, à agricultura primitiva dos servos eslavos. Mas, por detrás desta teoria ridícula erguia-se a terrível realidade do Império Russo, o império que, a cada movimento, proclama a pretensão de considerar toda a Europa como o domínio da raça eslava e, especialmente, da única parte enérgica dessa raça, os russos; o império que, com duas capitais como S. Petersburgo e Moscovo, ainda não encontrou o seu centro de gravidade, na medida em que a “Cidade do Tsar” (Constantinopla, chamada em russo Tsargrad, a cidade do Tsar), considerada por cada camponês russo como a verdadeira metrópole da sua religião e nação, não é efectivamente a residência do seu imperador; o império que, nos últimos 150 anos, em cada guerra que iniciou, nunca perdeu, mas sempre ganhou território. E, na Europa Central, são bem conhecidas as intrigas por meio das quais a política russa sustentou o sistema em moda do pan-eslavismo, um sistema que, melhor do que nenhum outro, podia ser inventado para servir os seus propósitos. Deste modo, os pan-eslavistas boémios e croatas, alguns intencionalmente, outros sem o saber, trabalhavam no interesse directo da Rússia; traíam a causa revolucionária pelo fantasma de uma nacionalidade que, no melhor dos casos, teria partilhado o destino da nacionalidade polaca sob o domínio russo. Tem, no entanto, de se dizer, em honra dos polacos, que eles nunca se deixaram seriamente apanhar nessas armadilhas pan-eslavistas; e se uns poucos aristocratas se tornaram pan-eslavistas furiosos é que sabiam que tinham menos a perder com a subjugação russa do que com uma revolta dos seus próprios camponeses servos.
Os Boémios e os Croatas convocaram, então, um Congressso geral eslavo em Praga[N191], para a preparação da aliança eslava universal. Este Congresso ter-se-ia revelado como um decidido fracasso mesmo sem a interferência dos militares austríacos. As diferentes línguas eslavas diferem mais ou menos tanto quanto o inglês, o alemão e o sueco e, quando abriram os debates, não havia qualquer língua eslava comum por meio da qual os oradores se fizessem compreender. Tentou-se o francês, mas era igualmente ininteligível para a maioria e os pobres entusiastas eslavos, cujo único sentimento comum era um ódio comum contra os alemães, foram finalmente obrigados a expressar-se na odiada língua alemã, como a única que era geralmente entendida! Mas, precisamente nessa altura, estava reunido em Praga um outro Congresso eslavo, sob a forma de lanceiros da Galícia, de granadeiros croatas e eslovacos e de artilheiros e couraceiros boémios; e este Congresso eslavo armado, real, sob o comando de Windischgräz, em menos de vinte e quatro horas, expulsou da cidade os fundadores de uma imaginária supremacia eslava e dispersou-os em todas as direcções.
Os deputados boémios, morávios, dálmatas e uma parte dos polacos (a aristocracia) à Dieta Constituinte austríaca fizeram, nessa assembleia, uma guerra sistemática contra o elemento alemão. Os alemães e parte dos polacos (a nobreza empobrecida) eram, nessa assembleia, os principais defensores do progresso revolucionário; a massa dos deputados eslavos, ao opor-se-lhes, não se contentou em, desse modo, mostrar claramente as tendências reaccionárias de todo o seu movimento, mas degradou-se ainda o bastante para manobrar e conspirar, precisamente, com o mesmo governo austríaco que tinha dispersado o seu encontro em Praga. Também eles receberam a sua paga por esta conduta infame; depois de apoiarem o governo durante a insurreição de Outubro de 1848, facto que finalmente lhes assegurou a maioria na Dieta, esta Dieta agora quase exclusivamente eslava foi dispersada pelos soldados austríacos, tal como no Congresso de Praga, e os pan-eslavistas foram ameaçados de prisão, caso de novo se mexessem. E apenas conseguiram isto, que a nacionalidade eslava esteja por toda a parte a ser agora minada pela centralização austríaca, um resultado que têm de agradecer ao seu próprio fanatismo e cegueira.
Se as fronteiras da Hungria e da Alemanha admitissem alguma dúvida, teria havido aí certamente uma outra disputa. Mas, felizmente, não havia qualquer pretexto e, estando os interesses de ambas as nações intimamente relacionados, lutaram contra os mesmos inimigos, isto é, o governo austríaco e o fanatismo pan-eslavo. O bom entendimento, em momento algum, foi perturbado. Mas a revolução italiana envolveu pelo menos uma parte da Alemanha numa guerra mutuamente destruidora; e tem de ser afirmado aqui, como prova de até onde o sistema de Metternich tinha conseguido fazer recuar o desenvolvimento da mente pública, que, durante os primeiros seis meses de 1848, os mesmos homens que em Viena tinham levantado as barricadas se foram alistar, plenos de entusiasmo, no exército que lutou contra os- patriotas italianos. Esta deplorável confusão de ideias não durou, contudo, muito tempo.
Finalmente, houve a guerra com a Dinamarca, a propósito do Schleswig e do Holstein. Estes países, inquestionavelmente alemães pela nacionalidade, pela língua e por predilecção, são também, por razões militares, navais e comerciais, necessários à Alemanha. Os seus habitantes, nos últimos três anos, têm lutado duramente contra a intromissão dinamarquesa. Além disso, o direito dos tratados estava a favor deles. A resolução de Março pô-los em colisão aberta com os dinamarqueses e a Alemanha apoiou-os. Mas, enquanto na Polónia, na Itália, na Boémia e, mais tarde, na Hungria, as operações militares foram conduzidas com o maior vigor, nesta guerra, a única popular, a única — pelo menos parcialmente — guerra revolucionária, adoptou-se um sistema de marchas e contramarchas sem resultados e foi aceite uma interferência da diplomacia estrangeira que conduziu, depois de muitos combates heróicos, a um fim muito miserável. Durante esta guerra, os governos alemães traíram em cada ocasião o exército revolucionário do Schleswig-Holstein e consentiram, propositadamente, que fosse despedaçado pelos dinamarqueses, uma vez disperso ou dividido. Os corpos de voluntários alemães foram tratados da mesma forma.
Mas, deste modo, enquanto o nome alemão não granjeava de todos os lados mais do que ódio, os governos constitucionais e liberais alemães esfregavam as mãos de contentamento. Tinham conseguido esmagar os movimentos polaco e boémio. Tinham reavivado por toda a parte as velhas animosidades nacionais que, até então, tinham impedido qualquer entendimento e acção comuns entre os alemães, os polacos, os italianos. Tinham acostumado o povo a cenas de guerra civil e de repressão pelos militares. O exército prussiano tinha reconquistado a confiança em si na Polónia, o exército austríaco em Praga; e, enquanto o superabundante patriotismo (“die patriotische UberkrafC, como diz Heine (24*)) da juventude revolucionária, mas de vistas curtas, era levado, no Schleswig e na Lombardia, a fazer-se esmagar pela metralha do inimigo, o exército regular, o real instrumento de acção, tanto da Prússia como da Áustria, era colocado em posição de reconquistar o favor público por meio de vitórias sobre os estrangeiros. Mas repetimo-lo: estes exércitos, fortalecidos pelos liberais como meio de acção contra o partido mais avançado, logo que restabeleceram, em algum grau, a sua auto-confiança«e a sua disciplina voltaram-se eles próprios contra os liberais A restauraram no poder os homens do velho sistema. Quando Radetzky, no seu acampamento do outro lado do Adige, recebeu as primeiras ordens dos “ministros responsáveis” de Viena, exclamou: “Quem são estes ministros? Não são o governo da Áustria! Agora, a Áustria não está senão no meu acampamento; eu e o meu exército somos a Áustria; e, quando tivermos batido os italianos, reconquistaremos o Império para o Imperador!” E o velho Radetzky tinha razão — mas os imbecis ministros “responsáveis” de Viena não o escutaram.
Londres, Fevereiro de 1852.
X — O levantamento de Paris. A Assembleia de Frankfurt >>>
Início da página
Notas de Rodapé:
(23*) Em italiano no texto: diletantes. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(24*) Em alemão no texto: Heine, «Bei des Nachtwàchters-Ankunft zu Paris» («À chegada do vigilante nocturno a Paris»), do ciclo Zeitgedichte (Poemas Modernos). (retornar ao texto)
Notas de Fim de Tomo:
[N191] O Congresso Eslavo, que se reuniu a 2 de Junho de 1848 em Praga, mostrou a existência de duas correntes no movimento nacional dos povos eslavos oprimidos pelo império dos Habsburgos. Não conseguiu formular um ponto de vista único para a solução da questão nacional. Uma parte dos delegados ao Congresso, pertencentes à ala radical e que tinham participado activamente na insurreição de Praga de Junho de 1848, foram submetidos a uma cruel repressão. Os representantes da ala liberal moderada, que tinham ficado em Praga, declararam em 16 de Junho que as sessões do Congresso eram suspensas por tempo indefinido. (retornar ao texto)
X — O levantamento de Paris.
A Assembleia de Frankfurt
Desde o começo de Abril de 1848, a torrente revolucionária ficou travada, em todo o continente europeu, pela aliança que aquelas classes da sociedade que tinham beneficiado com a primeira vitória imediatamente formaram com os vencidos. Em França, a classe do pequeno comércio e a fracção republicana da burguesia coligaram-se com a burguesia monárquica contra os proletários; na Alemanha e na Itália, a burguesia vitoriosa solicitou avidamente o apoio da nobreza feudal, da burocracia oficial e do exército contra a massa do povo e os pequenos negociantes. Em breve, os partidos conservadores e contra-revolucionários, unidos, voltaram a ter o ascendente. Em Inglaterra, uma manifestação popular intempestiva e mal preparada (em 10 de Abril) transformou-se numa completa e decisiva derrota do partido do movimento[N192]. Em França, dois movimentos semelhantes (em 16 de Abril[N121] e 15 de Maio[N120]) fracassaram igualmente. Em Itália, o rei Bomba(25*) reconquistou a sua autoridade com um único golpe em 15 de Maio[N193]. Na Alemanha, os diferentes novos governos da burguesia e as suas respectivas assembleias constituintes consolidaram-se e, se o 15 de Maio, fértil em acontecimentos, deu lugar, em Viena, a uma vitória popular, este foi um acontecimento de importância meramente secundária e pode ser considerado como o último lampejo bem sucedido da energia popular. Na Hungria, o movimento parecia transformar-se no canal tranquilo da perfeita legalidade e o movimento polaco, como vimos no último artigo, tinha sido abafado à nascença pelas baionetas prussianas. Mas, até agora, nada estava decidido quanto ao eventual aspecto que as coisas iriam tomar e cada palmo de terreno perdido pelos partidos revolucionários nos diferentes países só tendia a fazer cerrar cada vez mais as suas fileiras para a acção decisiva.
A acção decisiva aproximava-se. Só em França ela podia ser empreendida; porque a França — uma vez que a Inglaterra não tomava parte na luta revolucionária ou que a Alemanha permanecia dividida — era, pela sua independência nacional, civilização e centralização, o único país capaz de comunicar aos países circundantes o impulso de uma poderosa convulsão. Em conformidade, quando a 23 de Junho de 1848[N43] a luta sangrenta começou em Paris, quando cada telegrama ou correio que chegava expunha mais claramente perante os olhos da Europa o facto de que esta luta se travava entre, por um lado, a massa dos operários e, por outro lado, todas as outras classes da população parisiense, apoiadas pelo exército; quando as lutas se mantiveram por vários dias com uma exasperação sem igual na história das guerras civis modernas, mas sem qualquer vantagem aparente para nenhum dos lados — tornou-se, então, evidente para todos que esta era a grande batalha decisiva que, se a insurreição fosse vitoriosa, havia de inundar todo o continente de novas revoluções ou, que se fosse esmagada, havia de trazer, pelo menos, momentaneamente, uma restauração do domínio contra-revolucionário.
Os proletários de Paris foram derrotados, dizimados, a tal ponto esmagados que mesmo agora ainda não se recompuseram do golpe. E, imediatamente, por toda a Europa, os novos e velhos conservadores e contra-revolucionários levantaram a cabeça com um descaramento que mostrava como tinham compreendido bem a importância do acontecimento. A imprensa foi, por toda a parte, atacada, interferiu-se com os direitos de reunião e de associação, de todo o pequeno acontecimento em cada pequena cidade da província se tirou proveito para desarmar o povo, para declarar o estado de sítio, para treinar as tropas nas novas manobras e artifícios que Cavaignac lhes havia ensinado. Além disso, pela primeira vez desde Fevereiro, se provava que a invencibilidade de uma insurreição popular numa grande cidade era uma ilusão; a honra dos exércitos tinha sido restaurada; as tropas, até então sempre derrotadas em batalhas de rua de importância, voltaram a ganhar confiança na sua eficiência, mesmo neste tipo de luta.
Desta derrota dos ouvriers(26*) de Paris podem datar-se os primeiros passos positivos e os primeiros planos definidos-do velho partido feudal-burocrático na Alemanha para se ver livre mesmo dos seus aliados momentâneos, as classes médias, e para restaurar a Alemanha no estado em que se encontrava antes dos acontecimentos de Março. O exército era, de novo, o poder decisivo no Estado, e o exército não pertencia às classes médias, mas a si próprio. Mesmo na Prússia onde, antes de 1848, se tinha observado uma inclinação considerável de parte das baixas patentes de oficiais para um governo constitucional, a desordem introduzida no exército pela revolução tinha feito voltar estes jovens com ideias à obediência; assim que as praças tomaram algumas liberdades para com os oficiais, a necessidade de disciplina e de obediência passiva logo se tornou flagrantemente evidente para eles. Os nobres e burocratas vencidos começaram agora a ver perspectivas diante deles; o exército, mais unido do que nunca, revigorado pela vitória em insurreições menores e em guerras no estrangeiro, invejoso do grande sucesso que os soldados franceses tinham acabado de obter — bastava apenas que este exército fosse mantido em pequenos conflitos constantes com o povo e, uma vez agarrado o momento decisivo, ele podia com um só grande golpe esmagar os revolucionários e pôr de lado as presunções dos parlamentares da classe média. E o momento próprio para um tal golpe decisivo chegou bastante cedo.
Passamos por cima dos debates parlamentares, por vezes, curiosos, mas, na maior parte dos casos, maçadores, e das lutas locais que, na Alemanha, ocuparam os diferentes partidos durante o Verão. Basta, no entanto, dizer que os defensores dos interesses da classe média, apesar de numerosos triunfos parlamentares, em que nenhum conduziu a qualquer resultado prático, sentiam, muito geralmente, que a sua posição entre os partidos extremos se tornava cada dia mais insustentável e que, por conseguinte, hoje eram obrigados a procurar a aliança dos reaccionários, para no outro dia fazerem a corte aos favores das fracções mais populares. Esta vacilação constante deu o golpe final no seu carácter perante a opinião pública e, segundo o curso que os acontecimentos estavam a tomar, o desprezo çm que eles tinham caído aproveitou, de momento, principalmente, aos burocratas e aos feudais.
Pelo começo do Outono, a posição relativa dos diferentes partidos tinha-se tornado suficientemente exasperada e crítica para tornar inevitável uma batalha decisiva. Os primeiros embates nesta guerra entre as massas revolucionárias e democráticas e o exército teve lugar em Frankfurt. Embora sendo um embate meramente secundário, foi a primeira vantagem de algum relevo que as tropas obtiveram sobre a insurreição e teve um grande efeito moral. O governo de fantasia estabelecido pela Assembleia Nacional de Frankfurt tinha sido autorizado pela Prússia, por razões muito óbvias, a concluir um armistício com a Dinamarca que, não apenas entregava à vingança dinamarquesa os alemães de Schleswig, como também desmentia inteiramente os princípios mais ou menos revolucionários que estavam geralmente supostos na guerra dinamarquesa. Este armistício foi rejeitado na Assembleia de Frankfurt, por uma maioria de dois ou três votos. Seguiu-se a esta votação uma crise ministerial simulada, mas três dias depois a Assembleia reconsiderou o seu voto e, efectivamente, foi levada a anulá-lo e a reconhecer o armistício. Este procedimento ignominioso fez levantar a indignação do povo. Ergueram-se barricadas, mas já se tinham deslocado para Frankfurt tropas suficientes e, após seis horas de luta, a insurreição foi esmagada. Movimentos semelhantes, ligados com este, mas menos importantes, tiveram lugar noutras partes da Alemanha (Baden, Colónia), mas foram igualmente derrotados.
