Quanto terminou a apuração dos votos da eleição para a Assembleia Nacional Constituinte, ocorrida em 2 de dezembro de 1945, algo inusitado ocorreu: Um operário negro quase sem nenhuma instrução formal encabeçava a lista dos eleitos pelo Partido Comunista do Brasil (PCB) no antigo estado do Rio de Janeiro. O nome dele era Claudino José da Silva. Logo se apurou que aquele seria o único negro retinto a fazer parte do parlamento brasileiro naquela legislatura. Mas, quem era ele? Como havia chegado ali?

A adesão ao comunismo

Claudino, que nascera em 23 de julho de 1902 numa fazenda em Natividade do Carangola (RJ), era filho de lavradores pobres. Ficou órfão de mãe em 1915 e seu pai, diante de tal desgraça, perdeu o juízo. Então, ainda menino, foi obrigado a abandonar a escola primária sem tê-la concluído, e tornou-se trabalhador rural numa das fazendas da região. Ali ficou até fevereiro de 1918, quando regressou à cidade com o objetivo de aprender um oficio. Escolheu ser aprendiz de carpinteiro e mudar-se para Niterói, então capital do estado do Rio. Depois de vagar por vários empregos, ingressou como operário na construção civil.

Enviado à cidade mineira de Caxambu, para trabalhar na construção de uma escola, envolveu-se em sua primeira greve e demitiram-no. Aprendeu na carne o que era luta de classes. De volta a Niterói ingressou na Liga Operária da Construção Civil pelas mãos do comunista João Menezes, o Cunhambebe. Logo estava envolvido na luta contra a influência deletéria dos anarco-sindicalistas. Elegeu-se secretário daquela entidade sindical e, também, diretor do Clube Carnavalesco Mimoso do Maracá.

Na sede da Liga assistiu palestras de Octávio Brandão, Laura Brandão e Astrojildo Pereira. Tornou-se um grande admirador de Lênin e da Revolução Russa. Em 1927 tomou uma decisão que marcaria sua vida: assinou a papeleta de adesão ao Partido Comunista do Brasil, seção brasileira da Internacional Comunista. Nesta condição, passou a integrar a fração sindical comunista da Liga e da célula de base do Partido na Construção Civil.

Comitê Regional do Rio de Janeiro em 1946

Queria aprender mais, contudo tinha muitas dificuldades. Os folhetos tratando da teoria marxista e do leninismo eram quase todos em espanhol e francês, línguas de difícil acesso para um operário manual com quase nenhum estudo. Em todo caso, lia com interesse os jornais comunistas A Classe Operária e A Nação. Nesse ínterim, casou-se com Constância Antunes de Mattos e teve uma filha chamada Jurema.

Um dirigente iria marcá-lo naquele período, cujo nome era Eustáquio Ferreira Marinho. O próprio Claudino o descreveu: “Operário negro de curso superior, quartanista de direito na Bahia. Este negro valeu por uma grande vitória em favor dos militantes novos, contra todos os preconceitos e autossuficiências (…). Marinho explicava tudo a todos, dia e noite. Dava-nos folhetos, lia, ensinava-nos a tradução, os significados dos termos (…). Só me apartava dele para passar às pressas na minha casa, ver minha filha, pegar a marmita e seguir para o trabalho. Na noite seguinte leitura (…) e tinha ainda de arranjar um meio de mostrar ao Marinho que tinha lido alguma coisa”.

Apenas na Liga eram vendidos 500 exemplares d’A Classe Operária. O bom trabalho demonstrado por Claudino rendeu-lhe a indicação para secretaria de agitação e propaganda do Comitê Zonal do PCB em Niterói. Ele então era um dirigente intermediário e tinha suas responsabilidades aumentadas. Sem tempo, largou a diretoria do Clube Carnavalesco.

Entre 1929 e 1931 trabalhou na Estrada de Ferro Leopoldina. Participou da organização do Congresso Sindical Nacional, realizado no Rio de Janeiro em abril de 1929. Nele, foi fundada a Confederação Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), que tinha como secretário-geral o comunista Minervino Oliveira, operário marmorista e negro.

Em 1º de dezembro, logo após a Revolução de 1930, o nome de Claudino aparece num manifesto contra o desemprego, que deveria ser entregue ao interventor do estado do Rio de Janeiro. A assembleia na qual foi aprovado o documento, ocorrida no clube Mimoso Maracá, reuniu 800 trabalhadores. Estes, tendo à frente o líder negro, marcharam até o Palácio do Ingá, sede do governo estadual. Houve choques com a polícia, com “prisões, balas e mortes”. Devido a sua militância sindical comunista, em 28 de abril de 1931, acabou sendo preso e levado ao Distrito Federal. Possivelmente esta tenha sido a sua primeira prisão.

