Os intelectuais e o seu vínculo orgânico de classe

“Não existe uma classe independente de intelectuais, mas cada grupo social possui a sua própria camada de intelectuais ou tende a formá-la”, escreve Gramsci (19). É justamente esse vínculo orgânico que, em última instância, definiria socialmente qualquer intelectual. Dependendo do grau dessa relação temos um tipo de intelectual, sendo que as camadas mais importantes e complexas (de maior influência e poder de coesão) são as que possuem ligações mais estreitas com uma das classes sociais fundamentais, em especial com a classe que detém a direção política e econômica da sociedade e do Estado. E essa relação é mais estreita, portanto mais orgânica, quando o intelectual se origina da própria classe que representa, mas ressalva: “o chefe da empresa-homem político aparecerá como intelectual orgânico da burguesia e não como chefe da empresa, pois sua função predomina sobre a sua origem social” (20).

É certo, inclusive para Gramsci, que essas afirmações devem ser relativizadas, pelo menos em alguns casos, pois se elas servem muito bem no caso das classes dominantes, não se ajustam com a mesma facilidade no caso das classes subalternas que “pelo menos inicialmente são obrigadas a importar os seus intelectuais entre os grandes intelectuais” (21). E, por outro lado, elas vivem em meio aos perigos permanentes de verem seus poucos intelectuais ser cooptados pelos grandes intelectuais das classes dominantes, através do processo que ele chamou de “transformismo”.

Portanto, o intelectual não é independente em relação às classes sociais e isto acarreta algumas consequências importantes: a primeira delas é o caráter “improdutivo” de qualquer intelectual isolado de uma das classes sociais fundamentais. “Um intelectual sem vínculo orgânico”, afirmava nosso autor, “tem importância tão desprezível quanto as ideologias que ele produz” (22).

Qual é a função do intelectual orgânico das classes dominantes no seio da sociedade capitalista? “São eles que elaboram a ideologia da classe dominante dando-lhes consciência do seu papel e transformando-a em concepção do mundo que impregna todo o corpo social”. Esses intelectuais “são os encarregados de animar e gerir a ‘estrutura ideológica’ da classe dominante no seio das organizações da sociedade civil”. São eles que “mantêm coeso o bloco histórico, os que elaboram a hegemonia da classe dominante, que sem eles não poderia ser dirigente: seria apenas dominante e opressiva, faltando a base de massas, o consenso necessário para exercer o seu poder” (23). São os intelectuais orgânicos da burguesia que asseguram o consenso das classes subalternas em torno das classes dominantes e que servem de elo entre a superestrutura e a infraestrutura do bloco histórico capitalista.

Apesar de compreender o intelectual enquanto “funcionário da superestrutura” ou “funcionário da hegemonia” não incorre num erro bastante comum do “sociologismo”, que estabelece uma relação mecânica (automática) entre os intelectuais e as classes sociais. Para ele, nas relações entre intelectuais e as classes sociais deve haver a mesma mediação existente entre a infra e superestrutura. A estrutura econômica determina, mas só em última instância, a superestrutura. Esta, por sua vez, tem relativa autonomia em relação à infraestrutura que lhe dá sustentação. Portanto, o intelectual, enquanto elemento (= agente) da superestrutura, possui também uma relativa autonomia (não independência) em relação às classes sociais, das quais não é um reflexo passivo. Os milhares de intelectuais revolucionários a serviço da luta socialista, provindos das camadas médias e altas, são provas disso.  

“A evolução da estrutura pode, inclusive, ser retardada ou até retida por uma evolução mais lenta dos intelectuais, particularmente pela manutenção de dirigentes políticos tradicionais” (24). O próprio Engels escreveu: “embora as condições materiais de vida sejam as causas primeiras isto não impede que a esfera ideológica reaja por sua vez sobre ela” (25).