Este embate preliminar deu ao partido contra-revolucionário a grande vantagem de, agora, o único governo que — pelo menos na aparência — tinha tido inteiramente origem numa eleição popular, o governo imperial de Frankfurt, assim como à Assembleia Nacional, estarem arruinados aos olhos do povo. Este governo e esta Assembleia tinham sido obrigados a apelar para as baionetas das tropas contra a manifestação da vontade popular. Estavam comprometidos e, por pouca consideração que pudessem até aqui ter sido capazes de reclamar, este repúdio da sua origem, a dependência de governos antipopulares e dás suas tropas, fizeram com que o Lugar-Tenente do Império, os seus ministros e os seus deputados, se tornassem doravante completas nulidades. Veremos, em breve, como, primeiramente a Áustria, depois a Prússia e, mais tarde, também os pequenos Estados, trataram com desprezo toda a ordem, todo o requerimento, toda a deputação, que receberam deste corpo de sonhadores impotentes.
Chegamos agora à grande réplica que teve, na Alemanha, a batalha francesa de Junho, chegamos àquele acontecimento que foi tão decisivo para a Alemanha como a luta proletária de Paris tinha sido para a França; referimo-nos à revolução e subsequente tomada de Viena em Outubro de 1848. Mas a importância desta batalha é tal e a explicação das diferentes circunstâncias que mais imediatamente contribuíram para o seu desenlace ocuparão uma tal porção de colunas do The Tribune, que obrigam a que seja tratada numa carta separada.
Londres, Fevereiro de 1852.
XI — A insurreição de Viena >>>
Início da página
Notas de Rodapé:
(25*) Fernando II. (retornar ao texto)
(26*) Em francês no texto: operários. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
Notas de Fim de Tomo:
[N43] Insurreição de Junho: heróica insurreição dos operários de Paris em 23-26 de Junho de 1848, esmagada com excepcional crueldade pela burguesia francesa. Esta insurreição foi a primeira grande guerra civil da história entre o proletariado e a burguesia. (retornar ao texto)
[N120] Em 15 de Maio de 1848, durante uma manifestação popular, os operários e artesãos de Paris penetraram na sala de sessões da Assembleia Constituinte, declararam-na dissolvida e formaram um governo revolucionário. No entanto, os manifestantes foram rapidamente dispersos pela Guarda Nacional e pela tropa. Os dirigentes dos operários (Blanqui, Barbes, Albert, Raspail, Sobrier e outros) foram presos. (retornar ao texto)
[N121] Em 16 de Abril de 1848 em Paris uma manifestação pacífica de operários que iam entregar uma petição ao Governo Provisório sobre a “organização do trabalho” e a “abolição da exploração do homem pelo homem” foi detida pela Guarda Nacional burguesa, especialmente mobilizada para este fim. (retornar ao texto)
[N192] A manifestação de massas convocada pelos cartistas para 10 de Abril de 1848 em Londres para entregar ao Parlamento uma petição para que a Carta do Povo fosse adoptada constituiu um fracasso devido à indecisão e às vacilações dos seus organizadores. O fracasso da manifestação foi utilizado pelas forças da reacção para uma ofensiva contra os operários e para desencadear uma acção repressiva contra os cartistas. (retornar ao texto)
[N193] Em 15 de Maio de 1848 o rei napolitano Fernando II esmagou a insurreição popular, dissolveu a Guarda Nacional, dissolveu o parlamento e aboliu as reformas adoptadas sob a pressão das massas populares em Fevereiro de 1848. (retornar ao texto)
XI — A insurreição de Viena
Chegamos agora ao acontecimento decisivo que constitui a contrapartida, na Alemanha, à insurreição parisiense de Junho e que, com um só golpe, fez pender a balança a favor do partido contra-revolucionário — a insurreição de Outubro de 1848 em Viena.
Vimos qual era a posição das diferentes classes em Viena, depois da vitória do 13 de Março. Vimos também como o movimento da Áustria alemã estava enredado com e estorvado pelos acontecimentos nas províncias não alemãs da Áustria. Resta-nos, portanto, ver brevemente as causas que levaram a este último e mais formidável levantamento da Áustria alemã.
À alta aristocracia e à burguesia que especulava com fundos, que tinham constituído os principais apoios não oficiais do governo de Metternich, tinha sido possível, mesmo depois dos acontecimentos de Março, manter uma influência predominante sobre o governo, não apenas por meio da corte, do exército e da burocracia, mas ainda mais em virtude do horror da “anarquia”, que rapidamente se espalhou entre as classes médias. Cedo lançaram alguns balões de ensaio, sob a forma de uma lei da imprensa[N194], de uma Constituição indescritivelmente aristocrática[N195] e de uma lei eleitoral baseada na velha divisão em “estados”(27*) [N196]. O ministério dito constitucional, constituído por burocratas meio liberais, tímidos e incapazes, a 14 de Maio, arriscou mesmo um ataque directo contra as organizações revolucionárias de massas ao dissolver o Comité Central de Delegados da Guarda Nacional e da Legião Académica[N197], corpo formado com o objectivo expresso de controlar o governo e, em caso de necessidade, de convocar contra ele as forças populares. Mas este acto apenas provocou a insurreição de 15 de Maio, pela qual o governo foi forçado a reconhecer o Comité, a revogar a Constituição e a lei eleitoral e a conceder o poder de elaborar uma nova lei fundamental à Dieta Constitucional, eleita por sufrágio universal. Tudo isto foi confirmado no dia seguinte por uma proclamação imperial. Mas o partido reaccionário, que também tinha os seus representantes no ministério, cedo levou os seus colegas “liberais” a empreenderem um novo ataque contra as conquistas populares. A Legião Académica, bastião do partido do movimento, centro de agitação contínua, tinha-se tornado, por esta mesma razão, obnóxia para os burgueses mais moderados de Viena; no dia 26, um decreto ministerial dissolvia-a. Talvez este golpe tivesse resultado se tivesse sido levado a cabo por uma parte da Guarda Nacional apenas; mas o governo, não confiando nela também, fez intervir os militares e imediatamente a Guarda Nacional se voltou, uniu-se à Legião Académica e frustrou, assim, o projecto ministerial.
Todavia, entretanto, o Imperador(28*) e a sua corte tinham deixado Viena a 16 de Maio e fugido para Innsbruck. Foi aí que, rodeado pelos fanáticos tiroleses, cuja lealdade tinha sido de novo excitada pelo perigo de uma invasão da sua terra pelo exército sardo-lombardo, apoiado na vizinhança das tropas de Radetzky, ao alcance de cujos obuses Innsbruck ficava, foi aí que o partido contra-revolucionário encontrou um asilo, a partir do qual, isento de controlo, de observação e seguro, podia reagrupar as suas forças dispersas, recompor-se e estender de novo por todo o país a rede das suas conspirações. Restabeleceram-se comunicações com Radetzky, com Jellachich e com Windischgrätz, assim como com os homens de confiança na hierarquia administrativa das diferentes províncias; puseram-se de pé intrigas com os chefes eslavos; e formou-se, assim, uma força real à disposição da camarilha contra-revolucionária, enquanto os impotentes ministros de Viena se permitiam gastar a sua pequena e débil popularidade em conflitos contínuos com as massas revolucionárias e com os debates da futura Assembleia Constituinte. Deste modo, a política de deixar o movimento da capital entregue a si próprio durante algum tempo, uma política que teria de levar à omnipotência do partido do movimento num país centralizado e homogéneo como a França, aqui, na Áustria, num conglomerado político heterogéneo, foi um dos meios mais seguros para reorganizar a força dos reaccionários.
Em Viena, a classe média, persuadida de que depois de três derrotas sucessivas e em face de uma Assembleia Constituinte baseada no sufrágio universal, o partido da Corte não era mais um opositor a temer, foi caindo cada vez mais naquele enfado e apatia e naquele eterno apelo à ordem e à tranquilidade que, por toda a parte, se apoderou desta classe depois de violentas comoções e das consequentes perturbações nos negócios. Os manufactureiros da capital austríaca estão quase exclusivamente limitados aos artigos de luxo, para os quais, desde a revolução e a fuga da Corte, necessariamente tinha havido muito pouca procura. O clamor por um regresso a um sistema regular de governo e pelo regresso da Corte, os quais se esperava que trouxessem um reviver da prosperidade comercial — este clamor tornou-se, então, geral entre as classes médias. A reunião da Assembleia Constituinte em Julho foi saudada com prazer como o fim da era revolucionária; igualmente saudado foi o regresso da Corte que, depois das vitórias de Radetzky na Itália e depois do advento do ministério reaccionário de Doblhof, se considerava suficientemente forte para desafiar a torrente popular e que, ao mesmo tempo, precisava de estar em Viena a fim de completar as suas intrigas com a maioria eslava da Dieta. Enquanto a Dieta Constituinte discutia as leis sobre a emancipação do campesinato da servidão feudal e do trabalho forçado a favor da nobreza, a Corte deu um golpe de mestre. A 19 de Agosto, o Imperador foi levado a passar em revista a Guarda Nacional; a família imperial, os cortesãos, os oficiais generais, excederam-se uns aos outros em lisonjas aos burgueses armados, que já estavam inebriados de orgulho por se verem reconhecidos, assim, publicamente, como um dos corpos importantes do Estado; e, imediatamente depois, foi publicado um decreto, assinado pelo senhor Schwarzer, o único ministro popular do gabinete, suprimindo a ajuda até então dada pelo governo aos operários sem emprego. O truque resultou; as classes trabalhadoras fizeram uma manifestação; os guardas nacionais da classe média declararam-se a favor do decreto do seu ministro; foram lançados contra os “anarquistas”, caíram como tigres sobre o povo trabalhador desarmado e que não opôs resistência e massacraram um grande número, a 23 de Agosto. A unidade e o vigor da força revolucionária foram, assim, quebrados; a luta de classes entre o burguês e o proletário tinha chegado, em Viena também, a uma manifestação sangrenta e a camarilha contra-revolucionária viu aproximar-se o dia em que poderia dar o seu grande golpe.
Os assuntos húngaros cedo ofereceram uma oportunidade de proclamar abertamente os princípios sob que pretendia actuar.
Em 5 de Outubro, um decreto imperial na Gazette oficial de Viena[N198] — um decreto que não estava rubricado por nenhum dos ministros responsáveis pela Hungria — declarava a Dieta húngara dissolvida e nomeava o chefe Jellachich da Croácia governador civil e militar do país — Jellachich, o dirigente da reacção da Eslavónia meridional, um homem que efectivamente estava em guerra com as autoridades legais da Hungria. Ao mesmo tempo, foram dadas ordens às tropas de Viena para marchar e fazer parte do exército que havia de fazer impor a autoridade de Jellachich. Isto, contudo, era mostrar demasiado claramente o jogo escondido; toda a gente em Viena sentiu que uma guerra contra a Hungria era uma guerra contra o princípio do governo constitucional, princípio que no próprio decreto estava espezinhado pela tentativa do Imperador de fazer decretos com força legal sem a rubrica de um ministro responsável. O povo, a Legião Académica, a Guarda Nacional de Viena, a 6 de Outubro, levantaram-se em massa e opuseram-se à partida das tropas; alguns granadeiros passaram para o lado do povo; teve lugar uma pequena luta entre as forças populares e as tropas; o ministro da guerra, Latour, foi massacrado pelo povo e, ao fim da tarde, este estava vitorioso. Entretanto, o chefe Jellachich, vencido em Stuhlweissenburg(29*) por Perczel, tinha-se refugiado perto de Viena em território austríaco alemão; as tropas vienenses que haviam de marchar para o apoiar tomaram agora uma posição ostensivamente hostil e defensiva contra ele e o Imperador e a Corte tinham de novo fugido para Olmütz(30*), em território semieslavo.
Mas em Olmütz a Corte encontrou-se em circunstâncias muito diferentes das que tinha tido em Innsbruck. Estava agora em posição de abrir imediatamente a campanha contra a revolução. Estava rodeada pelos deputados eslavos à Constituinte que afluíram em massa a Olmütz e pelos entusiastas eslavos, vindos de todas as partes da monarquia. Aos seus olhos, a campanha havia de ser uma guerra pela restauração eslava e de extermínio contra os dois intrusos naquilo que era considerado solo eslavo, contra o alemão e o magiar. Windischgrätz, o conquistador de Praga, agora comandante do exército que estava concentrado à volta de Viena, tornou-se imediatamente o herói da nacionalidade eslava. E o seu exército concentrava-se rapidamente por todos os lados. Da Boémia, da Morávia, da Estíria, da Alta Áustria e da Itália, regimento após regimento marchava pelas estradas que convergem em Viena para se juntar às tropas de Jellachich e à ex-guarnição da capital. Mais de sessenta mil homens estavam, assim, reunidos por finais de Outubro e cedo começaram a cercar a capital imperial por todos os lados até que, a 30 de Outubro, tinham avançado o suficiente para arriscarem o ataque decisivo.
Em Viena, entretanto, a confusão e o desamparo prevaleciam. A classe média, logo que a vitória foi alcançada, tornou-se de novo possuída pela velha desconfiança contra as “anárquicas” classes laboriosas; os operários, recordados do tratamento que tinham recebido, seis semanas antes, às mãos dos negociantes armados, e da política instável e flutuante da burguesia, em geral, não lhe confiariam a defesa da cidade e exigiram, para si próprios, armas e uma organização militar. A Legião Académica, cheia de fervor por lutar contra o despotismo imperial, foi inteiramente incapaz de entender a natureza da alienação das duas classes ou, de outro modo, de compreender as necessidades da situação. Havia confusão no espírito público, confusão nos círculos dirigentes. O remanescente da Dieta, deputados alemães e alguns eslavos, desempenhando o papel de espiões a favor dos seus amigos em Olmütz, excepto alguns dos deputados polacos mais revolucionários, reuniram-se em permanência, mas, em vez de tomarem partido resolutamente, perderam todo o tempo em debates estéreis sobre a possibilidade de resistir ao exército imperial sem ultrapassar os limites das convenções constitucionais. O Comité de Segurança, composto por deputados de quase todos os corpos populares de Viena, apesar de ter resolvido resistir, estava, todavia, dominado por uma maioria de burgueses e pequenos negociantes que nunca lhe permitiram seguir qualquer linha de acção determinada, enérgica. O conselho da Legião Académica votava resoluções heróicas, mas de modo algum era capaz de tomar a dianteira. As classes trabalhadoras, em quem se não confiava, desarmadas, desorganizadas, mal emergindo da servidão intelectual do antigo regime, mal despertando não para um conhecimento mas para um mero instinto da sua posição social e da sua linha de acção política própria, apenas se podiam fazer ouvir por ruidosas manifestações e não se podia esperar que estivessem à altura das dificuldades do momento. Mas estavam prontas — como, na Alemanha, já tinham estado durante a revolução — para lutar até ao fim, uma vez que obtivessem armas.
Era este o estado de coisas em Viena. Fora, o exército austríaco reorganizado, inebriado pelas vitórias de Radetzky na Itália; sessenta ou setenta mil homens, bem armados, bem organizados e, se não bem comandados, pelo menos, possuindo comandantes. Dentro, a confusão, a divisão de classes, a desorganização; uma guarda nacional, parte da qual estava decidida a não lutar, uma parte irresoluta e só a parte mais pequena pronta para agir; uma massa proletária, poderosa em número, mas sem dirigentes, sem qualquer educação política, sujeita ao pânico assim como a acessos de fúria quase sem motivo, presa de qualquer falso rumor que se espalhasse, bastante pronta para lutar, mas desarmada, pelo menos, no começo e incompletamente armada e escassamente organizada quando, por fim, foi levada à batalha; uma Dieta desvalida, discutindo jogos de palavras teóricos enquanto sobre a sua cabeça o tecto estava quase a arder; um comité dirigente sem impulso ou energia. Tudo estava mudado desde os dias de Março e Maio em que, no campo contra-revolucionário, tudo era confusão e em que a única força organizada era a criada pela revolução. Mal podia haver uma dúvida quanto ao resultado de uma tal luta e qualquer que fosse a dúvida que pudesse haver, foi dissipada pelos acontecimentos de 30 e 31 de Outubro e 1 de Novembro.
Londres, Março de 1852.
