O Capital de Karl Marx
Desde que há capitalistas e obreiros no mundo, não apareceu livro de tão grande importância para os obreiros como este. As relações entre o Capital e o Trabalho, eixo em torno do qual rota todo o nosso sistema social do tempo presente são cá, pola primeira vez, desenvolvidos cientificamente, com uma profundidade e com uma clareza só possíveis para um alemão.
Por mais preciosos que sejam e ficarão como tais os escritos dum Owen, dum Saint-Simon, dum Fourier, foi reservado a um alemão alçar-se à altura desde a que se pudesse enxergar com claridade e panoramicamente o domínio inteiro das relações sociais modernas, de igual modo que aparecem aos olhos do espectador, situado no mais alto cimo, os sítios montanhosos menos altos.
A economia política ensina-nos até agora que o trabalho é a fonte de toda a riqueza e a medida de todos os valores, de tal jeito que dous objectos cuja producção custou o mesmo tempo de trabalho têm também o mesmo valor e devem também ser necessariamente trocados uns polos outros em vista que somente valores equivalentes podem ser trocados entre si.
Mas ensina, ao mesmo tempo, que existe uma espécie de trabalho acumulado a que se chama capital; que este capital, graças às possibilidades que contém, multiplica por cem e por mil a produtividade do trabalho vivo e reivindica por isso uma certa compensação a que se chama lucro ou benefício.
Percebemos todos nós que as cousas são, na realidade, assim: os lucros do trabalho morto, acumulado, formam uma massa cada vez maior, os capitais dos capitalistas tomam proporções cada vez mais colossais, enquanto o salário do travalho vivo torna-se cada vez menor, e a massa dos operários que vive unicamente do salário, é cada vez maior e mais pobre. Como resolver esta contradição?
Como pode ter um lucro o capitalista se o obreiro recebe o valor total do trabalho que amplia ao produto? E, no entanto, visto que apenas valores iguais são trocáveis, tem de ser assim.
Por outro lado, como valores iguais podem ser trocados, como o obreiro pode receber o valor inteiro do seu produto, se, como imaginam muitos economistas, este produto é partilhado entre ele e os capitalistas? A economia encontra-se até hoje perplexa face esta contradição, escreve ou balbucia fórmulas confusas e vácuas.
Mesmo os críticos socialistas da economia não foram capazes até aquí de fazer outra cousa do que sublinhar esta contradição; nenhum a resolveu até o momento em que, finalmente, Marx, perseguindo o processo da formação deste lucro até o lugar onde nasce, clareou totalmente o assunto.
No desenvolvimento do capital, Marx parte do facto simples e notório que os capitalistas valorizam o seu capital através da troca; compram mercadoria por dinheiro e a seguir revendem-na por uma soma mais elevada do que lhes custar. Um capitalista compra, por exemplo, algodão por 1000 francos e revende-o por 1100, ganhando assim 100 francos. É a este excedente de 100 francos sobre o capital inicial que Marx chama mais-valor.
De onde surge este mais-valor? Segundo a hipótese dos economistas, só os valores iguais são trocáveis e, no domínio da teoria abstracta, isto é certo. A compra do algodão e a sua revenda não pode, então, fornecer mais valor do que a troca de uma quilograma de prata contra uma soma e uma nova troca desta moeda contra uma quilograma de prata, operação em que não se enriquece nem empobrece. Mas o mais-valor também não pode sair do facto de os vendedores trocarem as suas mercadorias acima do seu valor, ou de os compradores as obterem acima do seu valor, porque sendo cada um deles tanto vendedor como comprador, há, conseqüentemente, compensação.
Isso também não pode surgir do facto de os compradores e os vendedores encarecerem uns com outros o produto, porquanto isso não produziria novo valor ou mais-valor, mas ao contrário, repartiria-se de outra forma o capital existente entre os capitalistas.
Ora, a pesar de que o capitalista compra e revende as mercadorias polo seu valor, tira mais valor do que investiu. Como é que isto pode acontecer?