Baseando-se nisso, Gramsci afirma: “a relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata como ocorre com todos os grupos sociais fundamentais e sim, mediada em graus diversos, por intermédio de toda trama social, do complexo das superestruturas” (26). É justamente esta relativa autonomia, impulsionada principalmente pelas contradições internas de uma sociedade classista, que permite, vez ou outra, que alguns intelectuais se desloquem da situação de reprodutores da ideologia dominante para a de portadores e divulgadores de uma nova “ideologia” (a filosofia de práxis), ligando-se organicamente às classes subalternas. Assim ocorreu com Marx, Engels, Lênin e com o próprio Gramsci.

A crise de hegemonia e a revolução social

Marx, em diversas de suas obras, afirmou que as causas de toda e qualquer revolução social, inclusive a socialista, devem ser procuradas no mundo da produção, pois elas são fruto da contradição irreconciliável entre as forças produtivas, que apresentaram um desenvolvimento contínuo, e as relações de produção que tenderiam a se desenvolver mais lentamente. Esta contradição se traduz no agravamento das lutas de classes.

Escreveu o fundador da “filosofia da práxis”: “Ao chegar a uma determinada fase do desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de produção existentes. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se convertem em obstáculos a elas. E se abre, assim, uma época de revolução social” (27).

Gramsci parte do pressuposto (marxista) de que toda crise revolucionária é, em última instância, determinada pelas contradições que se dão no mundo da produção e, portanto, tem um caráter objetivo. Mas ele avança sobre essa premissa, como já havia feito Lênin, ao dirigir suas atenções para outro aspecto da crise revolucionária: o aspecto subjetivo, ideológico. A crise revolucionária é vista por ele como, e acima de tudo, uma crise da superestrutura, “é lida em nível de superestrutura e é concebida como crise de hegemonia” (28).

Lênin já havia esboçado as duas condições básicas (do ponto de vista político) para eclosão de uma crise revolucionária: 1º) os de baixo não se submetem mais a serem governados como antes; 2º) os de cima já não podem governar como antes. Podemos notar que o dirigente soviético dá muito valor a este aspecto superestrutural da crise, tão subestimado pelos teóricos da II Internacional, presos a uma leitura mecanicista e fatalista da obra de Marx. Estes acreditavam que o próprio desenvolvimento do capitalismo conduzira necessariamente ao socialismo — queiramos ou não. Subestimavam o papel ativo exercido pelos homens, estruturados em classe, na construção da sua própria história. Esta posição aparentemente dogmática era uma maneira de acobertar uma política reformista: da eterna espera da situação madura, que por si só traria as mudanças. A classe operária deveria esperar, pacientemente, a lagarta transformar-se em borboleta. Em outras palavras: esperavam que o simples desenvolvimento das forças produtivas cumprisse o papel profilático na história e pusesse fim ao capitalismo.  

A Revolução Russa de outubro de 1917 veio desmascarar tais teses. Não foi por acaso que o jovem Gramsci saudou-a como uma revolução contra O Capital. Na verdade, tratava-se de uma revolução contra determinado tipo de leitura de O Capital. Esta obra fundamental de Marx havia se transformado nas mãos da direita socialdemocrata europeia num manual de economia e não em um guia para a ação política revolucionária.

Para Gramsci, a hegemonia das classes dominantes “entra em crise ao desaparecer sua capacidade de justificar um determinado ordenamento econômico e político da sociedade. Isso ocorre quando as forças produtivas desenvolvem-se a tal nível que põem em xeque as relações de produção existentes” (29). Nesse trecho fica claro que Gramsci não abandona a premissa marxista da determinação, em última instância, da estrutura econômica, mas vai além disso.

As pressões nascidas da infraestrutura (contradição entre forças produtivas e relações de produção) se traduzem num desenvolvimento sem precedentes do movimento social das classes exploradas, no aumento de sua ação política. Isto leva, por sua vez, a ideologia da classe dominante, até então hegemônica, a perder, em grande parte, a sua eficiência enquanto instrumento de construção do consenso social; e a contraideologia socialista a ir ganhando os corações e as mentes das classes dominadas. A revolução (a ruptura radical com a hegemonia anterior) só se realiza quando se forja a unidade férrea entre a filosofia de práxis (o marxismo), na forma de uma tática e de uma estratégia revolucionária justa, e o movimento contestatório das massas populares. Esta articulação (teoria e movimento) só poderá se realizar através da mediação complexa do “moderno príncipe” — o Partido Comunista.

