Horizonte cerrado* 24 – A “feira de sombras” do fascismo: um poema de Pasolini
Em 1957, Pier Paolo Pasolini publica o livro de poemas As cinzas de Gramsci. O livro é composto por onze poemas relativamente longos, nos quais os impasses da Itália do pós-guerra são tratados por uma poesia de tino civil muito acurado e de rara sensibilidade.
Neste livro, encontra-se um belíssimo e desconcertante poema intitulado “Comício”. Nele narra-se o momento em que o poeta, a vagar pelas ruas de Roma, depara-se com um comício fascista. Como se estivesse em uma cena do inferno de Dante, o poeta reencontra um fascismo tétrico e resistente na sociedade italiana e junto com ele velhos fantasmas.
Numa das passagens mais belas do texto, Pasolini chama a turba fascista de “feira de sombras”. A seguir, apresento a minha tradução do poema “Comício”, pois gostaria muito que refletíssemos sobre o que está em jogo neste agosto sombrio de 2015, brasileiramente dantesco. Para o próximo dia 16/08, está marcada uma dessas “feiras de sombras” e velhos fantasmas do Brasil da casa-grande estarão vagando por aí.
Que consigamos aprender com a sensibilidade estética e a razão civil e democrática do grande poeta italiano. Não deixemos passar impunemente o crescimento do fascismo no Brasil.
* * *
Comício
Pier Paolo Pasolini (1954) – Trad. Alexandre Pilati (2015)
Aqui é mais puro, em seu quieto
terror – se as noites já difusas
tremem aos últimos poéticos rumores
de mera vida –, o encontro dos beirais
urbanos com o breu do céu.
E muros empalidecidos, infecundos
canteiros, delgadas cornijas, no mistério
que as embebe de cosmo, familiar
e alegremente, fundam o seu segredo. Mas
esta noite uma imprevista viravolta sobre
as ignaras fantasias do pedestre se desata
e gela o seu arroubo pelas quentes, amadas
paredes mundanas…
Não mais, como num adro de passos sonoros
porque raros, de vozes transparentes
porque quietas, entre esplendores
de pedra humilde, a praça dança
no breu das esquinas: já não rumorejam
solitários os carros dos poderosos,
a tocar de raspão o flanco do jovem pária
que embriaga com seus assobios a cidade…
Uma pálida multidão enche o ar
de irreais rumores. Um palco está
acima dela, coberto de bandeiras,
de cujo branco a luz morena faz
um sudário, o verde cega, enegrece
o vermelho como o sangue seco. Espiga
ou tétrico vegetal, tremula, cérea,
ao centro, a chama fascista.
A dor, inesperada, faz-me
recuar, quase como se não quisesse ver.
E reagindo às lágrimas que apagam
o mundo tão vivo ao meu redor, no entardecer
da praça, lanço-me desesperadamente
em meio a esta feira
de sombras. E observo, escuto. Roma
ao meu redor emudece: a um só tempo
o silêncio é da cidade e do céu. Não retumba
voz alguma sobre estes gritos; o quente grão
que o maio faz germinar até no frescor
noturno, um grave e antigo gelo comprime
sobre os muros robustos, já aflitos,
como os sentidos de um menino
angustiado…E quanto mais crescem
os urros (e no coração o ódio), mais árido
se faz o deserto no entorno
da tarde, onde o trivial e indolente
sussurro está perdido na noite…
Eis quem são os exemplares vivos,
vivos de uma parte de nós que, morta,
nos havia iludido com novidade – privados
para sempre dela. E assim percebida
de repente, nesta delicada praça
oriental, eis a sua falange, espessa,
ululante – com os signos da raça
que no povo é obscura alegria
e nesta outra apenas triste obscuridade –
que delira cantando a sanidade. E esta energia
não é senão fraqueza, insulto sexual,
pois não dispõe de outro caminho
para ser paixão na mente acesa,
a não ser ações demasiado lícitas ou ilícitas:
e aqui urra tão somente a burguesa
impotência a transcender a espécie,
na confusão da fé que
a exalta, e desesperadamente cresce
no homem que não sabe que luz tem dentro de si.
Fico de pé em meio a esta multidão quase
de gelo, e desde Trinitá dei Monti,
desde os duros vegetais do Pincio, arrasados
sob as estrelas e os horizontes cerrados,
a cidade se apaga – se me apaga o peito,
meus mutilados sentimentos tornam-se
puro estupor, piedade, amargura. Lanço
ao meu redor olhares que não parecem meus,
eu que tão diferente sou. Não têm eles o aspecto
de gente viva como eu, nos seus
rostos há um tempo morto que retorna
inesperado, odioso, quase como se os belos
dias da vitória, os amenos dias
do povo, estivessem mortos.
Eis, para quem andou avante,
o passado, os fantasmas, os instintos
renascidos ao redor. Estes rostos juvenis
precocemente velhos, estes turvos
olhares de gente honesta, estas vis
expressões de coragem. Seria
a memória tão amortecida e suave
que não recorda? Entre os clamores,
caminho mudo, ou talvez sejam mudos
tais clamores na tempestade que tenho no peito.
E ao sentir que perco o próprio corpo,
o que me dá uma angústia
imprevista, em silêncio ao meu lado
aparece um companheiro. Como eu,
decidido e indeciso, move-se na massa, junto
comigo olha os rostos desta gente, como eu
o mísero corpo arrasta entre peitos
condecorados de vil orgulho. Depois sobre mim
pousa o olhar. Tristemente ardem-lhe
pudores que bem conheço; e é
muito minha aquela mirada fraterna!
tão profundamente irmão
no seu pesar que dá a estes atos um sentido
eternal! E neste triste olhar acordado,
pela primeira vez, desde o inverno
em que o seu destino foi detido,
e jamais estimado, meu irmão me sorri,
fica perto de mim. Tem dolorosa e viva,
no sorriso, a luz com a qual mirava,
obscuro partigiano, com menos
de vinte anos, o jeito como decidia
com verdadeira dignidade, com fúria
sem ódio, a nossa história nova: e há uma sombra,
humilhante e solene, naqueles pobres olhos…
Ele pede piedade, com aquele seu modesto,
imenso olhar, não para o seu destino,
mas para o nosso…E é ele, honesto demais,
puro demais, quem deve andar cabisbaixo?
Mendigar um pouco de luz para este mundo
renascido nesta obscura manhã?
1954
1. Meu irmão Guido, depois de heroica luta partigiana nas fileiras de “Osoppo”, morreu nos montes da Venezia Giulia em fevereiro de 1945. (N. A.)
Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). Acaba de lançar o livro de poemas e outros nem tanto assim (7letras, 2015). www.alexandrepilati.com
*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cujas perspectivas nos aparecem sempre encobertas por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.