XII — A tomada de Viena. A traição a Viena >>>
Início da página
Notas de Rodapé:
(27*) Ver nota (9*). (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(28*) Fernando I. (retornar ao texto)
(29 *) Nome húngaro: Székesfehérvar. (retornar ao texto)
(30*) Nome checo: Olomouc. (retornar ao texto)
Notas de Fim de Tomo:
[N194] As regras provisórias sobre a imprensa promulgadas pelo governo austríaco em 1 de Abril de 1848 exigiam o depósito de uma soma elevada para a obtenção do direito de editar jornais. (retornar ao texto)
[N195] A Constituição de 25 de Abril de 1848 condicionava o direito de voto nas eleições para a dieta à posse de bens de elevado valor e a um longo período de residência num local fixo, instituía duas câmaras (a câmara baixa e o senado), conservava as instituições baseadas nos estados sociais e concedia ao imperador o direito de revogar as leis aprovadas pelas câmaras. (retornar ao texto)
[N196] A lei eleitoral de 8 de Maio de 1848 retirava o direito de voto aos operários, jornaleiros e criados. Uma parte dos senadores era designada pelo imperador, a outra parte era eleita através de eleições em duas etapas entre os que pagavam impostos elevados. As eleições para a câmara baixa eram também em duas etapas. (retornar ao texto)
[N197] Legião Académica: organização civil militarizada constituída por estudantes radicais da Universidade de Viena. (retornar ao texto)
[N198] Referência ao jornal oficial do governo Österreichische Kaiserische Wiener Zeitung (Jornal Imperial Austríaco de Viena); publicou-se com este título a partir de 1780. (retornar ao texto)
XII — A tomada de Viena.
A traição a Viena
capa
Quando, por fim, o exército concentrado por Windischgrätz começou o ataque a Viena, as forças que se podiam apresentar para a defesa eram excessivamente insuficientes para o objectivo. Só uma parte da Guarda Nacional havia de ser levada para as trincheiras. Uma Guarda Proletária, é certo, tinha finalmente sido formada à pressa, mas devido ao atraso da tentativa de, assim, tornar disponível a parte da população mais numerosa, mais ousada e mais enérgica, estava muito pouco habituada ao uso das armas e aos mais elementares rudimentos de disciplina, para poder oferecer uma resistência frutuosa. Por conseguinte, a Legião Académica, com uma força de três ou quatro mil homens, bem treinada e, até certo ponto, disciplinada, corajosa e entusiástica, era, de um ponto de vista militar, a única força que estava em estado de realizar o seu trabalho com sucesso. Mas que eram eles, juntamente com os poucos guardas nacionais de confiança e com a massa confusa de proletários armados, em oposição ao exército regular muito mais numeroso de Windischgrätz, sem contar sequer com as hordas de brigões de Jellachich, hordas que, pela própria natureza dos seus hábitos, eram muito úteis numa guerra de casa para casa, de ruela para ruela? E que tinham os insurrectos para opor àquela artilharia numerosa e perfeitamente apontada de que Windischgrätz fez um uso tão desprovido de escrúpulos,senão alguns velhos canhões antiquados, mal montados e mal servidos?
Quanto mais o perigo se aproximava mais aumentava a confusão em Viena. A Dieta, até ao último momento, não conseguiu reunir a energia suficiente para pedir a ajuda do exército húngaro de Perczel, acampado a algumas léguas da capital. O Comité(31*) aprovou resoluções contraditórias, balançando ele próprio, tal como as massas populares armadas, ao sabor da maré alternadamente enchente e vazante dos rumores e contra-rumores. Havia apenas uma coisa em que todos concordavam — em respeitar a propriedade; e isso foi feito num grau quase ridículo para tempos como aqueles. Quanto à elaboração de um plano final de defesa muito pouco foi feito. Bem, o único homem presente que poderia ter salvo Viena — se é que então alguém o poderia —, um estrangeiro quase desconhecido em Viena, eslavo por nascimento, desistiu da tarefa, esmagado como estava pela desconfiança geral. Se tivesse perseverado, podia ter sido linchado como traidor. Messenhauser, o comandante das forças insurrectas, mais escritor de romances do que mesmo oficial subalterno, era totalmente inadequado para a tarefa; e, no entanto, depois de oito meses de lutas revolucionárias, o partido popular ainda não tinha produzido ou atraído um homem de guerra mais capaz do que ele. Deste modo, o combate começou. Os vienenses, tendo em conta os seus meios de defesa totalmente inadequados, tendo em conta a sua completa ausência de preparação militar e de organização nas fileiras, ofereceram a mais heróica resistência. Em muitos lugares, a ordem dada por Bem, quando estava no comando, de “defender aquele posto até ao último homem” foi seguida à letra. Mas a força prevaleceu. As barricadas, uma após outra, foram varridas pela artilharia imperial nas longas e largas avenidas que formam as ruas principais dos subúrbios; e, na tarde do segundo dia de luta, os croatas ocupavam a linha de casas em frente da esplanada da Cidade Velha. Um ataque fraco e desordenado do exército húngaro tinha sido completamente derrotado; e, durante um armistício, enquanto alguns destacamentos na Cidade Velha capitulavam, enquanto outros hesitavam e espalhavam a confusão, enquanto o que restava da Legião Académica preparava novas trincheiras, os imperialistas fizeram uma entrada e, no meio desta desordem geral, a Cidade Velha foi tomada.
As consequências imediatas desta vitória, as brutalidades e execuções em virtude da lei marcial, as crueldades e infâmias inauditas cometidas pelas hordas eslavas deixadas à solta em Viena, são demasiado bem conhecidas para serem aqui pormenorizadas. As consequências ulteriores, o curso inteiramente novo dado aos assuntos alemães pela derrota da revolução em Viena, teremos ocasião de os examinar mais adiante. Ficam dois pontos para serem considerados em conexão com a tomada de Viena. O povo daquela capital tinha dois aliados: os húngaros e o povo alemão. Onde estavam eles na hora da provação?
Vimos que os vienenses, com toda a generosidade de um povo recentemente liberto, se tinham levantado por uma causa que, embora, em última instância, sua, era, numa primeira instância e acima de tudo, dos húngaros. Em vez de aceitar que as tropas austríacas marchassem sobre a Hungria, chamaram sobre si próprios a primeira e mais terrível arremetida. E, enquanto, deste modo, eles vieram para a frente, nobremente, em apoio dos seus aliados, os húngaros, vitoriosos contra Jellachich, mandaram-no sobre Viena e, com a sua vitória, reforçaram a tropa que havia de atacar aquela cidade. Nestas circunstâncias, era claro dever da Hungria apoiar, sem demora e com todas as forças disponíveis, não a Dieta em Viena, não o Comité de Segurança ou qualquer outro órgão oficial em Viena, mas a revolução vienense. E mesmo se a Hungria tivesse esquecido que Viena tinha combatido a primeira batalha da Hungria, devia à sua própria segurança não esquecer que Viena era o único posto avançado da independência húngara e que, depois da queda de Viena, nada podia travar o avanço das tropas imperiais contra si própria. Sabemos agora muito bem o que todos os húngaros podem alegar e alegaram em defesa da sua inactividade durante o bloqueio e assalto de Viena: o estado insuficiente da sua própria força, a recusa da Dieta ou de qualquer outro órgão oficial de Viena em chamá-los, a necessidade de se manter no terreno constitucional e de evitar complicações com o poder central alemão. Mas o facto é que, quanto ao estado insuficiente do exército húngaro, nos primeiros dias após a revolução vienense e a chegada de Jellachich, não havia qualquer necessidade de tropas regulares, uma vez que os soldados regulares austríacos estavam muito longe de se encontrar concentrados; e que um prosseguimento corajoso e implacável da primeira vantagem sobre Jellachich, mesmo sem nada mais do que com a Landsturm(32*) que tinha combatido em Stuhlweissenburg, teria sido suficiente para efectuar uma junção com os vienenses e para adiar para daí a seis meses qualquer concentração de um exército austríaco. Na guerra e, particularmente, na guerra revolucionária, a rapidez de acção até se obter alguma decidida vantagem é a primeira regra e não temos qualquer hesitação em afirmar que, por razões meramente militares, Perczel não devia ter parado antes que se efectuasse a junção com os vienenses. Havia certamente algum risco, mas quem é que alguma vez ganhou uma batalha sem arriscar alguma coisa? E a população de Viena — uma população de quatrocentas mil pessoas — não arriscava ela nada quando chamou sobre si própria as forças que haviam de marchar à conquista de doze milhões de húngaros? O erro militar cometido por esperar até que os austríacos se tivessem reunido e por realizar a frágil demonstração de Schwechat, que acabou, como merecia acabar, com uma derrota inglória — este erro militar envolveu certamente mais riscos do que uma marcha resoluta sobre Viena contra os brigões em debandada de Jellachich teria envolvido.
Mas, diz-se, um tal avanço dos húngaros, a menos que autorizado por algum órgão oficial, teria sido uma violação do território alemão, teria trazido complicações com o poder central de Frankfurt e, acima de tudo, teria sido um abandono da política legal e constitucional que constituía a força da causa húngara. Porquê, se os órgãos oficiais em Viena eram inexistentes! Foi a Dieta, foram os Comités populares que se levantaram em defesa da Hungria ou foi o povo de Viena, e só ele, que pegou em armas para aguentar o impacte da primeira batalha pela independência da Hungria? Não era este ou aquele órgão oficial de Viena que era importante manter — todos estes órgãos podiam e teriam sido muito cedo derrubados com o progresso do desenvolvimento revolucionário — mas era só a ascendência do movimento revolucionário, o progresso ininterrupto da própria acção popular, que estavam em questão e que podiam salvar a Hungria da invasão. Que formas esse movimento revolucionário podia depois tomar, era algo que dizia respeito aos vienenses, não aos húngaros, desde que Viena e a Áustria alemã, em geral, continuassem a ser seus aliados contra o inimigo comum. Mas a questão é de, se neste escrúpulo do governo húngaro em obter uma autorização quase legal não teremos de ver um primeiro sintoma claro daquela pretensão a uma legalidade de procedimentos bastante duvidosa que, se não salvou a Hungria, pelo menos, caiu muito bem, num período posterior, nas audiências da classe média inglesa.
Quanto ao pretexto dos possíveis conflitos com o poder central da Alemanha em Frankfurt, ele é perfeitamente fútil. As autoridades de Frankfurt estavam de facto derrubadas pela vitória da contra-revolução em Viena; teriam sido igualmente derrubadas se a revolução lá tivesse encontrado o apoio necessário para derrotar os seus inimigos. E, finalmente, o grande argumento de que a Hungria não podia abandonar o terreno legal e constitucional, pode muito bem servir para os livre-cambistas britânicos[N148], mas nunca será julgado suficiente aos olhos da história. Suponhamos que o povo de Viena se tinha colado aos meios “legais e constitucionais” no 13 de Março ou no 6 de Outubro, o que é que teria acontecido ao movimento “legal e constitucional” e a todas as gloriosas batalhas que, pela primeira vez, chamaram a atenção do mundo civilizado para a Hungria? O próprio terreno legal e constitucional, sobre que se afirma que os húngaros se moveram em 1848 e 1849, foi conquistado para eles pelo levantamento extremamente ilegal e inconstitucional do povo de Viena em 13 de Março. Não é nosso propósito tratar aqui da história revolucionária da Hungria, mas pode julgar-se conveniente observarmos aqui que é totalmente inútil usar declaradamente meios de resistência meramente legais contra um inimigo que se ri de semelhantes escrúpulos; [particularmente], se acrescentarmos que, senão tivesse sido esta eterna pretensão de legalidade, que Görgey agarrou e voltou contra o governo a devoção do exército de Görgey ao seu general e a ignominiosa catástrofe de Világos[N199] teriam sido impossíveis. E, quando, por fim, para salvar a honra, os húngaros atravessaram o Leitha, nos últimos dias de Outubro de 1848, não foi isso precisamente tão ilegal como qualquer ataque imediato e resoluto teria sido?
É sabido que não guardamos quaisquer sentimentos de inimizade para com a Hungria. Estivemos pelo lado dela durante a luta; estamos autorizados a dizer que nosso jornal, a Neue Rheinische Zeitung[N71], fez mais do que qualquer outro para tornar popular, na Alemanha, a causa da Hungria, ao explicar a natureza da luta entre as raças magiar e eslava e ao acompanhar a guerra húngara numa série de artigos que receberam o cumprimento de serem plagiados em quase todo o livro subsequente sobre o assunto, sem excluir as obras de húngaros de nascimento e de “testemunhas oculares”. Mesmo agora, consideramos a Hungria, em qualquer futura convulsão continental, como aliada natural e necessária da Alemanha. Mas fomos suficientemente severos para com os nossos próprios compatriotas para termos direito a falar acerca dos nossos vizinhos; e, por conseguinte, temos de registar aqui os factos com imparcialidade histórica e temos de dizer que, neste caso particular a bravura generosa do povo de Viena foi não apenas de longe mais nobre, mas também de maior visão do que a cautelosa circunspecção do governo húngaro. E, como alemães, permitam-nos que digamos ainda que não trocaríamos todas as vistosas vitórias e gloriosas batalhas de campanha húngara pelo levantamento espontâneo e sem ajudas e pela heróica resistência do povo de Viena, nosso compatriota, que deu tempo à Hungria para organizar o exército que pôde fazer tão grandes coisas.
O segundo aliado de Viena era o povo alemão. Mas por toda a parte ele estava empenhado na mesma luta do que o vienense. Frankfurt, Baden, Colónia, tinham acabado de ser derrotadas e desarmadas. Em Berlim e em Breslau(33*), o povo andava em guerra com o exército e, diariamente, esperava chegar a vias de facto. Acontecia assim em todo o centro de acção local. Por toda a parte estavam pendentes questões que apenas podiam ser resolvidas pela força das armas; e era agora pela primeira vez que se sentiam seriamente as consequências desastrosas da permanência do antigo desmembramento e descentralização da Alemanha. Em cada Estado, em cada província, em cada cidade, as diferentes questões eram fundamentalmente as mesmas; mas apresentavam-se, por toda a parte, sob diferentes formas e pretextos e, em toda a parte, tinham alcançado diferentes graus de maturidade. Aconteceu, deste modo, que, enquanto em todas as localidades se sentia a gravidade decisiva dos acontecimentos em Viena, em parte alguma, porém, se podia dar um golpe importante com alguma esperança de prestar ajuda aos Vienenses ou de fazer uma diversão a favor deles; e para os ajudar não ficava nada a não ser o Parlamento e o Poder Central em Frankfurt; de todos os lados se apelou para eles, mas o que é que eles fizeram?
O Parlamento de Frankfurt e o filho bastardo que dera à luz por relações incestuosas com a velha Dieta alemã, o chamado Poder Central, aproveitaram o movimento vienense para patentear a sua total nulidade. Esta Assembleia desprezível, como vimos, há muito que tinha sacrificado a sua virgindade e, apesar de muito jovem, já estava a tornar-se grisalha e experiente em todos os artifícios da prostituição tagarela e pseudodiplomática. Dos sonhos e ilusões de poder, da regeneração e unidade alemãs, que no início a tinham invadido, já nada restava a não ser um conjunto de verborreica fraseologia teutónica que era repetido em todas as ocasiões e uma crença firme de cada membro individual na sua própria importância, assim como na credulidade do público. Desfizeram-se da ingenuidade original; os representantes do povo alemão tornaram-se homens práticos, isto é, tinham concluído que quanto menos fizessem e mais pairassem, mais segura seria a sua posição como árbitros do destino da Alemanha. Não era que eles considerassem os seus debates supérfluos; muito pelo contrário, mas tinham descoberto que era melhor deixar em paz todas as questões realmente grandes, uma vez que eram terreno proibido para eles; e, então, como um conjunto de doutores bizantinos do Baixo Império[N34] discutiam ali, com uma importância e uma assiduidade dignas da sorte que, por fim, se abateu sobre eles, dogmas teóricos há muito estabelecidos em toda a parte do mundo civilizado ou questões microscópicas práticas que nunca conduziram a qualquer resultado prático. Por conseguinte, sendo a Assembleia uma espécie de Escola de Lancaster[N200] para mútua instrução dos seus membros e sendo, portanto, muito importante para eles, estavam persuadidos de que ela estava a fazer muito mais do que o povo alemão tinha o direito de esperar e olhavam para quem quer que tivesse a imprudência de lhes pedir que chegassem a qualquer resultado como um traidor à pátria.
