Arraes e a “fraternidade dos inconformados”
Arraes nasceu, em 1916, numa pequena cidade do interior do Ceará chamada Araripe, divisa com os estados de Pernambuco e Piauí. Filho de classe média empobrecida, com muito esforço conseguiu cursar a conceituada Faculdade de Direito de Recife. Após sua formatura foi trabalhar no Instituto do Açúcar e do Álcool.
Em 1948, iniciou sua atuação na vida política, quando foi indicado pelo governador de Pernambuco, Barbosa de Lima Sobrinho, para o cargo de secretário estadual da Fazenda. Ali se destacou por suas qualificações técnicas e políticas. Dois anos depois acabou sendo eleito deputado estadual pelo Partido Social Democrático (PSD).
Conseguiu um segundo mandato em 1954 e entrou em choque aberto com o novo governador de Pernambuco, o general Cordeiro de Farias. Este havia sido eleito com o apoio dos coronéis do Sertão e Agreste – e se destacava pelo anticomunismo. Formou-se, então, um amplo movimento de oposição assentado nos setores urbanos: operários, pequena burguesia e setores da burguesia industrial e comercial modernizantes.
Aproveitando-se de um novo aumento nos impostos estaduais, os industriais e comerciantes de Recife reagiram com um lock-out, fechando quase todas as fábricas e lojas. À frente desse protesto, que tinha apoio da esquerda, estava o industrial-usineiro Cid Sampaio, ligado à União Democrática Nacional (UDN). Um editorial do jornal comunista Folha do Povo afirmou: “Trata-se de uma luta que interessa também aos trabalhadores, pois a formação de maior número de núcleos industriais fará crescer novos e poderosos contingentes de operários, que se constituirão em novas forças para ampla luta pela nossa emancipação econômica, política e social”.
Cid Sampaio, em 1958, encabeçou uma coligação de forças oposicionistas para a eleição do governo do estado. O próprio Prestes, recém-saído da clandestinidade, foi fazer campanha em Pernambuco. Milhares de recifenses saíram às ruas para assistir ao encontro histórico entre o usineiro e o mais famoso líder comunista brasileiro. Este parecia ser o melhor retrato da política de Frente Ampla – entre burgueses e operários – contra as oligarquias semifeudais nordestinas. Estávamos naquela época sob o signo da Declaração de Março de 1958, um dos pivôs da cisão dos comunistas brasileiros.
A resposta da reação pernambucana foi imediata. O arcebispo de Olinda e Recife declarou: “Candidatos que adotam princípios ideológicos e ações contrárias à doutrina da Igreja não poderão receber os votos dos católicos. Nem mesmo aqueles que, apesar de oriundos de uma família católica, tornam-se um mero instrumento dos vermelhos e sobem aos palanques em comícios promovidos por líderes comunistas cujas mãos estão manchadas de sangue”. De nada valeu a condenação eclesiástica, Cid ganhou por mais de 100 mil votos.
Arraes comandou a campanha no interior e se descuidou de sua própria candidatura à reeleição. Ele não se elegeria, mas como retribuição pelo seu esforço foi chamando a dirigir novamente a secretaria da Fazenda estadual. No ano seguinte, foi candidato a prefeito de Recife pelo minúsculo Partido Social Trabalhista (PST). Sua candidatura se tornou expressão de uma ampla Frente política que ia da UDN até o Partido Comunista do Brasil. Isso lhe garantiu uma votação expressiva e impôs outra derrota fragorosa às oligarquias pernambucanas. Corajosamente indicou dois notórios comunistas para o seu secretariado: Hiram Pereira e Aluísio Falcão, respectivamente secretários de Administração e de Cultura.