Nas actuais condições sociais, o capitalista acha no mercado uma mercadoria que possui esta propriedade peculiar, que o seu consumo é fonte de um novo valor, cria novo valor, e esta mercadoria é a força de trabalho.
Qual é o valor da força de trabalho? O valor de cada mercadoria é determinado polo trabalho que reclama a sua produção. A força de trabalho existe sob a forma do operário vivo que precisa, para viver, assim como para sustentar a sua família que garante a reprodução da força de trabalho depois da sua morte, duma soma determinada de meios de subsistência. É, conseguintemente, o tempo de trabalho necessário à produção destes meios de subsistência que representa o valor da força de trabalho. O capitalista paga ao operário à semana e compra assim o emprego do seu trabalho por uma semana. Os senhores economistas estarão, até aquí, de acordo connosco sobre o valor da força de trabalho.
Nesse momento, o capitalista põe o seu obreiro a trabalhar. Durante um tempo determinado, o operário terá fornecido tanto trabalho quanto o representado polo salário semanal. Aceitando que o salário semanal de um operário representa três dias de trabalho, o operário que inícia na segunda-feira restituiu ao capitalista na quarta-feira à tarde o valor total do salário pago.
Mas de seguida para de trabalhar? Muito polo contrário. O capitalista comprou o seu trabalho por uma semana, e é necessário que o obreiro trabalhe ainda os outros três dias da semana. Este mais-trabalho do obreiro, para além do tempo necessário para restituir o seu salário, é a fonte do mais-valor, do lucro, do aumento sempre crescente do capital.
Não se diga que é esta uma suposição gratuita quando se afirmar que o operário produz em três dias o salário que recebeu e que nos outros três dias trabalha para o capitalista. Aliás, que precise exactamente três dias para devolver o seu salário, ou de dous, ou de quatro, é aquí uma cousa totalmente irrelevante que não muda segundo as circunstâncias; pois a cousa principal é que o capitalista, além do trabalho que paga, consegue ainda trabalho que não paga, e não se trata de uma suposição arbitrária, visto que como no dia em que o capitalista não recebesse continuamente do operário o trabalho que ele paga em salário, esse dia, fecharia a sua fábrica porque todo o lucro se esfumaria.
Eis que nos resolvemos todas estas contradições. A produção de mais-valor (de que o lucro do capitalista constitue boa parte) é agora totalmente clara e natural. O valor da força de trabalho é pago, mas este valor é muito menor do que aquele que o capitalista tira da força de trabalho, e a diferença, o trabalho que não é pago, constitue precisamente a parte do capitalista, ou mais exactamente, da classe capitalista.
É assim porque o lucro que, no exemplo citado mais acima, o comerciante de algodão tira do seu algodão, necessariamente deve consistir em trabalho não pago se os preços do algodão não aumentaram. Foi necessário que o comerciante vendesse a um fabricante de tecidos de algodão que, além dos cem francos, possa obter ainda um benefício pola sua fabricação e que distribue com ele o trabalho não pago que ele, por conseqüência, obteve.
É este trabalho não pago que, em geral, mantém todos os membros da sociedade que não trabalham. É com ele que são pagos os impostos do Estado e dos concelhos na medida em que estes atingem a classe capitalista, as rendas dos grandes proprietários da terra, etc. É sobre ele que descansa todo o estado social existente.
Mesmo assim, seria ridículo supor que o trabalho não pago só se formou nas condições actuais, em que a produção é realizada, por um lado, por capitalistas e por outro polos assalariados. Ao contrário, desde sempre a classe oprimida teve que efectuar trabalho não pago. Durante todo o longo período em que a escravidão foi a forma dominante de organização do trabalho, os escravos foram obrigados a trabalhar muito mais do que lhes era dado sob a forma de meios de subsistência. Sob a dominação da servidão e até a extinção das corveias, sucedeu-se o mesmo; e até mesmo aquí aparecia, de maneira tangível, a diferença entre o tempo em que o lavrador trabalhava para si e a mais-valia que realizava para o senhor, visto que estas duas forma de trabalho se faciam separadamente. A forma é hoje diferente, mas a cousa não mudou, e enquanto,
“uma parte da sociedade possuir o monopólio dos meios de produção , o trabalhador, livre ou não, é forçado a acrescentar ao tempo de trabalho necessário para a sua própria subsistência um mais-valor destinado a sustentar o possuidor dos meios de produção”
(Marx, O Capital, Livro I).
