Engels foi companheiro inseparável de Karl Marx, e com ele partilhou a glória de ter sido o fundador do materialismo moderno, dialético, doutrina que legou ao proletariado revolucionário. Sua vida transcorreu entre 28 de novembro de 1820 a 5 de agosto de 1895. Durante 40 anos foi o companheiro inseparável de Karl Marx, e com ele partilhou a glória de ter sido o fundador do materialismo moderno, dialético, doutrina que legou ao proletariado revolucionário.

Neste artigo (que reproduz uma palestra proferida em 2005), lembro, em sua homenagem, um aspecto de sua atividade intelectual, o historiador revolucionário que Engels foi.

Leia na íntegra:

As Guerras Camponesas na Alemanha, de Friedrich Engels, é um pequeno livro que enfrenta grandes questões. E deixa lições importantes a respeito da análise política e da atividade do historiador.

Inicialmente, Engels ajuda a desmontar um verdadeiro dogma historiográfico, aquele que coloca no altar a pesquisa documental e só considera historiador de verdade aqueles que se dedicam à atividade de vasculhar arquivos.

Engels partiu de um livro monumental para escrever o seu, a História da Grande Guerra Camponesa, de Wilhelm Zimmerman, em três tomos, publicado entre 1841 e 1843.

Zimmerman se baseou nos documentos existentes nos arquivos de Stuttgart, na Alemanha. Democrata e progressista, foi deputado à Assembléia Nacional durante os anos revolucionários de 1848, perdendo o mandato devido às posições avançadas que defendeu.

Isso também justifica o elogio que Engels fez a ele, na segunda edição alemã de As Guerras Camponesas, escrito em 1870 e 1874, onde se refere ao instinto revolucionário que transformou Zimmerman em “campeão das classes oprimidas.”

Engels, que não trabalhou em arquivos mas se baseou no relato e na documentação coligida por Zimmerman, escreveu um livro que demonstra a possibilidade, e mesmo a necessidade, da elaboração histórica dedicada à interpretação de um período e suas lutas à luz de um ponto de vista avançado.

E que demonstrou, há mais de 150 anos, a necessidade de ambos os trabalhos, aquele que se dedica a escarafunchar arquivos para reconstruir o passado de forma fidedigna e com base documental, e o trabalho de generalizar e interpretar os resultados assim alcançados.

Outro aspecto que é possível enfatizar desde o livro de Engels é o da crítica histórica a partir de um ponto de vista que, na falta de palavra melhor, vou definir como filosófico, mesmo correndo o risco de enfrentar as críticas à filosofia da história. Se prestou a Zimmerman as homenagens devidas, e necessárias, Engels fez também a crítica de seu trabalho apontando aquela que seria talvez sua principal limitação: o fato de não encarar a luta política e religiosa como luta de classe, mas apenas como oposiçã, genérica entre opressores e oprimidos. E criticou também os ideólogos de seu tempo, meados do século 19, que aceitaram como verdade aquilo que cada época pensa sobre si própria, sem levar em conta a luta de classes. As guerras religiosas do século 16 tratavam “sobretudo de interesses materiais e de classe muito positivos”. Por isso, “aquelas guerras foram lutas de classes”, escreveu (pág 50).

O terceiro aspecto que quero destacar na atividade de Engels como historiador é o fato de subordinar sua atividade historiográfica às necessidades da luta política de seu tempo, coisa que para muitos pode parecer uma heresia insuportável. Mas o paralelo entre a situação alemã de 1525 e o contexto da revolução alemã de 1848/1850, era visível demais para que pudesse ser deixado de lado. A história servia, aqui, para ajudar a entender a situação contemporânea a partir dos erros e das limitações da situação vivida mais de três séculos antes.