Ficha policial de Claudino em Minas Gerais:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Com os operários em Minas Gerais

Ainda no primeiro semestre daquele ano é enviado como representante da CGTB a um congresso sindical em Pernambuco. Neste estado permaneceu por vários meses, agora ligado ao secretariado comunista no Nordeste. A delação de um agente da polícia infiltrado no partido levaria à sua segunda prisão. Depois de solto, mudou-se para a Paraíba, onde continuou o seu trabalho. Preso e torturado, foi transferido à antiga capital federal. Ficou hospitalizado cerca de 9 meses devido aos maus tratos sofridos na prisão. Após restabelecer-se, deram-lhe a missão de organizar o Partido em Minas Gerais, onde militou ativamente entre 1935 e 1936.

Não precisou muito tempo para que se tornasse uma das principais referências operárias do Partido naquele estado. Foi um dos oradores numa sessão pública em homenagem a Henri Barbusse, escritor pacifista e antifascista francês recém-falecido em Moscou. O evento, que ocorreu em 9 de setembro de 1935, teve na presidência dos trabalhos o capitão Trifino Correia, antigo membro da Coluna Prestes e líder da Aliança Nacional Libertadora (ANL), que fora fechada por Vargas. O jornal A Manhã narrou o encontro entre eles: “A certa altura das palavras proferidas pelo trabalhador Claudino Silva, concretas e tocantes, o capitão Trifino Correia, não contendo a sua emoção, levantou-se e o abraçou sob o aplauso de numerosa assistência” (A Manhã, 11-09-1935).

No mês seguinte, Claudino aparece falando, em nome dos operários da construção civil, num congresso juvenil. Em 14 de outubro discursa como presidente da Frente Negra Mineira no ato público contra a ocupação italiana na Abissínia (atual Etiópia). Os oradores, “sob aplausos gerais, criticaram o regime de exploração e opressão que ainda pesa sobre a raça negra no Brasil e, ao mesmo tempo, ressaltaram o papel nobre e humano das Frentes Negras que vêm se criando em quase todos os estados do país, para cuidarem do levantamento material e cultural do elemento negro.” (A Manhã, 15-10-1935). Em novembro, compõe uma das mesas do 1º Congresso Sindical Unitário de Minas Gerais, patrocinado pela Confederação Sindical Unitária do Brasil (CSUB), criada naquele ano sob a direção comunista. 

Poucos dias após esse evento, eclodiram os levantes armados da Aliança Nacional Libertadora no Rio Grande do Norte, Pernambuco e Rio de Janeiro. Todos foram rapidamente derrotados. Iniciou-se uma violenta repressão aos comunistas e aliancistas. Milhares deles foram aprisionados e torturados. Claudino encabeçava a lista dos que deveriam ser presos em Minas Gerais. Sua vida corria perigo. Por isso, entra na clandestinidade e transfere sua ação para o interior do estado.

Nas prisões de Vargas

A caçada policial só terminaria em 15 de março de 1936, quando Claudino foi preso num sítio no município de Santa Quitéria. Acusaram-no de ser o elemento de ligação entre os comunistas mineiros e os revolucionários do Rio de Janeiro. Assim um jornal descreveu sua prisão: “A captura, orientada pelo subinspetor OtheloYori, um dos mais sagazes ‘sherlocks’ da Delegacia de Ordem Pública desta capital, verificou-se numa choupana perdida num milharal de uma fazenda e revestiu-se de circunstâncias cinematográficas. Acossado no seu refúgio, o chefe negro tentou reagir, sacando um facão e investindo contra os policiais. Esbarrando,porém, com diversos canos de revólveres, retrocedeu e entregou-se” (A Noite, 15-03-1936). Os nomes de guerra de Claudino na clandestinidade eram: Vital Pacífico, José Bispo dos Santos e Júlio Soares.

Diante da notícia de que Claudino era presidente da Frente Negra de Minas Gerais, os dirigentes da Frente Negra Brasileira (FNB), vinculados ao integralismo, protestaram. Seguem, abaixo, trechos de uma entrevista dada por um dirigente frente-negrino paulista a um jornal da época: “fomos procurados pelo Sr. Antonio Francisco Napoleão, delegado da Frente Negra Brasileira de São Paulo que nos declarou que Claudino José da Silva não pertence àquela Legião, nem tampouco exerce nela qualquer posição. (…) O atual presidente dessa entidade no estado é o Sr. Benedito de Oliveira”. Continua Napoleão: “A Frente Negra Brasileira é contra o comunismo e, por todas as formas, combaterá essa doutrina exótica e inadaptável ao Brasil (…). Quando muito, admito que Claudino José da Silva tenha pertencido à FNB de onde naturalmente foi eliminado por professar doutrina contrária à nossa”.

Enviado ao Rio de Janeiro, como os demais comunistas presos após o levante, faria um périplo por vários cárceres: Polícia Especial, Casa de Correção e presídio da Ilha Grande. Em novembro de 1937, o Delegado de Ordem Pública pediu ajuda aos integralistas para apurar as atividades de Claudino Silva em Minas Gerais – informações que serviriam no processo contra ele. Solicitação rapidamente atendida. O integralismo era um dos braços da polícia política brasileira.