Quando a insurreição vienense rebentou, houve uma multidão de interpelações, debates, moções e emendas acerca dela que, é claro, não levaram a coisa nenhuma. O Poder Central tinha de intervir. Mandou dois comissários, os senhores Welcker, o ex-liberal, e Mosle, a Viena. As viagens de D. Quixote e de Sancho Pança são matéria de odisseia, em comparação com os feitos heróicos e maravilhosas aventuras destes dois cavaleiros andantes da unidade alemã. Não ousando ir a Viena, foram maltratados por Windischgrätz, admirados pelo Imperador(34*) idiota e impudentemente burlados pelo ministro Stadion. As suas mensagens e relatórios são, talvez, a única porção das actas de Frankfurt que terá um lugar na literatura alemã; são um perfeito romance satírico, pronto e acabado, e um eterno monumento de vergonha para a Assembleia de Frankfurt e o seu governo.
A Esquerda da Assembleia82 tinha também mandado dois comissários a Viena, a fim de aí sustentar a sua autoridade — os senhores Fröbel e Robert Blum. Blum, quando o perigo se aproximou, julgou correctamente que a grande batalha da revolução alemã iria ser travada ali e, sem hesitar, resolveu arriscar a cabeça pela causa. Fröbel, pelo contrário, era de opinião de que o seu dever era preservar-se a si próprio para as importantes obrigações do seu lugar em Frankfurt. Blum era considerado um dos homens mais eloquentes da Assembleia de Frankfurt, era certamente o mais popular. A sua eloquência não teria aguentado a prova de qualquer assembleia parlamentar experimentada; gostava demasiado das declamações superficiais de um pregador dissidente alemão e os seus argumentos careciam tanto de acúmen filosófico como de conhecimento da matéria de facto, prática. Em política, pertencia à “democracia moderada”, coisa de uma espécie bastante indefinida, benquista, precisamente, em virtude dessa falta de definição dos seus princípios. Mas, com tudo isto, Robert Blum era por natureza um verdadeiro plebeu, ainda que algo polido, e, nos momentos decisivos, o seu instinto plebeu e a sua energia plebeia levaram a melhor sobre as suas convicções e conhecimento políticos indefinidos e, por consequência, indecisos. Em tais momentos, ele elevou-se muito acima do nível habitual das suas capacidades.
Deste modo, em Viena, viu imediatamente que era ali, e não no meio dos pseudo-elegantes debates de Frankfurt, que a sorte do seu país teria de ser decidida; imediatamente se decidiu, desistiu de qualquer ideia de retirada, assumiu um comando na força revolucionária e comportou-se com uma frieza e decisão extraordinárias. Foi ele que retardou por um tempo considerável a tomada da cidade e cobriu de ataque um dos seus lados, deitando fogo à ponte Tabor sobre o Danúbio. Toda a gente sabe como, depois do assalto, ele foi preso, julgado por um tribunal marcial e fuzilado. Morreu como um herói. E a Assembleia de Frankfurt, embora tomada de horror, ainda aceitou este insulto sangrento com uma aparente boa vontade. Aprovou uma resolução que, pela brandura e decência diplomática da sua linguagem, era mais um insulto à tumba do mártir assassinado do que uma reprimenda condenatória contra a Áustria. Mas não era de esperar que esta Assembleia indigna se insurgisse contra o assassínio de um dos seus membros, particularmente, do líder da Esquerda.
Londres, Março de 1852.
XIII — A Assembleia Constituinte prussiana. A Assembleia Nacional >>>
Início da página
Notas de Rodapé:
(31*) Ver capítulo V. (retornar ao texto)
(32*) Em alemão no texto: milícia popular. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(33*) Nome polaco: Wroclaw. (retornar ao texto)
(34*) Fernando I. (retornar ao texto)
Notas de Fim de Tomo:
[N34] Império Romano do Oriente: Estado que em 395 se separou do império romano escravista, com centro em Constantinopla; posteriormente passou a chamar-se Bizâncio; existiu até 1453, ano em que foi conquistado pelos turcos. (retornar ao texto)
[N71] Neue Rheinische Zeitung. Organ der Demokratie (Nova Gazeta Renana. Órgão da Democracia): jornal que se publicou em Colónia sob a direcção de Marx de 1 de Junho de 1848 a 19 de Maio de 1849; Engels fazia parte da redacção. (retornar ao texto)
[N148] Free-traders (livre-cambistas): partidários da liberdade de comércio e da não intervenção do Estado na vida económica. Nos anos 40-50 do século XIX os livre-cambistas constituíram um agrupamento político à parte, que posteriormente entrou para o Partido Liberal. (retornar ao texto)
[N199] Junto de Világos, em 13 de Agosto de 1849, o exército húngaro, comandado por Görgey, rendeu-se às tropas tsaristas enviadas para esmagar a insurreição na Hungria. (retornar ao texto)
[N200] Escolas de Lancaster: escolas primárias para filhos de pais pobres, nas quais se aplicava o sistema de ensino mútuo; tinham o nome do pedagogo inglês Joseph Lancaster (1778-1831). (retornar ao texto)
XIII — A Assembleia Constituinte prussiana.
A Assembleia Nacional
Viena caiu a 1 de Novembro e, a 9 do mesmo mês, a dissolução da Assembleia Constituinte em Berlim mostrou quanto este acontecimento tinha imediatamente reanimado o moral e a força do partido contra-revolucionário por toda a Alemanha.
Os acontecimentos do Verão de 1848 na Prússia contam-se brevemente. A Assembleia Constituinte, ou antes: “a Assembleia eleita com o objectivo de se entender com a Coroa acerca da Constituição” e a sua maioria de representantes do interesse da classe média, tinham desde há muito perdido o direito a toda a estima pública, ao entregarem-se a todas as intrigas da Corte, com medo dos elementos mais enérgicos da,população. Tinham confirmado, ou antes: restaurado, os privilégios obnóxios do feudalismo e, desse modo, traído a liberdade e o interesse do campesinato. Não tinham sido capazes nem de elaborar uma constituição nem, de algum modo, de emendar a legislação geral. Tinham-se ocupado quase exclusivamente de lindas distinções teóricas, de meros formalismos e de questões de etiqueta constitucional. A Assembleia, de facto, era mais uma escola de savoir vivre(35*) parlamentar para os seus membros do que um órgão por que o povo pudesse ter algum interesse. As maiorias estavam, além disso, mui lindamente equilibradas e decidiam-se quase sempre pelos “Centros” flutuantes, cujas oscilações da Direita para a Esquerda e vice versa derrubaram primeiro o ministério de Camphausen e a seguir o de Auerswald e Hansemann. Mas enquanto, deste modo, aqui como em toda a parte, os Liberais deixavam fugir a oportunidade, a Corte reorganizava os elementos da sua força entre a nobreza e a porção mais inculta da população rural, assim como no exército e na burocracia. Depois da queda de Hansemann, formou-se um ministério de burocratas e de oficiais, todos eles reaccionários impenitentes, que, contudo, aparentemente, cedeu perante as exigências do Parlamento; e a Assembleia, agindo segundo o cómodo princípio: “Medidas e não homens”, foi efectivamente enganada ao aplaudir este ministério, enquanto, é claro, não tinha olhos para ver a concentração e organização de forças contra-revolucionárias com q,ue, bastante abertamente, este mesmo governo prosseguia. Por fim, tendo sido dado o sinal pela queda de Viena, o Rei(36*) despediu os ministros e substituiu-os por “homens de acção”, sob a direcção do presente primeiro-ministro, senhor Manteuffel. A Assembleia sonhadora acordou, então, imediatamente, para o perigo, aprovou um voto de não confiança no gabinete, a que se replicou imediatamente com um decreto removendo a Assembleia de Berlim — onde, em caso de um conflito, podia contar com o apoio das massas — para Brandenburg, uma pequena cidade de província inteiramente dependente do governo. A Assembleia declarou, contudo, que não podia ser adiada, removida ou dissolvida, a não ser com o seu próprio consentimento. Entretanto, o general Wrangel entrava em Berlim à cabeça de uns quarenta mil soldados. Numa reunião entre os magistrados municipais e os oficiais da Guarda Nacional foi resolvido não oferecer qualquer resistência. E agora, depois da Assembleia e dos seus constituintes, a burguesia liberal, terem permitido que o partido reaccionário coligado ocupasse toda a posição importante e tirasse das suas mãos quase todos os meios de defesa, começou aquela grande comédia da “resistência passiva e legal” que eles pretendiam que fosse uma gloriosa imitação do exemplo de Hampden e dos primeiros esforços dos Americanos na Guerra da Independência[N201]. Berlim foi declarada em estado de sítio e Berlim permaneceu tranquila; a Guarda Nacional foi dissolvida pelo governo e as suas armas foram entregues com a maior pontualidade. Durante quinze dias, a Assembleia foi perseguida de um lugar de reunião para outro e, em toda a parte, foi dispersada pelos militares, e os membros da Assembleia pediram aos cidadãos que permanecessem calmos. Por fim, tendo o governo declarado a Assembleia dissolvida, aprovou uma resolução que declarava ilegal a cobrança de impostos e os seus membros dispersaram-se pelo país para organizar a recusa aos impostos. Mas descobriram que se tinham lamentavelmente enganado na escolha dos meios. Depois de algumas semanas agitadas, seguidas de severas medidas do governo contra a oposição, toda a gente desistiu da ideia de recusar os impostos para agradar a uma Assembleia defunta que nem sequer tinha tido a coragem de se defender a si própria.
Se, no começo de Novembro de 1848, era já demasiado tarde para tentar a resistência armada ou se uma parte do exército ao encontrar uma oposição séria teria passado para o lado da Assembleia e, por conseguinte, decidido o assunto a favor desta, é uma questão que nunca poderá ser resolvida. Mas, na revolução, como na guerra, é sempre necessário apresentar uma frente forte e aquele que ataca tem vantagem; e, na revolução, como na guerra, é da maior necessidade jogar tudo no momento decisivo, quaisquer que sejam as probabilidades. Não há uma única revolução triunfante na história que não prove a verdade destes axiomas. Ora, quanto à revolução prussiana, o momento decisivo tinha chegado em Novembro de 1848; a Assembleia, oficialmente, à cabeça de todos os interesses revolucionários, nem apresentou uma frente forte, na medida em que recuou a cada avanço do inimigo; nem muito menos atacou, pois escolheu não se defender nem sequer a si própria; e quando o momento decisivo chegou, quando Wrangel, à cabeça de quarenta mil homens, bateu às portas de Berlim, em vez de encontrar, como ele e todos os seus oficiais inteiramente esperavam, cada rua entravada com barricadas, cada janela transformada em seteira, encontrou as portas abertas e as ruas apenas obstruídas pelos pacíficos cidadãos berlinenses gozando com a partida que lhes tinham pregado, ao entregarem-se eles próprios de mãos e pés atados aos soldados estupefactos. É verdade que a Assembleia e o povo, se tivessem resistido, podiam ter sido derrotados; Berlim podia ter sido bombardeada e muitas centenas de pessoas poderiam ter morrido sem que se impedisse a vitória última do partido realista. Mas isto não era razão para que depusessem as armas imediatamente. Uma derrota vendida cara é um facto de tanta importância revolucionária como uma vitória facilmente ganha. As derrotas de Paris, em Junho de 1848, e de Viena, em Outubro, fizeram certamente muito mais para revolucionar a mente do povo destas duas cidades do que as vitórias de Fevereiro e Março. A Assembleia e o povo de Berlim teriam, provavelmente, partilhado a sorte das duas cidades referidas; mas teriam caído gloriosamente e teriam deixado atrás de si, na mente dos sobreviventes, um desejo de desforra que, em tempos revolucionários, é um dos supremos incentivos para a acção enérgica e apaixonada. É evidente que em qualquer luta quem aceita o desafio corre o risco de ser derrotado; mas é essa uma razão para que se confesse ele próprio derrotado e se submeta ao jugo sem desembainhar a espada?
Numa revolução, aquele que comanda uma posição decisiva e se rende, em vez de forçar o inimigo a medir forças com um assalto, merece, invariavelmente, ser tratado como traidor.
O mesmo decreto do rei da Prússia que dissolvia a Assembleia Constituinte proclamava também uma nova Constituição, baseada no projecto que tinha sido feito por uma Comissão daquela Assembleia, mas que, em certos pontos, alargava os poderes da Coroa e, noutros, tornava duvidosos os do Parlamento. Esta Constituição estabelecia duas Câmaras, que deviam reunir-se em breve com o objectivo de a confirmar e de a rever.
Quase não precisamos de perguntar onde é que estava a Assembleia Nacional Alemã durante a luta “legal e pacífica” dos constitucionalistas prussianos. Estava, como habitualmente, em Frankfurt, ocupada em aprovar resoluções muito dóceis contra os procedimentos do governo prussiano e em admirar o “espectáculo imponente da resistência passiva, legal e unânime de todo um povo contra a força bruta”. O governo central mandou comissários a Berlim para intervir entre o Ministério e a Assembleia; mas tiveram a mesma sorte que os seus predecessores em Olmütz e foram delicadamente postos fora. A Esquerda da Assembleia Nacional, isto é, o chamado Partido Radical, também mandou os seus comissários; mas, depois de se terem devidamente convencido a si próprios da total impotência da Assembleia de Berlim e de terem admitido a sua própria e igual impotência, regressaram a Frankfurt para relatar os progressos e para dar testemunho da conduta admiravelmente pacífica da população de Berlim. Não, mais: quando o senhor Bassermann, um dos comissários do governo central, relatou que as últimas medidas restritivas dos ministros prussianos não eram sem fundamento, na medida em que recentemente tinham sido vistos a vaguear pelas ruas de Berlim diversos personagens com ar de selvagem, daqueles que sempre aparecem antes dos movimentos anárquicos (e que a partir daí passaram a ser chamados “personagens bassermannicos”), estes dignos deputados da Esquerda e representantes enérgicos do interesse revolucionário, na realidade, levantaram-se para prestar juramento e testemunhar que isso não acontecia! Deste modo, em menos de dois meses, a total impotência da Assembleia de Frankfurt estava assinalavelmente demonstrada. Não podia haver prova mais gritante de que este órgão era completamente inadequado para a sua tarefa; mais: de que ele não tinha sequer a mais remota ideia de qual era realmente a sua tarefa. O facto de que tanto em Viena como em Berlim estava decidido o destino da revolução, de que em ambas estas capitais as questões mais importantes e vitais estavam resolvidas, sem se ter tido minimamente em conta a existência da Assembleia de Frankfurt — só este facto é suficiente para mostrar que o órgão em questão era um mero clube de debates, composto por um conjunto de ingénuos que permitiam aos governos que os usassem como bonecos parlamentares, exibidos para divertir lojistas e pequenos negociantes de pequenos Estados e pequenas cidades, enquanto isso fosse considerado conveniente para distrair a atenção dessas pessoas. Por quanto tempo isso seria considerado conveniente, é o que veremos em breve. Mas é um facto digno de atenção que, entre todos os homens “eminentes” dessa Assembleia, não houve um sequer que tenha tido a mínima percepção do papel que os faziam representar e que, mesmo até aos dias de hoje, os ex-membros do Clube de Frankfurt invariavelmente têm órgãos de percepção histórica que lhes são muito peculiares.
Londres, Março de 1852.
XIV — A restauração da ordem. A Dieta e as câmaras >>>
Início da página
Notas de Rodapé:
(35*) Em francês no texto; literalmente: saber viver. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(36*) Frederico Guilherme IV. (retornar ao texto)
Notas de Fim de Tomo:
[N201] Em 1636, John Hampden, mais tarde uma das personalidades mais destacadas da revolução burguesa inglesa do século XVII, recusou-se a pagar o “imposto naval”, não aprovado pela Câmara dos Comuns. O processo judicial que lhe foi imposto facilitou o crescimento da oposição ao absolutismo na sociedade inglesa.
A recusa dos americanos, em 1766, de pagar o imposto de selo, introduzido pelo governo inglês, e a táctica do boicote às mercadorias inglesas no início dos anos 70 do século XVIII foram o prólogo da guerra pela independência das colónias da Inglaterra na América do Norte (1775-1783). (retornar ao texto)
XIV — A restauração da ordem.