O grupo dominante, embora mantenha a dominação político-econômica, perde toda (ou em grande parte) a sua capacidade dirigente. Assim, uma concepção de mundo que durante séculos conseguiu se impor ao conjunto da sociedade entra em crise e no seu lugar desenvolve-se uma nova maneira de pensar e agir, uma nova ideologia, informada pela filosofia de práxis.

Neste momento particular de crise, todos os aparelhos de reprodução ideológicos ou de dominação política sofrem profundas alterações: “Os partidos tradicionais (…) como os homens que os dirigem não são mais reconhecidos como expressão própria de sua classe, ou fração de classe (…) o partido termina por se tornar anacrônico e, nos momentos de crise aguda, chega a se esvaziar inteiramente de seu conteúdo social e fica como se construído no vazio” (30).

A crise de hegemonia, que é parte da crise revolucionária, não leva necessariamente à ruptura; ela apenas cria as condições para que ocorra. A ruptura, como já afirmamos anteriormente, exige a ação (teórico-prática) dos intelectuais orgânicos da classe, no caso, o Partido Comunista — definido por Togliatti como “intelectual coletivo” do proletariado.

Mesmo nos momentos de crise revolucionária a situação não é tranquila para o proletariado. Alerta ele: “A crise gera situações imediatas, perigosas, porque diferentes camadas da população não possuem a mesma capacidade de orientar-se rapidamente e organizar-se com o mesmo ritmo” (31). As classes subalternas, mesmo nestes períodos de crise, que teoricamente parecia-lhes mais favorável, ainda estão numa situação de relativa desvantagem diante da classe ainda no poder, que possui o domínio sobre os aparelhos de coerção e cooptação (que mesmo debilitado mantém, em parte, a sua eficiência). Gramsci alerta que o “proletariado, como classe, é fraco em elementos organizadores, não possui e não pode dotar-se de uma camada de intelectuais senão muito lentamente (…) e somente depois da conquista do poder estatal”. Aqui, decerto, se baseou na experiência viva da Revolução Russa, que teve na conquista da intelectualidade, educada pela burguesia, um problema crucial.

Gramsci defende então a tese da possibilidade e da necessidade de ganhar amplas camadas da intelectualidade, antes mesmo da conquista do poder político. “Certamente”, escreve ele, “é importante e útil para o proletariado que um ou mais intelectuais adiram a título individual a seu programa, a sua doutrina, se fundam no proletariado e sintam-se parte integrante dele (…). Hoje, são os intelectuais como massa e não como indivíduos que nos interessam (…). É tão importante quanto útil que se opere na massa dos intelectuais uma ruptura de caráter orgânico, historicamente determinada: que se manifeste como formação de massa uma tendência de esquerda no sentido moderno do termo, isto é, uma virada em direção ao proletariado revolucionário” (32).

Ele tem plena consciência do papel a ser cumprido pelo Partido Comunista. O Partido é “o elemento decisivo de qualquer situação, a força permanente, organizado, preparado com bastante antecedência e que possa fazer avançar quando se julgue que a situação é favorável (e isso só será favorável na medida em que tal força exista e esteja plena de ardor combativo). Por isso, a tarefa essencial é de sistemática e parcialmente, formar, desenvolver, tornar essa força cada vez mais homogênea, compacta e consciente de si” (33).

Luciano Gruppi já alertava – e, penso se não inutilmente – que não era a Marx que Gramsci visava desenvolver e sim a Lênin. Digo inutilmente, pois nestas últimas décadas as universidades vêm sendo invadidas por uma série de trabalhos que tem em Gramsci o seu principal referencial teórico, enquanto Lênin vem sendo sistematicamente abandonado. As obras do revolucionário russo, em geral, não são incluídas em nossos currículos, embora poucos sejam aqueles que neguem a importância do seu pensamento.

