Horizonte cerrado* 25: A “vontade coletiva” e os lados da crise
Nos últimos dias o clima de golpismo que vinha se intensificando desde o fim de junho aparentemente arrefeceu. Verificou-se, inclusive, no dia 16/08, uma queda significativa no número de manifestantes de direita que foram às ruas contra o Governo e contra as forças populares e de esquerda, apesar do contínuo incentivo da mídia para a participação nos protestos. É difícil dizer o que virá pela frente, mas já é possível perceber, em gestos de diversos setores da sociedade, uma vontade concreta de que a crise política seja debelada de alguma forma, a bem da “democracia brasileira” e da “saúde econômica” da nação.
A esse respeito, lembremos o nítido acalmar da metralhadora anti-PT na mídia tradicional, após o muito divulgado editorial das Organizações Globo. Ou, no plano econômico-financeiro, os panos-quentes intentados pela nota conjunta da Firjan e da Fiesp e também a maracujina injetada na manifestação pública do presidente do Bradesco. No plano político, como corolário conciliador tipicamente peemedebista, tira-se da cartola do Senado Federal a Agenda Brasil (ou Agenda Renan, como queiram).
Todas essas são sinalizações dos representantes dos velhos donos do poder no Brasil. Elas atendem imediatamente aos interesses da oligarquia midiática, do financismo predador, da política toma lá-dá-cá, na qual em regra quem ganha mais são os setores dominantes das elites nacionais que pouco se modificaram nos últimos trinta anos. Só lateralmente, num ou noutro caso, a calmaria proposta por esses velhos conhecidos da parte de cima de nossa sociedade tem como sentido sincero o alegado “bem do país”. Há muitos interesses difusos nesse recuo estratégico e nessa concessão de fôlego ao Governo pelas diversas representações das classes dirigentes. Dissecá-los, colocando-os em contexto histórico, é tarefa do tamanho da permanência do “lógica do usufruto do Brasil” pelas velhas elites da casa-grande. Por hora, contentemo-nos com um pouco menos.
O quadro que observamos hoje se completa com a manutenção do clima golpista aqui e acolá, a despeito do arrefecimento acima referido. Por um lado, na extrema esquerda, sempre cheia de razão, mas com dificuldades sérias para percepção da realidade e de suas possibilidades concretas. Por outro lado, na extrema direita, que deseja a volta dos militares e o linchamento em praça pública da democracia brasileira, não apenas do PT. São setores em perene surto, quase sempre alheios ao cotidiano do país. Além desses extremos, nas camadas médias, durma-se com o barulho de “paneleiros gourmets”, “madames de champanhe em punho”, lascados de classe média baixa e média, que atavicamente absorvem os comportamentos das classes dirigentes, sempre fascinados pela sua sedutora promessa de bem-estar ao preço da fidelidade irrestrita à idolatria do dinheiro e tudo aquilo que ele pode propiciar desumanizadoramente. Representantes desses setores estiveram no último dia 16/08 nas minguadas micaretas golpistas promovidas no país para celebrar o ódio e o desejo antidemocrático de escorraçar tudo o que cheire a povo, envergando as camisetas da corrupta CBF. O que se viu foi um festival de analfabetismo político e de ódio protagonizado por brancos bem alimentados e endinheirados.
Haveria, porém, no momento, valores mais altos capazes de produzirem o salto qualitativo exigido por toda superação de uma dada crise? Haveria algo para além da pasmaceira do velho “pacto pela governabilidade” conchavado no andar de cima, a que este Governo, mais à frente, também deverá favores, caso se sustente? Haveria algo para além das paranóias embotadoras da extrema esquerda e da extrema direita? Haveria algo para além do narcisismo bestial das classes médias emburrecidas e embrutecidas pelo dinheiro, as quais repetem como ventríloquas a ideologia de quem as surra?
Primeiro, lembremos, para refresco da memória dos mal-intencionados ou incautos de plantão, que as vicissitudes da vida política nacional nem começaram agora neste Governo, nem foram inventadas ou intensificadas pelos últimos governos do PT. O sistema está aí há muitos anos e talvez o que estejamos vendo (positivamente!) seja a sua evisceração. Esta é a pauta da cobertura midiática das diversas operações “anti-corrupção”, que esperamos que um dia possam valer da mesma forma para todos os segmentos da sociedade e todos os partidos políticos. Um dos nomes desse sistema (ou ao menos a sua encarnação mais recente) é Nova República que, conforme dizem alguns pensadores atuais, estaria em seus estertores. Se o momento ainda carrega fantasmas do velho Brasil, entretanto, arrastamo-nos há alguns anos, no plano político, para uma encruzilhada que pode trazer a potencialização dos avanços que a atual crise político/econômica aparentemente postergara para futuro indefinido.