A Dieta e as câmaras
Os primeiros meses do ano de 1849 foram empregues pelos governos austríaco e prussiano em levar por diante as vantagens alcançadas em Outubro e Novembro passados. A Dieta austríaca, desde a tomada de Viena, tinha continuado com uma existência meramente nominal numa pequena cidade de província da Morávia, chamada Kremsier(37*). Aqui, os deputados eslavos que, com os seus eleitores, tinham sido principalmente um instrumento para retirar o governo austríaco da sua prostração, foram singularmente castigados pela sua traição contra a revolução europeia; assim que o governo recuperou a sua força, tratou a Dieta e a maioria eslava com o maior desprezo e, quando os primeiros êxitos das armas imperiais prenunciaram o fim rápido da guerra húngara, a Dieta foi dissolvida, a 4 de Março, e os deputados foram dispersos pela força militar. Então, por fim, os eslavos viram que tinham sido enganados e, então, gritaram: Vamos a Frankfurt e continuemos lá a oposição que não podemos prosseguir aqui! Mas já era demasiado tarde e o próprio facto de não terem outra alternativa senão ficarem quietos ou juntarem-se à impotente Assembleia de Frankfurt — só este facto era suficiente para mostrar a sua total impotência.
Acabaram, assim, por agora e, provavelmente, para sempre, as tentativas dos eslavos da Alemanha para recuperar uma existência nacional independente. Restos dispersos de numerosas nações, cuja nacionalidade e vitalidade política há muito se haviam extinguido, e que, em consequência, tinham sido obrigadas, durante quase mil anos, a seguir no rasto de uma nação mais poderosa que as tinha conquistado, tal como os Galeses em Inglaterra, os Bascos em Espanha, os Baixo-Bretões em França e, num período mais recente, os Crioulos espanhóis e franceses naquelas porções da América do Norte ultimamente ocupadas pela raça anglo-americana — estas nacionalidades moribundas, os Boémios, os Caríntios, os Dálmatas, etc, tentaram tirar partido da confusão universal de 1848, em ordem a restaurar o seu statu quo político do ano de 800. A história de mil anos devia ter-lhes mostrado que semelhante regressão era impossível; que se todo o território a leste do Elba e do Saale tinha em tempos sido ocupado por eslavos aparentados, este facto apenas prova a tendência histórica e, ao mesmo tempo, o poder físico e intelectual da nação alemã para submeter, absorver e assimilar os seus antigos vizinhos orientais; que esta tendência de absorção por parte dos alemães sempre tinha sido e ainda era um dos meios mais poderosos pelos quais a civilização da Europa ocidental se tinha espalhado pelo Leste deste continente; que só podia cessar quando o processo de germanização tivesse alcançado a fronteira de grandes nações, compactas e intactas, capazes de uma vida nacional independente, como os Húngaros e, em certo grau, os Polacos; e que, por conseguinte, o destino natural e inevitável dessas nações moribundas era de permitir que se completasse este progresso de dissolução e de absorção pelos seus vizinhos mais fortes. Esta não é certamente uma perspectiva muito lisonjeira para a ambição nacional dos sonhadores pan-eslavistas que tinham conseguido agitar uma parte dos Boémios e dos Eslavos do Sul; mas podem eles esperar que a história volte atrás mil anos, a fim de agradar a alguns grupos humanos tísicos que, em toda a parte do território que ocupam estão penetrados e rodeados de alemães que, desde tempos quase imemoriais, não tiveram, para todos os efeitos de civilização outra língua a não ser a alemã e a quem faltam as mais elementares condições de existência nacional, o número e a solidez de um território? Deste modo, o levantamento pan-eslavista, que por toda a parte nos territórios eslavos alemães e húngaros era o pretexto para a restauração na independência de todas essas pequenas nações sem número, chocava-se, por toda a parte, com os movimentos revolucionários europeus, e os eslavos, embora dizendo lutar pela liberdade, encontravam-se invariavelmente (exceptuando a parte democrática dos Polacos) do lado do despotismo e da reacção. Foi assim na Alemanha, foi assim na Hungria e mesmo, aqui e ali, na Turquia. Traidores da causa popular, apoiantes e principais suportes da cabala do governo austríaco, colocaram-se eles próprios, aos olhos de todas as nações revolucionárias, na posição de fora da lei. E, apesar de em parte alguma a massa do povo ter desempenhado algum papel nas pequenas querelas acerca da nacionalidade levantadas pelos dirigentes pan-eslavistas, pela simples razão de que era demasiado ignorante, contudo, nunca será esquecido que, em Praga, numa cidade meia alemã, multidões de fanáticos eslavos aclamaram e repetiram o grito: “Antes o chicote russo do que a liberdade alemã!” Depois do seu primeiro esforço, que se evaporou, em 1848 e depois da lição que o governo austríaco lhes deu, não é provável que seja feita outra tentativa em ulterior oportunidade. Mas se eles tentarem de novo, com pretextos semelhantes, aliar-se à força contra-revolucionária, o dever da Alemanha é claro. Nenhum país num estado de revolução e envolvido numa guerra externa pode tolerar uma Vendée[N202] no seu próprio seio.
Quanto à Constituição proclamada pelo Imperador(38*) ao mesmo tempo que a dissolução da Dieta, não há necessidade de voltar a ela, uma vez que não teve qualquer existência prática e está agora completamente posta de parte. O absolutismo foi restaurado na Áustria, para todos os efeitos e propósitos, desde 4 de Março de 1849.
Na Prússia, as Câmaras reuniram-se em Fevereiro para a ratificação e revisão da nova Carta proclamada pelo Rei. Reuniram-se durante cerca de seis semanas, bastante humildes e dóceis no seu comportamento para com o governo, ainda que não suficientemente preparadas para irem tão longe quanto o Rei e os ministros desejavam que elas fossem. Por conseguinte, assim que uma ocasião conveniente se proporcionou, foram dissolvidas.
Deste modo, tanto a Áustria como a Prússia se tinham visto livres dos entraves do controlo parlamentar. Os governos .concentravam agora em si todo o poder e podiam levar esse poder a exercer-se onde quer que fosse preciso: a Áustria, na Hungria e na Itália; a Prússia, na Alemanha. Porque também a Prússia se estava a preparar para uma campanha pela qual a “ordem” havia de ser restaurada nos pequenos Estados.
Tendo a contra-revolução triunfado agora nos dois grandes centros de acção da Alemanha, em Viena e em Berlim, ficavam apenas os pequenos Estados em que a luta ainda estava indecisa, embora também aí a balança se inclinasse cada vez mais contra o interesse revolucionário. Tal como dissemos, estes pequenos Estados tinham encontrado um centro comum na Assembleia Nacional de Frankfurt. Ora, esta pseudo-Assembleia Nacional, ainda que o seu espírito reaccionário de há muito fosse evidente, a tal ponto que o próprio povo de Frankfurt se havia levantado em armas contra ela, tinha tido, contudo, uma origem de natureza mais ou menos revolucionária; tinha tomado uma posição anormal, revolucionária, em Janeiro; a sua competência nunca tinha sido definida e tinha, finalmente, tomado a decisão — que, contudo, nunca foi reconhecida pelos grandes Estados — de que as suas resoluções tinham força de lei. Nestas circunstâncias e quando o partido monárquico constitucional viu as suas posições invertidas pela recuperação dos absolutistas, não é de admirar que a burguesia monárquica, liberal, de quase toda a Alemanha tivesse depositado as suas últimas esperanças na maioria desta Assembleia, do mesmo modo que os interesses dos pequenos lojistas, o núcleo do partido democrático, na sua angústia crescente, se reuniram em torno da minoria desse mesmo órgão que, na verdade, formava a última falange parlamentar compacta da Democracia. Por outro lado, os governos grandes e, particularmente, o ministério prussiano, cada vez mais encaravam a incompatibilidade de semelhante órgão electivo irregular com o sistema monárquico restaurado da Alemanha e, se não forçaram imediatamente a sua dissolução, foi apenas porque ainda não tinha chegado a altura e porque a Prússia esperava ainda usá-lo primeiro para o prosseguimento dos seus propósitos ambiciosos.
Entretanto, aquela pobre Assembleia caía numa confusão cada vez maior. As suas deputações e comissários tinham sido tratados com o maior desprezo, tanto em Viena como em Berlim; um dos seus membros(39*), apesar da sua imunidade parlamentar, tinha sido executado em Viena como um rebelde comum. Em parte alguma os seus decretos eram respeitados; e se os grandes poderes alguma vez davam por eles, era meramente por meio de notas de protesto que contestavam a autoridade da Assembleia para aprovar leis e resoluções que comprometiam os seus governos. O órgão representativo da Assembleia, o Poder Executivo Central, estava envolvido em querelas diplomáticas com quase todos os gabinetes da Alemanha e, apesar de todos os seus esforços, nem a Assembleia nem o Governo Central puderam levar a Áustria e a Prússia a declarar as suas posições, planos e exigências definitivos. A Assembleia começou, enfim, a ver claramente, pelo menos, que tinha consentido em que todo o poder fugisse das suas mãos, que estava à mercê da Áustria e da Prússia e que se ela entendesse elaborar alguma Constituição federal para a Alemanha tinha de resolver imediatamente a questão e muito seriamente. E muitos dos seus membros vacilantes também viram claramente que tinham sido egregiamente enganados pelos governos. Más, na sua posição impotente, que podiam eles fazer agora? A única [atitude] que os poderia ter salvo teria sido passarem pronta e decididamente para o campo popular; mas o êxito, mesmo deste passo, era mais do que duvidoso; e então, onde estavam, nesta multidão impotente de seres indecisos, de vistas curtas, presunçosos, que quando o eterno ruído dos boatos contraditórios e das notas diplomáticas completamente os atordoava, procuravam a sua única consolação e apoio na garantia perpetuamente repetida de que eram os melhores, os maiores, os homens mais sábios do país e que só eles podiam salvar a Alemanha — onde estavam, dizíamos, entre estas pobres criaturas que um único ano de vida parlamentar tinha transformado em completos idiotas, onde estavam os homens capazes de uma resolução pronta e decidida, quanto mais de uma acção enérgica e consequente?
Por fim, o governo austríaco tirou a máscara. Na sua Constituição de 4 de Março, proclamava a Áustria uma monarquia indivisível, com finanças, sistema de direitos alfandegários e de estabelecimentos militares comuns, afastando, assim, qualquer barreira e distinção entre as províncias alemãs e não alemãs. Esta declaração foi feita contrariando resoluções e artigos da pretendida Constituição federal, que já tinham sido aprovados pela Assembleia de Frankfurt. Era a declaração de guerra que a Áustria lhe fazia e a pobre Assembleia não teve outra alternativa senão aceitá-la. Aceitou o repto no meio de muito barulho, que a Áustria, consciente do seu poder e da total nulidade da Assembleia, bem podia permitir-se deixar passar. E esta preciosa representação do povo alemão, como se intitulava, em ordem a vingar-se deste insulto por parte da Áustria, não encontrou diante de si nada de melhor do que atirar-se, de mãos e pés atados, aos pés do governo prussiano. Por incrível que possa parecer, dobrou o joelho diante dos mesmos ministros que tinha condenado como inconstitucionais e antipopulares e sobre cuja demissão tinha em vão insistido. Os pormenores desta vergonhosa transacção e os acontecimentos tragicómicos que se lhe seguiram constituirão o assunto do nosso próximo artigo.
Londres, Abril de 1852.
XV — O triunfo da Prússia >>>
Início da página
Notas de Rodapé:
(37*) Nome checo: Kromeríz. (retornar ao texto)
(38*) Francisco José I. (retornar ao texto)
(39*) Robert Blum. (retornar ao texto)
Notas de Fim de Tomo:
[N202] Alusão ao motim contra-revolucionário na Vendée (província ocidental da França), desencadeado em 1793 pelos realistas franceses, que utilizaram o campesinato atrasado desta província para a luta contra a revolução francesa. (retornar ao texto)
XV — O triunfo da Prússia
Chegamos agora ao último capítulo da história da Revolução Alemã: o conflito da Assembleia Nacional com os governos dos diferentes Estados, especialmente da Prússia; a insurreição da Alemanha meridional e ocidental e o seu final esmagamento pela Prússia.
Já vimos a Assembleia Nacional de Frankfurt a trabalhar. Já a vimos levar pontapés da Áustria, ser insultada pela Prússia, desobedecida pelos Estados mais pequenos, enganada pelo seu próprio e impotente “Governo” Central que, por sua vez, era o joguete de todos e de cada um dos príncipes do país. Mas, por fim, as coisas começaram a tornar-se ameaçadoras para este órgão legislativo fraco, insípido, vacilante. Foi forçado a chegar à conclusão de que “a sublime ideia da Unidade Alemã estava ameaçada da sua realização”, o que, nem mais nem menos, queria dizer que a Assembleia de Frankfurt e tudo o que ela tivesse feito e estava para fazer haviam, muito provavelmente, de acabar em nada. Por conseguinte, deitou-se seriamente ao trabalho, a fim de produzir, o mais cedo possível, a sua grande obra, a “Constituição Imperial”.
Havia, contudo, uma dificuldade. Que Governo Executivo devia haver? Um Conselho Executivo? Não; pensaram eles na sua sabedoria que isso teria sido fazer da Alemanha uma República. Um “Presidente”? Isso viria a dar no mesmo. Portanto, tiveram que ressuscitar a velha dignidade imperial. Mas — como, é claro, um príncipe teria de ser o Imperador — quem havia ele de ser? Certamente que nenhum dos Dii minorum gentium(40*) de Reuss-Schleiz-Greiz-Lobenstein-Ebersdorf(41*) até à Baviera(42*); nem a Áustria nem a Prússia teriam suportado isso. Mas qual delas? Não há dúvida de que, noutras circunstâncias favoráveis, esta augusta Assembleia estaria reunida ainda até aos dias de hoje para discutir este importante dilema sem ser capaz de chegar a uma conclusão, se o governo austríaco não tivesse cortado o nó górdio, poupando-lhe trabalho.
A Áustria sabia muito bem que, a partir do momento em que pudesse de novo aparecer perante a Europa, com todas as suas províncias submetidas, como um grande e forte poder europeu, a própria lei da gravitação política havia de atrair o resto da Alemanha para a sua órbita, sem a ajuda de qualquer autoridade que uma coroa imperial conferida pela Assembleia de Frankfurt lhe pudesse dar. A Áustria estava, de longe, mais forte, mais livre nos seus movimentos, desde que sacudira a coroa impotente do Império Germânico — uma coroa que impedia a sua própria política independente, enquanto não acrescentava um único iota à sua força, tanto dentro como fora da Alemanha. E supondo que a Áustria não conseguisse manter a sua posição na Itália e na Hungria — então, dissolver-se-ia e seria aniquilada na Alemanha também e nunca poderia pretender reapoderar-se de uma coroa que tinha deixado fugir das mãos quando estava na plena posse da sua força. Por conseguinte, a Áustria declarou-se imediatamente contra todas as ressurreições imperialistas(43*) e exigiu francamente a restauração da Dieta Alemã, o único governo central da Alemanha conhecido e reconhecido pelos tratados de 1815; e, em 4 de Março de 1849, publicou aquela Constituição que não tinha outro significado senão o de declarar a Áustria uma monarquia indivisível, centralizada e independente, distinta mesmo daquela Alemanha que a Assembleia de Frankfurt estava para reorganizar.
Esta aberta declaração de guerra não deixou, na verdade, outra alternativa aos presunçosos de Frankfurt senão a de excluir a Áustria da Alemanha e de criar com o resto desse país uma espécie de Baixo Império[N34], uma “Pequena Alemanha”[N96], cujo manto imperial, bastante coçado, havia de cair sobre os ombros de Sua Majestade da Prússia. Isto era, recorde-se, o renovar de um velho projecto nutrido já há uns seis ou oito anos por um partido de doctrinaires liberais alemães do Sul e do Centro que consideraram como um presente do céu as circunstâncias degradantes em que a sua velha fantasia era agora de novo apresentada como a última “nova jogada” para a salvação do país.
Em conformidade, em Fevereiro e Março de 1849 [a Assembleia] acabou o debate sobre a Constituição Imperial, juntamente com a Declaração dos Direitos e a Lei Eleitoral Imperial; não sem, contudo, ter sido obrigada, em grande número de pontos, a fazer as concessões mais contraditórias — ora ao partido conservador, ou antes: reaccionário, ora às fracções mais avançadas da Assembleia. De facto, era evidente que a liderança da Assembleia, que anteriormente tinha pertencido à Direita e ao Centro-Direita (os conservadores e reaccionários), estava gradualmente a passar, ainda que lentamente, para a Esquerda ou para o lado democrático daquele órgão. A posição bastante dúbia dos deputados austríacos numa Assembleia que tinha excluído o seu país da Alemanha e na qual eles ainda eram chamados para reunir e votar, favoreceu o desfazer do seu equilíbrio; e, deste modo, por finais de Fevereiro, o Centro-Esquerda e a Esquerda encontraram-se, com a ajuda dos votos austríacos, muito geralmente em maioria, enquanto noutros dias a fracção conservadora dos austríacos, de repente e só pelo gozo da coisa, votando com a Direita, fazia pender a balança de novo para o outro lado. Pretendiam com estes súbitos soubresauts(44*) votar a Assembleia ao desprezo, o que, contudo, era perfeitamente desnecessário, uma vez que a massa do povo estava desde há muito convencida da completa vacuidade e futilidade de qualquer coisa vinda de Frankfurt. Pode facilmente imaginar-se que espécime de Constituição era entretanto preparado no meio destes saltos e contra-saltos.