No artigo anterior, reparamos que cada operário que está ao serviço do capitalista executa um duplo trabalho: durante uma parte do seu tempo de trabalho, restitui o salário que lhe adiantara o capitalista, e esta parte do seu trabalho é denominado por Marx trabalho necessário. Mas, em seguida, deve continuar a trabalhar ainda e produzir durante este tempo o mais-valor para o capitalista, do que o lucro constitue uma parte importante. Esta parte do trabalho chama-se mais-trabalho.
Suponhamos que o obreiro trabalha três dias da semana para devolver o seu salário e outros três para produzir o mais-valor para o capitalista. Isto quer dizer, noutros termos, que trabalha, numa jornada de doze horas, seis diárias para o seu salário e seis horas para criar o mais-valor. Mas uma semana não tem mais de seis dias, e contando o domingo, sete tão só, assim que cada dia pode ter seis, oito, dez, doze e até quinze ou mais horas de trabalho. O obreiro vendeu polo seu salário uma jornada de trabalho ao capitalista. Mas, o que é um dia de trabalho? Oito horas ou dezoito?
O capitalista tem interesse em fazer a jornada de trabalho tão prolongada quanto possível. Quanto mais ampla for, mais mais-valor terá criado. O operário tem a verdadeira sensação de que cada hora de trabalho feita para além da restituição do seu salário, lhe é roubada; é no seu próprio corpo que sente o que significa trabalhar muito tempo seguido. O capitalista briga polo seu lucro, o obreiro pola sua saúde, por algumas horas de repouso quotidiano, para poder fornecer ainda uma outra actividade humana, fora das horas de trabalho, do sono e da comida. Notemos de passagem que não depende da boa vontade dos capitalistas tomados isoladamente, que queiram ou não comprometer-se nesta luita, a concorrência obriga o mais filantropo dentre eles a aliar-se com os seus colegas e a fazer cumprir uma jornada de trabalho como a daqueles.
A luita pola limitação da jornada de trabalho data do primeiro surgimento dos obreiros livres na história e dura até hoje. Nas várias indústrias existem normas diversas à jornada de trabalho; mas na realidade, são raramente observadas. É somente nos casos em que a lei determina a jornada de trabalho e verifica a sua observação, que se pode falar verdadeiramente de uma jornada de trabalho normal. E até hoje unicamente nos distritos industriais da Inglaterra. Aquí, a jornada de trabalho de dez horas (10 horas e meia durante cinco horas dias e sete horas e meia ao Sábado) foi fixada para todas as mulheres e para os jovens entre os 13 e os 18 anos, e como os homens não podem trabalhar sem estes últimos, ficam, também eles, sujeitos à lei da jornada de dez horas.
Esta lei foi uma conquista dos operários das fábricas da Inglaterra através de longos anos de persistência, pola luita mais tenaz e obstinada contra os fabricantes, pola liberdade de imprensa, polo direito de associação e de reunião, ademais de aproveitar as divisões no seio da própria classe dominante. A lei transformou-se na salvaguarda dos operários ingleses, e alargada pouco a pouco a todos os ramos da indústria e, no ano passado, a quase todos os ofícios, ou polo menos a todos aqueles empregados por mulheres e meninos. Sobre a história desta regulamentação legal da jornada de trabalho na Inglaterra, a obra possui uma documentação extremamente pormenorizada.
O próximo “Reichstag da Alemanha do Norte” irá igualmente discutir uma lei industrial, e consequentemente, ajustar o trabalho nas fábricas. Aguardamos que nenhum dos deputados que deve a sua eleição aos obreiros alemães, irá para a discussão sem se ter familiarizado antes com o livro de Marx.