Um de seus programas mais importantes foi intitulado Movimento de Cultura Popular (MCP), cujo objetivo era a massificação da alfabetização de adultos. Foram produzidas e distribuídas milhares de cartilhas que traziam na sua primeira lição a frase: “o voto pertence ao povo”, e em outra: “um trabalhador, num sindicato de trabalhadores, é um homem forte”. O MCP organizou outras atividades, como um festival de cantadores que teve como tema A terra pertence àqueles que nela trabalham e uma exposição fotográfica sobre a Albânia socialista, que já estava em turras com a URSS.
Durante a campanha presidencial de 1960, Miguel Arraes e Cid Sampaio se desentenderam politicamente. O primeiro apoiou o marechal nacionalista Henrique Teixeira Lott e o segundo Jânio Quadros. Contra a vontade de Cid Sampaio, em 1962, Arraes foi lançado a candidato ao governo do estado, novamente pelo PST. Seu maior concorrente foi João Cleofas, apoiado por Cid Sampaio. Arraes, novamente, teve o apoio dos trabalhistas, socialistas, comunistas e das Ligas Camponesas, dirigidas por Francisco Julião. A disputa interoligárquica levou parte do PSD a se decidir por uma aliança com a esquerda e a indicar Paulo Guerra como candidato a vice-governador na chapa de Arraes.
A direção do PSD tentou ainda impor uma condição para seu apoio integral: Arraes deveria assumir o compromisso de não nomear nenhum comunista para o seu governo e assim tranquilizar os setores conservadores. Ele respondeu: “Não assumo compromisso dessa ordem. Se eleito governador do Estado, escolherei livremente o meu secretariado”.
Arraes enfrentou uma dura campanha. Seus opositores eram apoiados pelo Instituto Brasileiro de Ação Democrático (IBAD), que investiu milhares e milhares de dólares para derrotá-lo. Montou-se uma grande campanha anticomunista tentando atingi-lo. Chegaram mesmo a construir uma réplica do Muro de Berlim em pleno centro de Recife. Panfletos apócrifos mostravam Arraes ajoelhado e rezando com um rosário de foices e de martelos. O sociólogo conservador Gilberto Freyre comandava os ataques contra as ligações de Arraes com os comunistas pernambucanos.
Arraes venceu a eleição por apenas 13 mil votos. No Rio de Janeiro, o candidato derrotado anunciou: “o comunismo tomou conta de Pernambuco”. Um evidente exagero, mas o fato é que a esquerda estava, pela primeira vez, no comando político do estado. O novo governador respondeu assim às críticas que lhe faziam: “os poderosos sabem que não sou comunista e não temem meu esquerdismo. Temem outra coisa: a unidade do povo.”
No seu discurso de posse, em janeiro de 1963, afirmou: “Que ninguém se iluda: assim como não conseguiram me transformar em agitador e incendiário, também não conseguiram e jamais conseguirão me transformar em bom moço, acomodado aos privilégios, que sempre combati e posso agora mais e melhor combater no governo do estado”. Ele diz fazer parte de “uma espécie de fraternidade dos inconformados: inconformados com a miséria, com a fome, com o atraso, com o analfabetismo.
Inconformados com a condição de país subdesenvolvido e atrasado”. E contra Gilberto Freyre arrematou: “Fraternidade dos que lutam contra o falso culto do passado e da tradição, em que ainda se comprazem intelectuais saudosistas, muito mais interessados na manutenção do status quo que em qualquer outra coisa. Para esses, a tradição significa o povo na senzala e eles na casa-grande”.
Ao assumir o governo fez algo inédito: deu ordem para que a polícia não se envolvesse nos conflitos entre camponeses e proprietários de terra. Ou seja, a força pública não seria mais utilizada como instrumento de repressão ao movimento social. Ele também pressionou os usineiros para que pagassem o salário-mínimo e os direitos presentes na nova legislação voltada à defesa do trabalhador rural. Sob cobertura do poder público estadual os sindicatos rurais se fortaleceram e as greves proliferaram. Em resposta a um artigo pago, publicado pelos latifundiários, que apresentava uma lista de supostos atos de violência praticados pelos camponeses, Arraes mandou publicar no mesmo espaço uma lista de crimes cometidos pelo latifúndio contra os trabalhadores.