O movimento do século 16, escreveu, foi a maior tentativa revolucionária do povo alemão. Ela ocorreu numa época em que o progresso da indústria entrava em contradição com os interesses dos príncipes, da nobreza e do clero. E a análise da situação alemã da época é um primor de simplicidade, baseada no esforço de compreender os movimentos das classes sociais e da luta entre elas. Era uma situação complexa que envolvia, nas cidades, as famílias patrícias e a oposição formada por uma ala burguesa, “precursora do liberalismo de nossos dias”; escreveu Engels. Envolvia a oposição plebéia formada pela burguesia e outros excluídos do direito de cidadania, como os oficiais, os jornaleiros e os elementos do lumpemproletariado, além do elemento proletário formado por companheiros de grêmio empobrecidos. Finalmente, havia a grande massa da nação, os camponeses, que suportavam todo o peso do edifício social, oprimidos por príncipes, funcionários, nobreza, frades, patrícios e burgueses (pág 44).

Eles formavam uma “massa confusa com, interesses contraditórios” onde, diferentemente da França revolucionária do final do século 18, na Alemanha do século 16 nenhuma classe tinha condição de apresentar-se como porta-voz das demais na luta contra um opressor comum. Ao contrário, “cada classe era um estorvo para as outras e encontrava-se em luta com todas elas” (pág 46).

É nesse contexto que emergem os grandes grupos da oposição, liderados por Lutero e Munzer.

Eles não surgiram do nada. Engels faz o retrospecto dos movimentos precursores da Grande Guerra Camponesa, desde 1476 a 1517 (pág 75) e mostra aquela guerra como a culminância dos movimentos de protesto dos séculos finais da Idade Média, representados pela ação de gente como Arnaldo de Bréscia, na Itália e na Alemanha; João Wycliff, na Inglaterra; João Huss na Boêmia, pelos albingenses no sul da França, pelas crenças quiliásticas. Aqueles protestos heréticos foram outras tantas manifestações de luta de classes (pág. 53/55). “Eram um símbolo vivo da dissolução da sociedade feudal e corporativa e simultaneamente os primeiros precursores da moderna sociedade burguesa” (pág 55), cuja radicalização plebéia já continha germes do programa proletário moderno e sua reivindicação do fim da propriedade privada e conquista do comunismo.

Engels compara a posição de Lutero e a dos liberais burgueses de 1848/1849, que se apresentaram inicialmente como revolucionários mas que, com o aprofundamento da luta e sua radicalização, se transformaram em reacionários (pág 57). “Perante a revolução, esqueceram-se todos os rancores; em comparação com os bandos de camponeses, os servidores da Sodoma romana eram mansos cordeiros, inocentes filhos de Deus; burgueses e príncipes, nobres e curas, Lutero e o Papa aliaram-se contra ‘os bandos assassinos de camponeses ladrões'”, pregando sua destruição e sua morte, como a cão raivoso, como gritava Lutero (pág 61).

Daí para a barbárie no esmagamento do levante a distância era diminuta. Barbárie que já havia sido demonstrada pela nobreza húngara, em 1514, quando reprimiu o levante camponês liderado por Jorge Doza. Após sua derrota e prisão, Doza foi executado de maneira cruel: posto em um trono de ferro incandescente, com uma coroa de ferro também em brasa. Depois, seus homens, que haviam sido presos, foram obrigados a comer sua carne (pág 93).

Outro elemento da comparação histórica feita por Engels refere-se à incapacidade de qualquer uma das classes em conflito tomar o poder para conduzi-lo de acordo com seus interesses. A Guerra Camponesa e as várias negociações que envolveu, entre os rebeldes, a nobreza e os príncipes, e as traições destes contra a massa popular, mostrava que, na Alemanha da época, “nem a classe camponesa nem qualquer outra estava suficientemente desenvolvida para reorganizar a vida de toda a nação de acordo com os seus interesses” (Pág 126). Para alcançar esta condição, os camponeses precisavam “ganhar a nobreza e sobretudo a burguesia”. Esta era uma tarefa que a liderança camponesa não podia desempenhar naquela época. Thomas Munzer, o principal ideólogo e dirigente da guerra camponesa, e inimigo de Lutero, “representava uma classe que se encontrava totalmente à margem da sociedade oficial, isto é, os germes do proletariado”. Munzer pressentiu o comunismo, da mesma forma como Wendel Hipler, outro chefe do movimento que, “como representante de todos os elementos progressivos da nação, chegou a pressentir a sociedade burguesa moderna”.