A Esquerda da Assembleia — esta elite e o orgulho da Alemanha revolucionária que julgava ser — estava inteiramente embriagada com os poucos êxitos mesquinhos que obtivera graças à boa vontade, ou antes: à má vontade, de um conjunto de políticos austríacos que agiam por instigação e no interesse do despotismo austríaco. De cada vez que a mínima aproximação com os seus próprios princípios não muito bem definidos obtinha, numa forma homeopaticamènte diluída, uma espécie de sanção por parte da Assembleia de Frankfurt, estes democratas proclamavam que tinham salvo o país e o povo. Estes pobres homens, fracos de espírito, no decurso das suas vidas, geralmente, bastante obscuras, estavam tão pouco acostumados a algo de parecido com o êxito que acreditaram realmente que as suas emendas mesquinhas, aprovadas por uma maioria de dois ou três votos, mudariam a face da Europa. Desde o começo da sua carreira legislativa, tinham-se imbuído, mais do que qualquer outra fracção da Assembleia, daquela doença incurável, o cretinismo parlamentar, uma perturbação que penetra as suas desafortunadas vítimas da convicção solene de que o mundo inteiro, a sua história e futuro, são governados e determinados por uma maioria de votos naquele particular órgão representativo que tem a honra de os contar entre os seus membros e que todas as coisas que se passam fora das paredes da sua câmara — guerras, revoluções, construções de caminhos-de-ferro, colonização de novos continentes inteiros, descobertas de ouro na Califórnia, canais centro-americanos, exércitos russos e tudo o mais que possa ter alguma pequena pretensão a influenciar os destinos da humanidade — não é nada comparado com os incomensuráveis acontecimentos que dependem da questão importante, seja ela qual for, que nesse preciso momento ocupa a atenção da sua ilustre Casa. Foi assim que o partido democrático da Assembleia, ao contrabandear eficazmente algumas das suas panaceias para dentro da “Constituição Imperial”, começou por ficar obrigado a apoiá-la, apesar de, em todos os pontos essenciais, ela contradizer terminantemente os seus próprios princípios frequentemente proclamados; e, por fim, quando esta obra híbrida foi abandonada pelos seus principais autores e lhe foi legada, aceitou a herança e defendeu essa Constituição monárquica, mesmo em oposição a todos os que, então, proclamavam os próprios princípios republicanos que eram os seus.
Tem de confessar-se, porém, que nisto a contradição era meramente aparente. O carácter indeterminado, em si contraditório e imaturo, da Constituição Imperial era a própria imagem das ideias políticas imaturas, confusas e em conflito, destes democráticos senhores. E, se os seus próprios ditos e escritos —na medida em que sabiam escrever — não fossem uma prova suficiente disto, as suas acções forneceriam uma tal prova; pois, entre as pessoas sensatas, é matéria de evidência julgar um homem não pelas suas declarações, mas pelas suas acções; não por aquilo que ele pretende ser, mas por aquilo que faz e por aquilo que realmente é; e os feitos destes heróis da democracia alemã falam de um modo suficientemente eloquente por eles, como pouco a pouco veremos. No entanto, a Constituição Imperial, como todos os seus acessórios e parafernais, foi definitivamente aprovada e, a 28 de Março, o rei da Prússia, por 290 votos contra 248 que se abstiveram e uns 200 que estavam ausentes, foi eleito imperador da Alemanha, minus a Áustria. A ironia histórica era completa; a farsa imperial representada nas ruas de uma Berlim estupefacta, três dias depois da revolução de 18 de Março de 1848[N203], por Frederico Guilherme IV, num estado que, em qualquer outro sítio, o teria feito cair sob a lei antialcoó-lica — esta farsa nojenta, apenas um ano depois, tinha sido sancionada pela pretensa Assembleia Representativa de toda a Alemanha. Foi este, então, o resultado da Revolução Alemã!
Londres, Julho de 1852.
XVI — A Assembleia Nacional e os governos >>>
Início da página
Notas de Rodapé:
(40*)* Em latim no texto; literalmente: deuses menores. Engels refere-se aqui a personagens de segunda ordem. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(41*) Henrique LXXII. (retornar ao texto)
(42*) Faz-se aqui referência ao rei da Baviera Maximiliano II. (retornar ao texto)
(43*) No texto: imperialist ressurrections. Entenda-se: ressurreições imperiais, isto é, do Império. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(44*) Em francês no texto: saltos, piruetas. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
Notas de Fim de Tomo:
[N34] Império Romano do Oriente: Estado que em 395 se separou do império romano escravista, com centro em Constantinopla; posteriormente passou a chamar-se Bizâncio; existiu até 1453, ano em que foi conquistado pelos turcos. (retornar ao texto)
[N96] Em resultado da vitória sobre a França durante a guerra franco-prussiana (1870-1871) surgiu o Império Alemão, do qual foi, no entanto, excluída a Áustria. Daí as expressões “lmpério pequeno-alemão” e “Pequena Alemanha”. A derrota de Napoleão III deu um impulso à revolução em França, que derrubou Luís Bonaparte e levou à instauração da república em 4 de Setembro de 1870. (retornar ao texto)
[N203] Em 21 de Março de 1848, por iniciativa dos ministros burgueses prussianos, foi organizado em Berlim um solene cortejo real acompanhado de manifestações a favor da unificação da Alemanha. Frederico Guilherme IV passou pelas ruas de Berlim com uma braçadeira negra, vermelha e dourada, símbolo da Alemanha unida, e pronunciou discursos pseudopatrióticos. (retornar ao texto)
XVI — A Assembleia Nacional e os governos
A Assembleia Nacional de Frankfurt, depois de ter eleito o Rei da Prússia Imperador da Alemanha (minus a Áustria), enviou uma deputação a Berlim para lhe oferecer a coroa e, em seguida, suspendeu-se. A 3 de Abril, Frederico Guilherme recebeu os deputados. Disse-lhes que, embora aceitasse o direito de preferência sobre todos os outros príncipes da Alemanha que esta votação dos representantes do povo lhe tinha dado, não podia, contudo, aceitar a coroa imperial, na medida em que não estava seguro de que os restantes príncipes reconheciam a sua supremacia e a Constituição Imperial que lhe conferia esses direitos. Os governos da Alemanha, acrescentou ele, deveriam ver se era susceptível de poder ser por eles ratificada. Em todo o caso, Imperador ou não, concluiu, ele sempre se encontraria pronto para erguer o gládio contra o inimigo, tanto externo como interno. Veremos em breve como ele cumpriu a sua promessa de uma maneira bastante desconcertante para a Assembleia Nacional.
Os presunçosos de Frankfurt, após um profundo inquérito diplomático, chegaram por fim à conclusão de que esta resposta equivalia a uma recusa da coroa. Resolveram, então (a 12 de Abril): que a Constituição Imperial era a lei do país e tinha de ser cumprida; e, não vendo diante de si qualquer saída, elegeram um comité de trinta membros para fazer propostas quanto aos meios por que esta Constituição poderia ser posta em vigor.
Esta resolução foi o sinal para o conflito que agora rebentou, entre a Assembleia de Frankfurt e os governos alemães.
As classes médias — e, especialmente, a classe do pequeno comércio —tinham-se declarado todas imediatamente a favor da nova Constituição de Frankfurt. Não podiam esperar mais tempo pelo momento que devia “fechar a revolução”. Na Áustria e na Prússia, a revolução tinha sido encerrada de momento, pela interferência do poder armado; as classes em questão teriam preferido um modo menos violento de realizar essa operação, mas não tinham tido qualquer possibilidade; a coisa estava feita e tinham de conformar-se, resolução que imediatamente tomaram e que seguiram o mais heroicamente possível. Nos pequenos Estados, onde as coisas tinham corrido de um modo comparativamente suave, as classes médias de há muito que tinham sido remetidas para aquela agitação parlamentar espectacular — mas falha de resultados, porque impotente — que lhes era altamente congénita. Os diferentes Estados da Alemanha, considerado cada um separadamente, parecem, portanto, ter atingido aquela nova e definitiva forma que os habilita a entrar doravante na via do desenvolvimento pacífico e constitucional. Ficava apenas uma questão em aberto: a da nova organização política da Confederação Germânica. E considerou-se como uma necessidade resolver imediatamente esta questão, a única que ainda parecia carregada de perigo. Daí a pressão exercida sobre a Assembleia de Frankfurt pelas classes médias, em ordem a incitá-la a ter a Constituição pronta o mais cedo possível; daí a resolução da alta e da baixa burguesia de aceitar e de apoiar esta Constituição, qualquer que ela fosse, a fim de criar sem demora uma situação estável. Por conseguinte, desde o princípio, a agitação a favor da Constituição Imperial teve origem num sentimento reaccionário e cresceu entre as classes que estavam de há muito cansadas da revolução.
Mas havia nisto ainda um outro traço. Os primeiros e fundamentais princípios da futura Constituição Alemã tinham sido votados durante os primeiros meses da Primavera e do Verão de 1848 — num tempo em que a agitação popular ainda era notória. As resoluções então aprovadas — apesar de completamente reaccionárias, na altura — pareciam agora, depois dos actos arbitrários dos governos austríaco e prussiano, extremamente liberais e, mesmo, democráticas. O padrão de comparação tinha mudado. A Assembleia de Frankfurt não podia, sem [incorrer num] suicídio moral, riscar estas disposições anteriormente votadas e moldar a Constituição Imperial sobre aquelas que os governos austríaco e prussiano haviam ditado de espada na mão. Além disso, como vimos, a maioria naquela Assembleia tinha trocado de lugar e o partido liberal e democrático estava a crescer em influência. Portanto, a Constituição Imperial distinguia-se não só pela sua aparentemente exclusiva origem popular, como, ao mesmo tempo, apesar de estar cheia de contradições, ainda era a Constituição mais liberal de toda a Alemanha. O seu maior defeito era não passar de uma folha de papel, sem qualquer poder para impor as suas disposições.
Nestas circunstâncias, era natural que o chamado partido democrático, isto é, a massa da classe do pequeno comércio aderisse à Constituição Imperial. Esta classe sempre tinha sido mais avançada nas suas exigências do que a burguesia liberal monárquica-constitucional; tinha mostrado uma fachada mais ousada, tinha ameaçado muito frequentemente com uma resistência armada, era pródiga nas suas promessas de sacrificar o sangue e a existência na luta pela liberdade; mas já tinha dado muitas provas de que no dia do perigo não estava em parte nenhuma e de que nunca se sentira mais confortável do que no dia a seguir a uma derrota decisiva, quando, estando tudo perdido, tinha ao menos a consolação de saber que, de uma maneira ou de outra, o assunto estava resolvido. Enquanto, por conseguinte, a adesão dos grandes banqueiros, manufactureiros e mercadores tinha um carácter mais reservado, mais como uma simples manifestação a favor da Constituição de Frankfurt, a classe imediatamente atrás deles, os nossos valentes lojistas democratas, avançou em grande estilo e, como é hábito, proclamou que preferia verter a última gota de sangue do que deixar cair por terra a Constituição Imperial.
Sustentada por estes dois partidos, os adeptos burgueses da realeza constitucional e os lojistas mais ou menos democráticos, a agitação a favor do estabelecimento imediato da Constituição Imperial ganhou rapidamente terreno e encontrou a sua expressão mais poderosa nos Parlamentos dos diversos Estados. As Câmaras da Prússia, de Hannover, da Saxónia, de Baden, de Württemberg, declararam-se a favor dela. A luta entre os governos e a Assembleia de Frankfurt assumiu um aspecto ameaçador.
Os governos agiram, contudo, rapidamente. As Câmaras prussianas foram dissolvidas, anticonstitucionalmente, uma vez que tinham de rever e de confirmar a Constituição; rebentaram tumultos em Berlim, provocados intencionalmente pelo governo; e, no dia seguinte, em 28 de Abril, o Ministério Prussiano publicou uma nota-circular em que a Constituição Imperial era tida como um documento altamente anárquico e revolucionário, que os governos da Alemanha tinham de remodelar e de purificar. Deste modo, a Prússia negava, preto no branco, aquele poder constituinte soberano de que os sábios de Frankfurt sempre se tinham vangloriado, mas que nunca tinham estabelecido. Deste modo, foi chamado a reunir-se um Congresso de Príncipes[N204] uma renovação da velha Dieta Federal, para ajuizar daquela Constituição que já tinha sido promulgada como lei. E, ao mesmo tempo, a Prússia concentrou tropas em Kreuznach, a três dias de marcha de Frankfurt, e apelou para os Estados mais pequenos no sentido de que seguissem o seu exemplo dissolvendo também as suas Câmaras logo que dessem a sua adesão à Assembleia de Frankfurt. Este exemplo foi rapidamente seguido por Hannover e pela Saxónia.
Era evidente que uma decisão da luta pela força das armas não podia ser evitada. A hostilidade dos governos, a agitação entre o povo, mostravam-se diariamente com cores mais carregadas. Por toda a parte, os militares eram trabalhados por cidadãos democratas e, no sul da Alemanha, com grande sucesso. Grandes comícios de massas eram realizados por toda a parte, aprovando resoluções de apoio à Constituição Imperial e à Assembleia Nacional, se fosse caso disso, com a força das armas. Em Colónia, teve lugar, com o mesmo objectivo, uma reunião de deputados de todos os conselhos municipais da Prússia Renana. No Palatinado, em Bergen, Fulda, Nuremberg, em Odenwald, os camponeses reuniram-se em multidões e exaltaram-se até ao entusiasmo. Ao mesmo tempo, a Assembleia Constituinte de França dissolvia-se e as novas eleições eram preparadas no meio de uma agitação violenta, enquanto na fronteira oriental da Alemanha os Húngaros, no espaço de um mês, com uma sucessão de brilhantes vitórias, tinham repelido a maré da invasão austríaca do Theiss até ao Leitha, esperando-se de dia para dia que tomassem Viena de assalto. Por conseguinte, estando a imaginação popular excitada de todos os lados ao mais alto grau e definindo-se cada dia mais claramente a política agressiva dos governos, não se podia evitar uma colisão violenta e só a imbecilidade cobarde se podia persuadir a si própria de que a luta havia de se resolver pacificamente. Mas esta imbecilidade cobarde estava muito extensamente representada na Assembleia de Frankfurt.
Londres, Julho de 1852.
XVII — Insurreição >>>
Início da página
Notas de Fim de Tomo:
[N204] Trata-se da conferência convocada para rever a chamada constituição imperial. Em resultado da conferência, em 26 de Maio de 1849 foi concluído um acordo (“união dos três reis”), entre os reis da Prússia, da Saxónia e de Hannover. A “união” era uma tentativa da monarquia prussiana para alcançar a hegemonia na Alemanha, visto que o regente do Império devia ser o rei da Prússia. No entanto, sob a pressão da Áustria e da Rússia, a Prússia foi obrigada a retroceder e, logo em Novembro de 1850, a renunciar à “união”. (retornar ao texto)
XVII — Insurreição
O conflito inevitável entre a Assembleia Nacional de Frankfurt e o governo dos Estados da Alemanha eclodiu, por fim, em hostilidades abertas nos primeiros dias de Maio de 1849. Os deputados austríacos, chamados pelo seu governo, tinham já deixado a Assembleia e voltado para casa, à excepção de poucos membros do partido da Esquerda ou democrático. A grande massa dos membros conservadores, consciente da volta que as coisas estavam para dar, demitiu-se antes mesmo que os respectivos governos lhes tivessem pedido para o fazer. Por conseguinte, mesmo independentemente das causas expostas nos artigos anteriores para fortalecer a influência da Esquerda, a mera deserção dos seus lugares por parte dos membros da Direita bastava para transformar a velha minoria em maioria da Assembleia. A nova maioria — que, anteriormente, em tempo algum tinha alguma vez sonhado em ter essa sorte — tinha aproveitado o seu lugar nas bancadas da oposição para arengar contra a fraqueza, a indecisão, a indolência da velha maioria e do seu Lugar-Tenente Imperial. Agora, subitamente, eles eram chamados a substituir aquela velha maioria. Tinham agora de mostrar o que eram capazes de fazer. Claro que o caminho deles teria de ser um caminho de energia, de determinação, de actividade. Eles, a elite da Alemanha, seriam, em breve, capazes de fazer andar para diante o senil Lugar-Tenente do Império e os seus vacilantes ministros e, no caso de isso ser impossível, derrubariam — disso não poderia haver dúvida — pela força do direito soberano do povo, esse governo impotente e substituí-lo-iam por um Executivo enérgico, infatigável, que asseguraria a salvação da Alemanha. Coitados! o regime deles — se regime se pode chamar a uma situação em que ninguém obedece — era uma coisa ainda mais ridícula do que o regime dos seus predecessores.