Podem obter muito. As divisões nas classes reinantes são mais favoráveis aos obreiros do que nunca foram na Inglaterra, pois o sufrágio universal compele as classes dominantes a procurar o favor dos operários. Nestas circunstâncias, quatro ou cinco representantes do proletariado são uma potência se souberem aproveitar a sua situação, se sobretudo souberem do que se trata, cousa que os burgueses não percebem. E, por isso, o livro de Marx fornece-lhes a documentação já elaborada.
Deixaremos de lado uma série de outras investigações esplêndidas, de interesse mais teórico, e contentar-nos-emos abordando o capítulo final que trata da acumulação do capital. Demonstra-se que o modo de producção capitalista, é dizer, realizado polos capitalistas, por um lado, e polos assalariados por outro, não só reproduz sempre o capital ao capitalista, mas produz sempre, simultaneamente também, a miséria dos obreiros, e que isto faz de forma a reproduzir sempre, de um lado os capitalistas, que são os proprietários de todos os meios de subsistência, de todas as matérias-primas e de todos os instrumentos de trabalho, por outro, a grande massa dos operários que são constrangidos a vender a sua força de trabalho a estes capitalistas por uma certa quantidade de meios de subsistência apenas suficientes, no melhor dos casos, para os conservar em estado de trabalhar e para fazer crescer uma nova geração de proletarios aptos para o trabalho.
Mas o capital não se limita apenas a ser reproduzido: está continuamente se multiplicado e ampliando, e com ele, o seu poder sobre a classe dos obreiros, privados de propriedade. E enquanto se reproduz em proporções cada vez mais grandes, o modo de produção capitalista moderno reproduz assim mesmo, em proporções cada vez mais grandes e em número sempre crescente, a classe dos operários privados de propriedade.
“A acumulação do capital não faz mais que reproduzir as relações do capital numa escala mais alargada, com mais capitalistas ou mais grandes capitalistas por um lado, mais assalariados por outro… A acumulação do capital é, então, ao mesmo tempo, aumento do proletariado” (Marx, O Capital, Tomo 3) .
Mas, como para produzir todavia a mesma quantidade de produtos, precisam-se cada vez menos obreiros, graças ao progresso do maquinismo, à modernização da agricultura, etc., como este aperfeiçoamento, isto é, este excedente de obreiros, aumenta mais rapidamente que o capital crescente, o que é que se faz com este sempre crescente de operários? Formam um exército industrial de reserva que, durante os momentos de maus negócios ou mediocres, é pago abaixo do valor do seu trabalho e ocupado irregularmente ou cai ainda na assistência pública, mas é absolutamente necessário à classe capitalista para os momentos de actividade particularmente viva dos negócios, como se viu de modo tangível na Inglaterra, mas que, de qualquer maneira, vale para desbaratar a resistência dos operários ocupados regularmente e manter os seus salários a baixo nível.
“Quanto mais a riqueza social crescer… mais numerosa é a sobrepopulação comparativamente ao exército de reserva industrial. Quanto mais este exército de reserva aumenta comparativamente ao exército activo do trabalho e mais massiva é a sobrepopulação permanente, mais estas camadas compartem a sorte de Lázaro e quanto o exército de reserva é mais crescente, mais grande é a pauperização oficial. Esta é a lei geral, absoluta da acumulação capitalista.”
(Marx, O Capital, Tomo 3)
Esta são, certificadas de uma maneira rigorosamente científica — que os economistas oficiais evitam quando não tentam refutá-las — algumas das leis principais do sistema capitalista moderno. E logo assim dissemos tudo? Disso nada. Com a mesma clareza com que Marx sublinha o lado nocivo da produção capitalista, prova, também de modo claro, que esta formação social era necessária para desenvolver as forças produtivas da sociedade até ao grau tal que permitisse o mesmo desenvolvimento verdadeiramente humano para todos os membros da sociedade. Todas as formações sociais anteriores foram demasiadamente pobres para isso. Só a produção capitalista cria as riquezas e as forças de produção necessárias, mas cria simultaneamente, com a massa dos obreiros oprimidos, a classe social que cada vez mais é obrigada a exigir o uso dessas riquezas e forças produtivas em favor de toda a sociedade e não, tal como hoje é, para uma classe monopolista.