A análise feita por Engels da tomada do poder pelo movimento revolucionário liderado por Thomas Munzer no município de Muhlhausen, no sul da Alemanha é um primor de análise histórica e política, e se tornou clássica: “O pior que pode acontecer ao chefe de um partido extremista é ser forçado a encarregar-se do governo num momento em que o movimento ainda não amadureceu suficientemente para que a classe que representa possa assumir o comando e para que se possam aplicar as medidas necessárias para o domínio desta classe” (pág 142).

A analogia com a situação alemã de 1848 se impõe aqui. Em meados do século 19, na Alemanha também “entravam na contenda os interesses das diferentes classes da oposição, e cada uma atuava por conta própria. A burguesia tinha-se desenvolvido suficientemente para não tolerar já o absolutismo burocrático-feudal, mas ainda não tinha bastante força para subordinar os desejos das outras classes aos seus. O proletariado era ainda demasiado débil para poder confiar numa rápida superação do período burguês e numa rápida conquista do poder” (págs 160/161).

A revolução alemã de 1848 ocorreu numa época diferente da revolução democrático burguesa da França, meio século antes. Agora era a época da revolução proletária, na qual já não se tratava, diz Engels, da luta entre a nobreza e a burguesia, mas sim de proteger todas as classes possuidoras contra o proletariado e o povo. “A premissa fundamental da monarquia, que se ia decompondo lentamente desde 1840, era a luta entre a nobreza e a burguesia, luta essa em que a monarquia mantinha o equilíbrio. Mas a partir do momento em que já não se tratava de defender a nobreza da pressão da burguesia, mas sim de proteger todas as classes possuidoras da pressão da classe operária, a velha monarquia absoluta teve de transformar-se rapidamente em monarquia bonapartista, a forma de Estado especialmente elaborada para esse fim” (págs 22 e 23). “A burguesia adquire a sua paulatina emancipação social ao preço da sua renúncia imediata a um Poder político próprio. O principal motivo que torna aceitável para a burguesia um tal acordo não é, naturalmente, o seu medo do governo, mas o seu medo do proletariado” (25).

A transformação da monarquia prussiana numa ditadura bonapartista foi, disse Engels, o maior avanço feito pela Prússia desde 1848, pois ela “continuava a ser um Estado semifeudal, enquanto o bonapartismo é apesar de tudo uma forma moderna de Estado que impõe a eliminação do feudalismo. A Prússia deve, portanto, decidir-se a terminar com os seus numerosos vestígios de feudalismo e a sacrificar os seus junkers enquanto tais” (pág 23).

E fez um comentário premonitório: “Se o mundo ficar quieto e tranqüilo e nós chegarmos a velhos, talvez em 1900 vejamos o governo prussiano acabar realmente com todas as instituições feudais e a Prússia alcançar finalmente a situação em que se encontrava a França em 1792” (pág 24).

Este é apenas um apanhado, sumário e esquemático, da contribuição de Engels registrada naquele pequeno livro, escrito em 1850 e que permanece tão atual, não só para os leitores comuns e para os militantes comunistas e de esquerda. Mas que também pode servir de fonte de inspiração para os historiadores comprometidos com a luta do povo e que não temem enfrentar certas verdades que setores da academia transformaram em dogma e anátema.

Referências

Engels, Friedrich. As guerras camponesas na Alemanha. Lisboa, Editorial Presença, 1975. As informações sobre Wilhelm Zimmerman foram obtidas na edição brasileira, publicada por Editorial Vitória, em 1946.

Mayer, Gustav. Friedrich Engels: una biografía. México D.F., Fondo de Cultura Economica, 1978

Instituto de Marxismo Leninismo, do Comitê Central do PCUS. Friedrich Engels: biografia. Lisboa/Moscou, Edições Avante/Edições Progresso, 1986.

(Palestra proferida no Seminário Friedrich Engels e a ciência contemporânea, Salvador, Bahia, 12/12/2005, promovido pelo Instituto Maurício Grabois).

José Carlos Ruy é jornalista, editor da Classe Operária, membro da Comissão Nacional de Comunicação e do Comitê Central do PCdoB; integra a Comissão Editorial da revista Princípios