O novo governador manteve e ampliou sua atuação na área de educação, passando a adotar o revolucionário método de alfabetização de adultos criado por Paulo Freire, que se tornaria referência mundial. Assim, uma verdadeira revolução se operou na política pernambucana.
As principais associações empresariais responderam decretando lockout contra a suposta insegurança reinante no estado. Os usineiros retiraram o açúcar do mercado. O governador afirmou: “Fiquem certos de que a ordem será mantida. Não a ordem da minoria, mas a ordem do povo, a ordem que o povo estabeleceu neste estado” e mandou confiscar mais de 40 mil sacas da Cooperativa dos Usineiros. “Os donos da terra”, continuou Arraes, “estão subvertendo a ordem, praticando arbitrariedades e violências, por não terem ainda se acostumado com a ideia de que no governo não está um deles, para oficializar a violência e encarcerar os que reclamam direitos como até pouco acontecia”.
A luta de classes atingiu níveis explosivos e a oposição direitista começou a estocar armas e se preparar militarmente para o confronto com as forças democrático-populares e derrubar o governo Arraes. Seu velho aliado da UDN Cid Sampaio liderava a conspiração. Caixas de metralhadoras começavam a chegar clandestinamente ao estado. Existiam informações de que agentes da CIA estavam infiltrados em toda parte. Afirmava-se que o nordeste brasileiro poderia se transformar numa nova Cuba.
Em maio de 1963, numa atitude ousada, Arraes rompeu com a Aliança para o Progresso, patrocinada pelos Estados Unidos. Argumentou que os acordos que passavam ao largo do governo federal atentavam contra a soberania e a segurança nacional. No mesmo ano, a esquerda, com dificuldades, conseguiu eleger novamente o socialista Pelópidas Silveira à prefeitura de Recife. Isso fortaleceu a ideia do lançamento de Arraes para vice-presidente da República em 1965.
A partir daí surgiram os primeiros conflitos políticos entre Arraes e Goulart. Quando, em outubro de 1963, o presidente requereu que o Congresso decretasse Estado de Sítio, Arraes temeu que isso fosse utilizado para destituí-lo do governo. Acreditava que o presidente aproveitaria a ocasião para matar dois coelhos com uma única paulada: desalojar o governador direitista da Guanabara, Carlos Lacerda, e também seu adversário de esquerda, Miguel Arraes. Existia, na ocasião, uma forte pressão para uma intervenção federal no estado, argumentando-se com o perigo de insurreição no campo. Estranhamente, no dia em que Arraes faria o seu discurso contra o Estado de Sítio, tropas do IV Exército tomaram de assalto o centro de Recife. Argumentou-se que se tratava de simples manobras.
Apesar das divergências com Jango, Arraes se engajou com todas as suas forças na campanha pelas reformas de base. Ele foi um dos principais oradores do grande comício da Central do Brasil, realizado no dia 13 de março de 1964. Naqueles dias, Arraes já sentia o cerco da reação se fechando sobre o governo federal.
Numa entrevista, realizada tempos depois, afirmou: “Eu sabia que o golpe iria acontecer porque estive no comício de 13 de março de 1964 na Central do Brasil, no Rio de Janeiro. De lá fui para Juiz de Fora participar de uma concentração, e quase não consigo discursar, porque existiam 200 homens civis armados nas ruas. Eles eram comandados por um cidadão chamado Adão Rafael, que, acho, era deputado, sustentado pelo general Olympio Mourão (…). No dia 17 ou 18 de março conversei com Jango e disse a ele que o golpe estava na rua”. O presidente, contudo, ainda depositava confiança no seu próprio esquema militar.