A nova maioria declarou que, apesar de todos os obstáculos, a Constituição Imperial tinha de ser aplicada e imediatamente; que em 15 de Julho próximo o povo devia eleger os deputados à nova Câmara dos Representantes e que essa Câmara devia reunir-se em Frankfurt a 22 de Agosto seguinte. Ora, isto era uma aberta declaração de guerra àqueles governos que não tinham reconhecido a Constituição Imperial, à frente dos quais estavam a Prússia, a Áustria, a Baviera, que compreendiam mais de três quartos da população alemã; uma declaração de guerra que foi por eles rapidamente aceite. Também a Prússia e a Baviera chamaram os deputados que dos seus territórios tinham enviado a Frankfurt e apressaram os preparativos militares contra a Assembleia Nacional; enquanto, por outro lado, as manifestações do partido democrático (fora do Parlamento) a favor da Constituição Imperial e da Assembleia Nacional adquiriam um carácter mais turbulento e violento e a massa dos trabalhadores, conduzida pelos homens do partido mais extremo, estava pronta para pegar em armas por uma causa que, se não era a sua, pelo menos lhe dava a oportunidade de, de algum modo, se aproximar dos seus objectivos, ao livrar a Alemanha dos seus velhos entraves monárquicos. Por conseguinte, por toda a parte, o povo e os governos estavam em conflito acerca deste assunto’; a explosão era inevitável; a mina estava carregada e bastava uma faísca para a fazer rebentar. A dissolução das Câmaras na Saxónia, a chamada da Landwehr (reserva militar) na Prússia, a resistência aberta dos governos à Constituição Imperial, foram essas faíscas; caíram e logo imediatamente o país se transformou numa fogueira. Em Dresden, a 4 de Maio, o povo tomou vitoriosamente posse da cidade e expulsou o Rei(45*), enquanto todos os distritos das redondezas enviavam reforços aos insurrectos. Na Prússia Renana e na Vestefália, a Landwehr recusou-se a marchar, apoderou-se dos arsenais e armou-se para defesa da Constituição Imperial. No Palatinado, o povo apoderou-se dos funcionários do governo bávaro e dos dinheiros públicos e instituiu um Comité de Defesa que colocou a província sob a protecção da Assembleia Nacional. No Wiirttemberg, o povo obrigou o Rei(46*) a reconhecer a Constituição Imperial e, em Baden, o exército, unido ao povo, forçou o Grão-Duque(47*) a fugir e estabeleceu um governo provisório. Noutras partes da Alemanha, o povo não esperava mais do que um sinal decisivo da Assembleia Nacional para se levantar em armas e se pôr à sua disposição.
A posição da Assembleia Nacional era muito mais favorável do que se poderia ter esperado depois da sua ignóbil carreira. A metade ocidental da Alemanha tinha pegado em armas a seu favor; os militares estavam, por toda a parte, vacilantes; nos Estados mais pequenos, eram indubitavelmente favoráveis ao movimento. A Áustria estava prostrada pelo avanço vitorioso dos Húngaros e a Rússia — essa força de reserva dos governos alemães — estava a empregar todos os seus meios para apoiar a Áustria contra os exércitos magiares. Faltava apenas submeter a Prússia; e, com as simpatias revolucionárias que existiam nesse país, havia certamente uma oportunidade de atingir esse fim. Tudo dependia, então, da conduta da Assembleia.
Ora a insurreição é uma arte, tanto como a guerra ou qualquer outra, sujeita a certas regras de procedimento que, se forem descuradas, produzirão a ruína do partido que as descurar. Essas regras, deduções lógicas da natureza dos partidos e das circunstâncias com que tem de se lidar num tal caso, são tão lhanas e simples que a curta experiência de 1848 tornaram os alemães bastante bem familiarizados com elas. Em primeiro lugar, nunca brincar à insurreição a não ser que se esteja completamente preparado para encarar as consequências da brincadeira. A insurreição é um cálculo com grandezas muito indefinidas, cujo valor pode mudar todos os dias; as forças adversárias têm toda a vantagem da organização, da disciplina e do hábito da autoridade; a menos que contra elas se tragam fortes probabilidades, é-se derrotado e arruinado. Em segundo lugar, uma vez entrado no movimento insurreccional, agir com a maior determinação e na ofensiva. A defensiva é a morte de todo o levantamento armado; está perdido antes de ele próprio se medir com os inimigos. Surpreender os antagonistas enquanto as suas forças estão dispersas, preparar novos êxitos, ainda que pequenos, mas diários; manter o moral ascendente que o primeiro levantamento vitorioso forneceu; reunir, deste modo, do nosso lado, aqueles elementos vacilantes que sempre seguem o impulso mais forte e que sempre procuram o lado mais seguro; obrigar os inimigos a retirar antes de poderem reunir as suas forças contra nós; das palavras de Danton, o maior mestre da política revolucionária até hoje conhecido: de l’audace, de l’audace, encore de l’audace!(48*)
Que deveria, então, fazer a Assembleia Nacional de Frankfurt se quisesse escapar à ruína certa de que estava ameaçada? Primeiro que tudo, ver claramente a situação e convencer-se de que não havia agora outra alternativa do que: ou submeter-se incondicionalmente aos governos ou abraçar a causa da insurreição armada sem reserva ou hesitação. Em segundo lugar, reconhecer publicamente todas as insurreições que já haviam rebentado e apelar para que, por toda a parte, o povo pegasse em armas em defesa da representação nacional, pondo fora da lei todos os príncipes, ministros e outros, que ousassem opor-se ao povo soberano representado pelos seus mandatários. Em terceiro lugar, depor imediatamente o Lugar-Tenente Imperial Alemão, criar um Executivo forte, activo, sem escrúpulos, chamar a Frankfurt tropas insurreccionais para sua imediata protecção, fornecendo, assim, ao mesmo tempo, um pretexto legal para o alastramento da insurreição, organizar num corpo compacto todas as forças à sua disposição e, em suma, tirar proveito, rapidamente e sem hesitar, de todos os meios disponíveis para fortalecer a sua posição e enfraquecer a dos seus opositores.
De tudo isto, os virtuosos democratas da Assembleia de Frankfurt fizeram precisamente o contrário. Não contentes com deixarem as coisas tomar o curso que queriam, estes dignos senhores foram ao ponto de suprimirem, pela sua oposição, todos os movimentos insurreccionais que se estavam a preparar. Assim agiu, por exemplo, o senhor Karl Vogt em Níirnberg. Permitiram que as insurreições da Saxónia, da Prússia Renana, da Vestefália, fossem suprimidas sem qualquer outra ajuda que não tenha sido um protesto póstumo, sentimental, contra a violência sem sentimentos do governo prussiano. Mantiveram relações diplomáticas secretas com as insurreições da Alemanha do Sul, mas nunca lhes deram o apoio do seu reconhecimento aberto. Sabiam que o Lugar-Tenente do Império estava do lado dos governos e, contudo, apelaram para ele, que nunca se mexeu, contra as intrigas desses governos. Os ministros do Império, velhos conservadores, ridicularizavam esta Assembleia impotente em cada sessão e eles consentiam. E, quando Wilhelm Wolff, um deputado da Silésia e um dos editores da Nova Gazeta Renana, apelou para que pusessem fora da lei o Lugar-Tenente do Império(49*) — que não era, como ele justamente disse, senão o primeiro e maior traidor do Império — foi vaiado pela indignação unânime e virtuosa daqueles democratas revolucionários! Em suma, continuaram a conversar, a protestar, a proclamar, a pronunciar, mas nunca tiveram a coragem nem o senso de agir; enquanto as tropas hostis dos governos se aproximavam cada vez mais e o seu próprio Executivo, o Lugar-Tenente do Império, conspirava atarefadamente com os príncipes alemães para a sua rápida destruição. Foi assim que mesmo o último vestígio de consideração foi perdido por esta Assembleia desprezível; os insurrectos, que se tinham levantado para a defender, deixaram de se preocupar mais com ela e quando, por fim, acabou de um modo vergonhoso, como veremos, morreu sem que ninguém desse pela sua partida desonrosa.
Londres, Agosto de 1852.
XVIII — Pequenos negociantes >>>
Início da página
Notas de Rodapé:
(45*) Frederico Augusto II. (retornar ao texto)
(46 *) Guilherme I. (retornar ao texto)
(47 *) Leopoldo. (retornar ao texto)
(48*) Em francês no texto: “Audácia, audácia e mais audácia!” (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(49*) João. (retornar ao texto)
XVIII — Pequenos negociantes
No nosso último artigo, mostrámos que a luta entre os governos alemães, de um lado, e o Parlamento de Frankfurt, do outro, tinha ultimamente adquirido um tal grau de violência que, nos primeiros dias de Maio, uma grande parte da Alemanha irrompeu numa insurreição aberta: primeiro Dresden, depois o Palatinado Bávaro, partes da Prússia Renana e, por fim, Baden.
Em todos os casos, o real corpo combativo dos insurrectos, o corpo que primeiro pegou em armas e travou batalha com as tropas, consistia nas classes trabalhadoras das cidades. Uma parte da população mais pobre do campo, operários agrícolas e pequenos agricultores, juntou-se-lhes, geralmente, após o efectivo estalar do conflito. A maioria dos jovens de todas as classes, abaixo da classe capitalista, podia encontrar-se, pelo menos, durante algum tempo, nas fileiras dos exércitos insurrectos, mas este agregado bastante indiscriminado de jovens muito cedo diminuiu, à medida que o aspecto das coisas tomava um ar algo sério. Os estudantes, particularmente, esses “representantes do intelecto”, como a si mesmos gostavam de se intitular, foram os primeiros a abandonar os seus postos, a menos que fossem retidos pela promoção à categoria de oficial, para a qual, é claro, muito raramente possuíam alguma qualificação.
A classe operária entrou nesta insurreição tal como teria entrado em qualquer outra que prometesse ou remover alguns obstáculos no seu avanço em direcção ao domínio político e à revolução social ou, pelo menos, ligar as classes mais influentes mas menos corajosas da sociedade a uma via mais decidida e revolucionária do que até então tinham seguido. A classe operária pegou em armas com um pleno conhecimento de que se tratava de uma questão que, nas suas implicações directas, não era sua; mas seguiu a sua única verdadeira política: não permitir a nenhuma classe que se tivesse erguido sobre os seus ombros (como a burguesia tinha feito em 1848) que fortalecesse o seu governo de classe, sem ao menos abrir para a classe operária um campo conveniente para a luta pelos seus próprios interesses; e, em qualquer caso, levar as coisas a uma crise em que: ou a nação estivesse plena e irresistivelmente lançada na via revolucionária ou, então, o statu quo de antes da revolução fosse o mais possível restaurado e, assim, se tornasse inevitável uma nova revolução. Em ambos os casos, as classes trabalhadoras representavam os interesses reais e bem compreendidos da nação inteira, ao acelerar tanto quanto possível aquela via revolucionária que se tornou agora uma necessidade histórica para as velhas sociedades da Europa civilizada, antes que qualquer delas possa de novo aspirar a um desenvolvimento mais calmo e regular dos seus recursos.
Quanto ao povo do campo que se juntou à insurreição, foi principalmente lançado nos braços do partido revolucionário, em parte, pelo peso relativamente grande dos impostos e, em parte, pelas cargas feudais que pesavam sobre ele. Sem qualquer iniciativa própria, constituía a cauda das outras classes empenhadas na insurreição, oscilando entre os operários, de um lado, e a classe dos pequenos negociantes, do outro. A sua própria posição social privada decidia, em quase todos os casos, para que lado se voltavam; o trabalhador agrícola apoiava, em geral, o artesão da cidade, o pequeno agricultor estava inclinado a andar de braço dado com o pequeno lojista.
Esta classe de pequenos negociantes, para cuja grande importância e influência já chamámos várias vezes a atenção, pode ser considerada como a classe dirigente da insurreição de Maio de 1849. Não estando, desta vez, nenhuma das grandes cidades da Alemanha entre os centros de movimento, a classe dos pequenos negociantes, que nas cidades pequenas e médias, sempre predomina, encontrou os meios de ter a direcção do movimento nas mãos. Vimos, aliás, que nesta luta pela Constituição Imperial e pelos direitos do Parlamento alemão estavam em jogo os interesses desta classe peculiar. Os governos provisórios formados em todos os distritos insurrectos representavam na maioria de cada um deles esta camada do povo e o ponto até onde foram pode, por conseguinte, ser razoavelmente tomado como medida daquilo que a pequena burguesia alemã é capaz — capaz, como veremos, de mais nada do que de arruinar o movimento que se entregue nas suas mãos.
A pequena burguesia, grande em jactância, é muito impotente para a acção e muito tímida em arriscar o que quer que seja. O carácter mesquin(50*) das suas transacções comerciais e das suas operações de crédito tende eminentemente a impregnar o seu carácter de uma falta de energia e de espírito empreendedor; é, então, de esperar que qualidades- semelhantes marquem a sua carreira política. Em conformidade, a pequena burguesia encorajou a insurreição com grandes palavras e grandes alardes acerca do que iria fazer; apressou-se a apoderar-se do poder, assim que a insurreição, muito contra a sua vontade, rebentou; empregou esse poder sem outro propósito que não fosse destruir os efeitos da insurreição. Onde quer que um conflito armado tivesse levado as coisas a uma crise séria, os lojistas ficavam atemorizados’com a situação perigosa que lhes era criada; atemorizados com o povo que tinha tomado a sério os seus grandiloquentes apelos às armas; atemorizados com o poder caído, assim, nas suas próprias mãos; atemorizados, acima de tudo, com as consequências, para si próprios, para as suas posições sociais, para as suas fortunas, da política em que eram forçados a comprometer-se. Não era de esperar que arriscassem “a vida e a propriedade”, como costumavam dizer, pela causa da insurreição? Não eram eles obrigados a tomar posições oficiais na insurreição, em virtude das quais, em caso de derrota, corriam o risco de perder o seu capital? E, em caso de vitória, não tinham eles a certeza de serem imediatamente demitidos e de verem toda a sua política subvertida pelos proletários vitoriosos que formavam o corpo principal do seu exército de combate? Colocada, assim, perante perigos opostos que a rodeavam de todos os lados, a pequena burguesia não soube voltar o seu poder noutra direcção que não fosse a de deixar as coisas correr ao acaso, pelo que, é claro, se perdeu aquela pequena oportunidade de êxito que poderia ter havido e, assim, se arruinou, completamente, a insurreição. A sua política, ou antes: falta de política, era, por toda a parte, a mesma e, por conseguinte, as insurreições de Maio de 1849, em todas as partes da Alemanha, foram cortadas todas segundo o mesmo figurino.
Em Dresden, a luta manteve-se nas ruas da cidade durante quatro dias. Os lojistas de Dresden, a “guarda comunal”, não só não lutaram como, em muitos casos, favoreceram o procedimento das tropas contra os insurrectos. Estes consistiam de novo, quase exclusivamente, em operários dos distritos manufactureiros dos arredores. Encontraram um comandante capaz e com sangue-frio no refugiado russo Mikhaíl Bakúnine, que foi depois feito prisioneiro e está agora encarcerado nos calabouços de Munkacs(51*), na Hungria. A intervenção de numerosas tropas prussianas esmagou esta insurreição.
Na Prússia Renana, a luta efectiva foi de pequena importância. Sendo todas as grandes cidades fortalezas comandadas por cidadelas, apenas podia haver escaramuças por parte dos insurrectos. Assim que um número suficiente de tropas foi reunido, foi posto fim à oposição armada.