Seremos capazes de formar uma “vontade coletiva”, nos termos que Gramsci enunciou tão bem nas supremas páginas dos Cadernos do cárcere ? A pergunta nos lembra, recuperando o pensador sardo, de que ainda estamos no terreno da disputa pela hegemonia. A despeito da cobertura apenas incidental da mídia coorporativa, na semana passada dois importantes eventos surgiram como lampejos importantes de uma possível construção coletiva de uma governabilidade nova, para além do esgotado esquema da Nova República. Na “Marcha das Margaridas” (12/08) e na reunião em que a presidenta inaugurou o Diálogo Com os Movimentos Sociais (13/08), vemos dois desses lampejos, que simbolizam o quanto pode a vontade humana organizada, no sentido de configurar-se como o verdadeiro motor da história.
De modo muito patente, esses foram momentos em que a defesa da democracia, a proposição e a exigência do estabelecimento de uma pauta radicalmente popular deram o tom. As atuais complicações do exercício político pela forma-partido no contexto do presidencialismo de coalizão à brasileira abrem espaço para a atuação conjunta entre entidades representativas dos diversos segmentos da luta popular e entre partidos políticos que tenham inserção institucional real e ligação histórica com o povo. Por isso parece claro que há uma oportunidade bastante aproveitável para que, através do protagonismo dos movimentos sociais, estabeleça-se a agenda popular sempre adiada por uma oposição baratinada pela sua comichão pelo poder, um Governo relativamente acuado e pelo jogo sujo dos velhos abutres do poder. Tal agenda inclui reforma agrária, reforma tributária, reforma da mídia, reforma política, avanço anti-conservador nos costumes… Tudo isso representa o sumo da “vontade coletiva” que direcionará uma saída popular para a crise e uma nova etapa da luta pela hegemonia no Brasil. Isso, é claro, caso se mantenha a mobilização daqui para frente.
Essa agenda, expressão da “vontade coletiva” de corrigir antigas disparidades da nação brasileira, precisa caminhar de baixo para cima, de fora para dentro do Congresso e do Palácio do Planalto. Os movimentos sociais, que irão às ruas no dia 20/08 em defesa da democracia, contra o golpismo e por mais avanços nas políticas sociais, precisam estar conscientes dessa sua importante missão histórica. O alcance da voz desses movimentos, que Brasília pôde bem avaliar na última semana, é fruto de um processo longo do qual um ponto culminante pode estar se avizinhando. O posicionamento anti-golpe é o mais urgente, mas há tarefas que precisam ser também colocadas nas ruas sob pena de não avançarmos.
Por isso é tão importante apoiar a permanência no poder da presidenta Dilma Rousseff. Não se trata apenas de defender cegamente o Governo pelo que ele nos concedeu até agora. Trata-se de defendê-lo pela abertura ao diálogo e pela margem de manobra política que se garante aos movimentos sociais. Ir contra o golpismo neste momento grave de nossa história é deixar viva a possibilidade renovadora que se verifica na janela aberta pela crise: o salto de qualidade (em boa medida revolucionário) poderá ser oportunizado pela manutenção da democracia brasileira, a despeito de erros e acertos do grupo político que está no poder e das vicissitudes do presidencialismo à brasileira. Apostar no caos, pela via de uma “explosão sintética” implica estar com muita disposição para juntar os cacos e, sem garantia alguma de sucesso, começar o processo de acumulação de forças populares organizadas novamente. Dizia Gramsci nos já referidos Cadernos que, no caso das explosões sintéticas, nas rupturas, “se trata de destruir mais do que construir, de remover obstáculos exteriores e mecânicos ao desenvolvimento natural e espontâneo”. Há também a necessidade desses momentos, mas os bons enxadristas sabem que, em cenários críticos, o que determina o movimento da peça é a avaliação das perdas dele decorrentes. Nesse sentido foi muito forte e simbólica a última frase da Presidenta no encontro com os Movimentos Sociais: “Eu nunca mudei de lado”. Enquanto isso, muita gente que deseja a sua queda, “nunca esteve do nosso lado”.
Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). Acaba de lançar o livro de poemas e outros nem tanto assim (7letras, 2015). www.alexandrepilati.com
*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cujas perspectivas nos aparecem sempre encobertas por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.
Ao leitor interessado, indica-se a leitura de GRAMSCI, A. O leitor de Gramsci – escritos escolhidos (1916-1935). Org. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 263-264.