Na madrugada de 31 de março começou o movimento militar que derrubaria o governo constitucional de João Goulart. Em Pernambuco, o IV Exército imediatamente tomou o lado dos conspiradores. Querendo evitar conflitos armados, Arraes deu ordens para que a polícia militar permanecesse nos quartéis. Mas muito sangue haveria de correr pelas ruas de Recife. No dia seguinte, uma manifestação de estudantes tomou as ruas da cidade gritando o nome de Arraes. As tropas a reprimiram à bala e mataram três estudantes. Foram, possivelmente, as primeiras vítimas fatais da ditadura que se implantava.
No início da tarde, um grupo de militares se dirigiu à sede do governo e pediu que Arraes a abandonasse. Arraes respondeu: “Não concordo em ser deposto. Recebi meu mandato do povo e somente ele poderá tirá-lo de mim. Permanecerei aqui, com minha família”. À noite, os militares voltaram e decretaram sua prisão. Ele foi conduzido até o Quartel de Socorro, em Jaboatão dos Guararapes, e em seguida enviado para a ilha-prisão de Fernando de Noronha, onde permaneceu por longos onze meses.
Poucas horas depois da prisão, a Assembleia Legislativa, cercada por tropas, aprovou por 47 votos contra 17 a destituição de Arraes. A argumentação foi de que na situação que se encontrava (preso) não poderia exercer suas funções. No dia seguinte, seria a vez do prefeito de Recife ser destituído e preso. Novamente se repetiu o mesmo ritual “democrático” e a Câmara dos Vereadores, desta vez por 20 votos a 1, decidiu retirar-lhe do cargo. A ditadura vencera em Pernambuco. Agora era esperar pelo pior.
A repressão invadiu a sede do Serviço de Extensão Cultural da Universidade Federal, dirigido por Paulo Freire. Todos os programas sociais foram destruídos e centenas de pessoas aprisionadas. Até o Palácio Episcopal foi invadido e o recém-empossado Bispo de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara, teve de telefonar ao comandante do IV Exército, general Justino Bastos, e reclamar que aquelas não eram as boas-vindas que esperava.
Meses depois, Arraes foi transferido para o Rio de Janeiro e ficou preso na Fortaleza de Santa Cruz, até que, no início de 1965, um habeas corpus veio a libertá-lo. Ameaçado por novas prisões arbitrárias, entrou para a clandestinidade e se exilou na embaixada da Argélia, país no qual acabou permanecendo por 14 anos.
Somente em 1979 pôde retornar ao Brasil. No dia 16 de setembro chegou ao Recife e foi recepcionado por mais de 50 mil pessoas. Imediatamente se engajou no movimento oposicionista e, em 1982, elegeu-se deputado federal com a maior votação do Nordeste. Entre 1984 e 1985 esteve à frente da campanha das Diretas Já! e em defesa do candidato único das oposições no Colégio Eleitoral.
Em 1987 voltou a ocupar a cadeira no Palácio das Princesas da qual havia sido retirado à força pelos golpistas em 1964. No ano de 1990 ingressou no PSB, partido do qual se tornou presidente. Seria eleito pela terceira vez governador por uma diferença superior a 300 mil votos. Foi um crítico ardoroso do neoliberalismo e, por isso mesmo, se colocou no campo de oposição a Collor e FHC. Em 1998, tentou sua quarta eleição ao governo de Pernambuco, mas foi derrotado. Em 2002, no segundo turno, participou da vitoriosa campanha de Lula à presidência da República e voltou a se eleger deputado federal. Aos 88 anos morreu apoiando o governo que ajudou a eleger. Nesse dia, todos os membros da grande “fraternidade dos inconformados”, que formavam legiões, choraram a perda de um de seus mais fiéis e diletos membros. Choraram, mas mantiveram viva no peito a persistente esperança de que os que se nutrem no culto elitista do passado – e pretendem manter o povo na senzala, enquanto desfrutam das benesses da casa-grande – não sairão vencedores nos grandes conflitos políticos e sociais que se anunciam no horizonte do país.
* Adaptação de artigo escrito quando da morte de Miguel Arraes em agosto de 2005, publicado no Portal Vermelho.
** Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.