No Palatinado e em Baden, pelo contrário, uma rica e fértil província e um Estado inteiro caíram nas mãos da insurreição. Dinheiro, armas, soldados, provisões de guerra, tudo estava pronto para ser usado. Os soldados do exército regular juntaram-se eles próprios aos insurrectos; Mais: em Baden, estavam na primeira linha. As insurreições na Saxónia e na Prússia Renana sacrificaram-se a si próprias a fim de que se ganhasse tempo para a organização deste movimento do Sul da Alemanha. Nunca houve uma posição tão favorável para uma insurreição provincial e parcial como esta. Esperava-se uma revolução em Paris, os Húngaros estavam às portas de Viena, em todos os Estados do Centro da Alemanha, não apenas o povo, mas mesmo as tropas, estavam fortemente a. favor da insurreição e só queriam uma oportunidade para abertamente se juntarem a ela. E, contudo, o movimento, uma vez caído nas mãos da pequena burguesia, foi arruinado logo desde o seu começo. Os dirigentes pequeno-burgueses, particularmente, de Baden — com o senhor Brentano à cabeça — nunca se esqueceram de que, ao usurparem o lugar e as prerrogativas do soberano “legal”, o Grão-Duque, estavam a cometer alta traição. Sentaram-se nos seus cadeirões ministeriais com a consciência da criminalidade nos seus corações. O que é que se pode esperar de cobardes destes? Não apenas abandonaram a insurreição à sua própria espontaneidade descentralizada e, portanto, ineficaz, como fizeram efectivamente tudo o que estava no seu poder para tirar o aguilhão ao movimento, para o desmobilizar, para o destruir. E conseguiram-no, graças ao apoio zeloso daquela classe profunda de políticos, os heróis “democráticos” da pequena burguesia, que pensaram que estavam efectivamente a “salvar o país”, quando consentiam em deixar-se levar por uns quantos homens de uma casta mais esperta, como Brentano.
No que diz respeito aos combates, nunca houve operações militares levadas a cabo de uma maneira mais negligente, mais tola, do que com o general-em-chefe de Baden, Sigel, um ex-tenente do exército regular. Lançou-se a confusão em tudo, perdeu-se toda a boa oportunidade, todo o momento precioso foi desperdiçado, com o planeamento de projectos colossais, mas impraticáveis, até que, quando, por fim, o talentoso polaco Mieroslawski tomou o comando, o exército, estava desorganizado, derrotado, desmoralizado, mal abastecido, confrontado com um inimigo quatro vezes mais numeroso e, com tudo isto, não pôde fazer mais do que travar, em Waghäusel, uma batalha gloriosa, mas mal sucedida, empreender uma retirada inteligente, oferecer um último combate sem esperança sob as muralhas de Rastatt, e dar-se por vencido. Tal como em toda a guerra insurreccional, onde nos exércitos há uma mistura de soldados bem preparados e de recrutas inexperientes, houve, no exército revolucionário, muito heroísmo e muito pânico indigno de soldados, frequentemente inconcebível. Mas, apesar de imperfeito, como não podia deixar de ser, teve pelo menos a satisfação de um número quatro vezes superior não ter sido considerado suficiente para o pôr em debandada e de cem mil soldados regulares, numa campanha contra vinte mil insurrectos, o ter tratado militarmente com tanto respeito como se tivessem tido de lutar contra a Velha Guarda de Napoleão.
A insurreição tinha rebentado em Maio; em meados de Julho de 1849 estava inteiramente dominada e a primeira revolução alemã estava encerrada.
XIX — O encerramento da insurreição
Enquanto o Sul e o Oeste da Alemanha estavam em insurreição aberta e enquanto, desde a abertura das hostilidades em Dresden até à capitulação em Rastatt, os governos levaram bastante mais de dez semanas a apagar esta última fogueira da primeira Revolução Alemã, a Assembleia Nacional desaparecia da cena política sem que se desse pela sua partida.
Deixámos este augusto órgão em Frankfurt, perplexo com os insolentes ataques dos governos à sua dignidade, com a impotência e o desleixo traiçoeiro do Poder Central que ele próprio tinha criado, com os levantamentos da classe do pequeno comércio em sua defesa e da classe operária com um fim último mais revolucionário. A desolação e o desespero reinavam de um modo supremo, entre os seus membros; os acontecimentos tinham imediatamente assumido uma forma tão definida e decisiva que, em poucos dias, as ilusões destes legisladores cultos, quanto ao seu poder e influência reais, estavam completamente desfeitas. Os conservadores, ao sinal dos seus governos, tinham-se já retirado de um órgão que, doravante, não poderia mais existir, a não ser como um desafio às autoridades constituídas. Os liberais, em total atrapalhação, desistiram da causa; também eles abandonaram os seus lugares de representantes. Senhores deputados debandaram às centenas. O número tinha decrescido tão rapidamente dos 800 ou 900 que eram que, agora, 150 e, poucos dias depois 100, eram declarados quorum. E mesmo a estes era difícil fazer a chamada, ainda que todo o partido democrático tivesse permanecido.
O caminho a seguir pelos remanescentes de um Parlamento era suficientemente claro. Só tinham de se colocar aberta e decididamente do lado da insurreição, de lhe dar, por esse facto, toda a força legal que lhe podiam conferir, enquanto recebiam imediatamente um exército para sua própria defesa. Tinham de intimar o Poder Central a cessar imediatamente todas as hostilidades; e se, como era previsível, este Poder não conseguisse ou não quisesse fazê-lo, tinham de o depor imediatamente e de pôr no seu lugar outro governo mais enérgico. Se não se podiam trazer tropas insurrectas para Frankfurt (o que, no começo, quando os governos dos Estados se encontravam pouco preparados e ainda hesitantes, poderia ter sido facilmente feito), então, a Assembleia podia ter-se transferido imediatamente para o próprio centro do distrito insurrecto. Tudo isto, feito imediata e resolutamente, não mais tarde do que meados ou fins de Maio, poderia ter criado oportunidade, tanto para a insurreição como para a Assembleia Nacional.
Mas não era de esperar um caminho tão determinado por parte dos representantes da lojocracia alemã. Estes aspirantes a estadistas não estavam de. modo algum inteiramente libertos das suas ilusões. Aqueles membros que tinham perdido a sua crença fatal na força e inviolabilidade do Parlamento já tinham dado aos calcanhares; os democratas, que permaneciam, não estavam facilmente convencidos a desistir dos sonhos de poder e de grandeza que tinham acalentado durante doze meses. Fiéis à linha que até então tinham seguido, recuaram perante qualquer acção decisiva até que qualquer hipótese de êxito, mais: qualquer hipótese de sucumbir, pelo menos, com as honras da guerra, tivesse desaparecido. Então, a fim de desenvolver uma espécie de actividade artificial, importuna, cuja completa impotência, acrescentada às suas altas pretensões, não podia senão estimular a comiseração e o ridículo, continuaram a dirigir resoluções, alocuções e requerimentos a um Lugar-Tenente Imperial, que nem sequer tomava conhecimento deles, e a ministros que estavam abertamente coligados com o inimigo. E quando, por fim, Wilhelm Wolff — eleito membro por Striegau(52*), um dos editores da Nova Gazeta Renana, o único homem realmente revolucionário em toda a Assembleia — lhes disse que, se eles falavam a sério, faziam melhor em desistir de conversas e de declarar imediatamente o Lugar-Tenente Imperial, principal traidor do país, fora da lei, toda a virtuosa indignação reprimida destes senhores parlamentares rebentou, então, com uma energia que eles nunca tinham tido, quando o governo acumulou sobre eles insulto atrás de insulto. É claro, porque a proposta de Wolff eram as primeiras palavras sensatas pronunciadas dentro dos muros da Igreja de São Paulo[N205]; é claro, porque era, precisamente a coisa que tinha que ser feita — e uma linguagem clara como esta, indo tão directamente ao assunto, não podia senão insultar um conjunto de sentimentais que só estavam resolvidos à irresolução e que, sendo demasiado cobardes para agir, tinham decidido, de uma vez por todas, que não fazendo nada, estavam a fazer exactamente o que devia ser feito. Qualquer palavra que esclarecesse, como uma iluminação, a nebulosidade enfatuada, mas intencional, dos seus espíritos, qualquer insinuação que fosse apta a conduzi-los para fora do labirinto em que se obstinavam a conservar-se o maior tempo possível, qualquer concepção clara das coisas tal como efectivamente estavam, era, obviamente, um crime contra a majestade desta Assembleia Soberana.
Pouco tempo depois da posição dos senhores deputados se ter tornado insustentável em Frankfurt, apesar das resoluções, apelos, interpelações e proclamações, retiraram, mas não para os distritos sublevados; isso teria sido um passo demasiado resoluto. Foram para Stuttgart, onde o governo de Württemberg mantinha uma espécie de neutralidade na expectativa. Aí, finalmente, declararam que o Lugar-Tenente do Império estava destituído do seu poder e elegeram uma Regência de cinco membros de entre o seu próprio corpo. Esta Regência fez imediatamente aprovar uma lei da milícia que, efectivamente, foi enviada, na forma devida, a todos os governos da Alemanha. A eles, aos precisos inimigos da Assembleia, era-lhes ordenado que recrutassem forças para a defender! Foi então criado — no papel, é claro — um exército para defesa da Assembleia Nacional. Divisões, brigadas, regimentos, baterias, tudo isso estava regulamentado e ordenado. Não faltava nada, a não ser a realidade, porque, é claro, este exército nunca chegou a existir.
Um último recurso se oferecia à Assembleia Nacional. A população democrática de todas as partes do país enviou deputações para se colocar à disposição do Parlamento e para o pressionar a uma acção decisiva. O povo, conhecendo quais eram as intenções do governo de Württemberg, implorou à Assembleia Nacional que forçasse aquele governo a uma participação aberta e activa com os seus vizinhos insurrectos. Mas não. A Assembleia Nacional, ao ir para Stuttgart, tinha-se posto a si própria à mercê do governo de Württemberg. Os seus membros sabiam-no e reprimiram a agitação entre o povo. Perderam, deste modo, o último resto de influência que ainda podiam ter conservado. Ganharam o desprezo que mereciam, e o governo de Württemberg, pressionado pela Prússia e pelo Lugar-Tenente Imperial, pôs fim à farsa democrática, fechando, em 18 de Junho de 1849, a sala em que o Parlamento se reunia e ordenando aos membros da Regência que abandonassem o país.
Foram, a seguir, para Baden, para o campo da insurreição, mas aí eram agora inúteis. Ninguém fez caso deles. A Regência, contudo, em nome do Soberano Povo Alemão, continuava a salvar o país por todos os meios. Fez uma tentativa para ser reconhecida pelas potências estrangeiras, passando passaportes a quem quer que os aceitasse. Publicou proclamações e enviou comissários para sublevarem aqueles mesmos distritos de Württemberg cuja assistência activa havia recusado quando ainda era tempo; é claro que isto não surtiu efeito. Temos agora diante dos olhos um relatório original enviado à Regência por um desses comissários, o senhor Roesler (deputado por Oels(53*)), cujo conteúdo é bastante característico. Está datado de Stuttgart, 30 de Junho de 1849. Depois de descrever as aventuras de meia dúzia desses comissários numa procura infrutífera de dinheiro, dá uma série de desculpas por ainda não ter ido para o seu posto e depois entrega-se a uma argumentação do maior peso acerca das possíveis diferenças entre a Prússia, a Áustria, a Baviera e o Württemberg, e suas possíveis consequências. Após ter considerado isto completamente, chega, contudo, à conclusão de que já não há qualquer hipótese. Seguidamente, propõe-se estabelecer uma cadeia de homens de confiança para a recolha de informações e um sistema de espionagem quanto às intenções do Ministério de Württemberg e a movimentos de tropas. Esta carta nunca chegou ao destino porque, quando foi escrita, a “Regência” já tinha passado inteiramente para o “departamento dos estrangeiros”, isto é, para a Suíça; e, enquanto o pobre senhor Roesler dava voltas à cabeça com as intenções do formidável ministério de um reino de sexta ordem, cem mil soldados prussianos, bávaros e hessianos tinham já resolvido toda a questão na última batalha sob os muros de Rastatt.
Assim desapareceu o Parlamento alemão e, com ele, a primeira e a última criação da revolução. A sua convocação tinha sido a primeira prova de que tinha havido efectivamente uma revolução na Alemanha; e existiu enquanto a esta, à primeira Revolução Alemã moderna, não foi posto fim. Eleito sob a influência da classe capitalista por uma população rural desmembrada e dispersa, na maioria, mal acordando do mutismo feudal, este Parlamento serviu para trazer para a arena política, num só órgão, todos os grandes nomes populares de 1820-1848 e depois para os arruinar totalmente. Todas as celebridades do liberalismo da classe média estavam aí reunidas; a burguesia esperava maravilhas; colheu vergonha para si própria e para os seus representantes. A classe capitalista industrial e comercial estava mais severamente derrotada na Alemanha do que em qualquer outro país; foi primeiramente derrotada, quebrada, expulsa do governo, em cada um dos Estados da Alemanha e, depois, foi destroçada, desonrada e vaiada no Parlamento Central Alemão. O liberalismo político, o regime da burguesia, tanto sob uma forma de governo monárquica como republicana, é para sempre impossível na Alemanha.
No último período da sua existência, o Parlamento alemão serviu para desonrar para sempre aquele sector que, desde Março de 1848, tinha encabeçado a oposição oficial, os democratas que representavam os interesses da classe dos pequenos negociantes e, em parte, da classe dos agricultores. Em Maio e Junho de 1849, tinha sido dada a essa classe uma oportunidade de mostrar os meios que tinha de formar um governo estável na Alemanha. Vimos como ela falhou; não tanto por circunstâncias adversas, como pela efectiva e contínua cobardia em todos os movimentos cruciais que ocorreram desde a erupção da revolução; por mostrar na política o mesmo espírito míope, pusilânime, vacilante, que é característico das suas operações comerciais. Em Maio de 1849, com este procedimento, tinha perdido a confiança da massa realmente combativa de todas as insurreições europeias, a classe operária. Mas ainda tinha uma boa oportunidade. O Parlamento alemão pertencia-lhe exclusivamente após a retirada dos reaccionários e dos liberais. A população rural estava a seu favor. Dois terços dos exércitos dos Estados mais pequenos, um terço do exército prussiano, a maioria da Landwehr (reserva ou milícia) prussiana, estavam prontos a juntar-se-lhe se ela unicamente agisse com resolução e com aquela coragem que é resultado de uma visão clara do estado das coisas. Mas os políticos que dirigiam esta classe não eram mais clarividentes do que a multidão de pequenos negociantes que os seguia. Demonstraram mesmo ser mais enfatuados, estarem mais ardentemente ligados a ilusões voluntariamente mantidas, serem mais crédulos, mais incapazes de lidarem resolutamente com os factos, do que os liberais. A sua importância política está, também, reduzida a baixo de zero. Mas, não tendo efectivamente posto em execução os seus princípios banais, eram, em circunstâncias muito favoráveis, capazes de uma ressurreição momentânea, quando esta última esperança lhes foi retirada, tal como foi retirada aos seus colegas da “democracia pura” em França, pelo coup d’État(54*) de Louis Bonaparte.
A derrota da insurreição no Sudoeste da Alemanha e a dispersão do Parlamento alemão vêm encerrar a história da primeira Revolução Alemã. Temos agora de deitar um olhar de despedida aos membros vitoriosos da aliança contra-revolucionária; fá-lo-emos na nossa próxima carta[N206].
Londres, 24 de Setembro de 1852.
Início da página
Notas de Rodapé:
(50*) Em francês no texto: mesquinho. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(51*) Nome ucraniano: Mukátchevo. (retornar ao texto)
(52*) Nome polaco: Strzegom. (retornar ao texto)
(53*) Nome polaco: Olesnica. (retornar ao texto)
(54*) Em francês no texto: golpe de Estado. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
Notas de Fim de Tomo:
[N205] Na Igreja de São Paulo em Frankfurt-am-Main realizaram-se reuniões da Assembleia Nacional Alemã entre 18 de Maio de 1848 e 30 de Maio de 1849. (retornar ao texto)
[N206] O último artigo desta série não foi publicado no New-York Daily Tribune. Na edição inglesa de 1896 preparada para publicação pela filha de Marx, Eleanor Marx-Aveling, e também numa série de edições posteriores, foi publicado como último artigo o de Engels, que não estava incluído nesta série e que tinha como título “O Recente Julgamento em Colónia”. (retornar ao texto)