Hoje, alguns autores chegam mesmo a erigir uma verdadeira muralha da China entre esses dois pensadores, um considerado dogmático, ortodoxo e outro, original e crítico. As citações de Gramsci se multiplicam em artigos e monografias, enquanto Lênin poucas vezes aparece. É justamente aí que reside a contradição, visto que Gramsci sempre se considerou um leninista e procurou aplicar as teses de Lênin, de maneira original, à realidade italiana. Esta originalidade jamais significou a libertação de um limite, o pensamento de Lênin.

Conclusão

A hegemonia é, decerto, um problema colocado diante de qualquer classe que deseja conquistar e manter o poder político. Mas apenas a partir do final do século XIX este conceito passou a compor o arcabouço teórico do que podemos chamar, grosso modo, ciência política marxista – preocupação que roubaria o tempo e o sono de muitos intelectuais revolucionários, pois somente para aqueles que têm na revolução político-social um problema a ser resolvido é que a hegemonia aparece como um dilema. Para aqueles que a questão do poder não se coloca, a hegemonia também não pode se constituir como centro de preocupações mais sérias. Nenhuma revolução, até nossos dias, se concretizou sem que fosse dada solução a questão da hegemonia, ou seja, sem que a classe revolucionária e seu partido conseguissem o consentimento das demais classes subalternas para o seu projeto político.

Dentre todos esses teóricos, inclusive Lênin, é Gramsci o que mais se preocupou em desenvolver o conceito, entendendo-o enquanto direção político-ideológica, momento de predomínio do consentimento sobre a coerção. Seu estudo tem como referencial teórico as sociedades europeias ocidentais, mais desenvolvidas econômica e politicamente que a Rússia czarista, mas não se restringe a elas. Cabe a Gramsci o resgate do papel da ideologia e dos aparelhos ideológicos enquanto instrumentos privilegiados na construção da hegemonia. A ideologia dominante é o cimento que dá homogeneidade e coesão a todo edifício social, servindo à produção e reprodução das relações sociais. Ele resgata o papel ativo das ideologias não como reflexos mecânicos da estrutura econômica – compreendendo-as em sua autonomia, ainda que relativa, como já constatara Engels em seus últimos escritos. Mas, se a ideologia dominante é o cimento que busca manter coeso o edifício social, os intelectuais são os artífices desta obra, são os portadores e reprodutores privilegiados das ideologias.

Gramsci também compreende que a mediação que deve existir entre os intelectuais e as classes sociais que lhe dão suporte é a mesma que existe entre a infra e a superestrutura. Os intelectuais e as ideologias que produzem não são reflexos mecânicos das classes das quais se originam e deveriam aparentemente representar. E as contradições sociais, quando levadas ao extremo, podem acarretar a ruptura de parcelas importantes da intelectualidade com a classe da qual provém e a sua incorporação ao projeto político de outras classes sociais. É isto que explica, em momentos de crise de hegemonia, o deslocamento de importantes parcelas da intelectualidade progressista — burguesa e pequeno-burguesa — para o lado do proletariado revolucionário.

* Este texto foi escrito no início da década de 1980 e teve uma de suas versões reduzidas publicada na revista Princípios nº21, de maio-julho de 1991.

** Augusto Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos pela Editora Anita Garibaldi.

Notas

(19) GRAMSCI, A. apud PORTELLI, Hugues. Gramsci e o Bloco Histórico, p. 85.
(20) PORTELLI, H. Op. cit., p. 85.
(21) Ibid.
(22) Ibid.
(23) PORTELLI, H. Op. cit., p. 87.
(24) Idem, p. 89.
(25) ENGELS, F. Obras Escolhidas, vol. 3.
(26) GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura, p. 9.
(27) MARX, K. “Prefácio” à Contribuição à Crítica da Economia Política.
(28) GRUPPI, L. O Conceito de Hegemonia em Gramsci, p. 90.
(29) Idem, p. 90.
(30) GRAMSCI, A. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, p. 56.
(31) Idem, p. 55.
(32) GRAMSCI, A. apud BUCI-GLUCKSMANN, C., p. 45-46.
(33) GRAMSCI, A. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, p. 54.

Bibliografia

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