No dia 24 de agosto de 1938 ele foi julgado pelo famigerado Tribunal de Segurança Nacional (TSN) e absolvido por faltas de provas. De fato, Claudino não tivera qualquer relação com o levante armado de 1935. Como a maioria dos comunistas, ficou sabendo pela imprensa. Libertado, retornou a Minas Gerais a fim de retomar sua militância.

Contudo, a repressão aos comunistas não havia arrefecido. Novas ondas de prisões e torturas se sucederam durante o Estado Novo. Em abril de 1940 Claudino foi preso e, então, condenado a dois anos de prisão. Naquele momento, quase toda a direção partidária estava na prisão. Como disse o historiador Edgar Carone: “praticamente, o PCB deixa de existir, não há nenhum foco de agitação; o que subsiste internamente são indivíduos comunistas, presos e soltos, mas não o PCB como organização”.

Um comunista negro na Constituinte 

Após ter sido libertado, Claudino se envolveu na difícil e complexa tarefa de reorganizar o partido comunista, que havia sido destroçado pela repressão. Ao lado de homens como Diógenes de Arruda Câmara, Maurício Grabois, João Amazonas e Pedro Pomar, participou do processo de montagem da 2ª Conferência Nacional do PCB, mais conhecida como Conferência da Mantiqueira, realizada clandestinamente em 1943. Ela daria uma nova direção ao Partido e imporia uma derrota moral à ditadura Vargas. Por sua dedicação, Claudino elegeu-se membro do Comitê Central, responsável pelo trabalho na Região Norte-Nordeste do país.
O ano de 1945 foi marcado pela derrota mundial do nazi-fascismo e a volta da democracia no Brasil. Primeiro veio a anistia e, depois, a legalização do Partido Comunista do Brasil. Claudino tornou-se Secretário Político do Comitê Estadual do Rio de Janeiro e foi reconduzido ao Comitê Central.

O PC do Brasil vivia o auge do seu prestígio, graças ao papel desempenhado no combate ao fascismo. Com alguns meses de legalidade e poucos dias de campanha conseguiu 10% dos votos para a presidência da República, elegeu um senador (Luiz Carlos Prestes) e 14 deputados federais constituintes. Entre eles, nove eram ou haviam sido trabalhadores manuais, ligados às lutas sindicais e populares. Isso o diferenciava de todos os demais partidos brasileiros.

Claudino elegeu-se pelo Rio de Janeiro. Teve a maior votação nos municípios de Niterói e São Gonçalo, ficando em primeiro lugar na chapa estadual do PCB com 11.232 votos. Além dele assumiu Alcides Sabença, operário em Volta Redonda. A primeira suplência coube ao major Henrique Cordeiro Oest, herói da FEB.
Claudino tornou-se o único negro retinto daquela Assembleia. Assim Jorge Amado, também eleito deputado, descreveu-o: “Homem de poucas letras, soletrava com dificuldade, pessoa de fina educação, a fina educação do povo, apesar de possuir apenas uma muda de roupa, era um dos congressistas mais elegantes, o mais elegante de todos, segundo Ivete Vargas”.  

Imagem de Claudino como deputado federal

Ele foi um dos primeiros deputados comunistas a falar da Tribuna e fez um longo discurso. O fato causou certo estranhamento entre as elites. Um editorial d’O Estado de São Paulo descreveu a cena: “O orador ocupou a tribuna por tempo excessivo, e lia imperturbável, atrapalhava-se na leitura, cometia silabadas a todo instante. (…) O orador comunista, um autêntico popular e crioulo, cumpriu o seu dever partidário até o fim, apesar dos tropeços na leitura, cujo texto rebarbativo, mesmo para letrados, tal o jargão em que estava escrito”. A grande parte de imprensa liberal-burguesa também foi irônica em relação a esse primeiro discurso. Tentava demonstrar que Claudino e os comunistas estavam num lugar que não lhes pertencia e de tudo fizeram para tirá-los de lá. 

O mesmo Jorge Amado conta o que realmente ocorreu naquele dia. “Marighella e eu (…) fomos nomeados redatores dos discursos a serem pronunciados por camaradas pouco afeitos à escrita. Nossa prova inicial, o discurso de Claudino, ganhou foros de peça incomparável, ficou famoso nos anais da Constituinte de 1946 pela extensão. (…) Da colaboração (…) resultou um senhor discurso, de fôlego, de muito fôlego: o bom Claudino levou quatro horas e vinte e cinco minutos, contados no relógio, a pronunciá-lo da tribuna. (…) No caso de Claudino (os deputados) ouviam com atenção redobrada por se tratar de um representante da bancada comunista, ainda por cima negro. Deixá-lo falando sozinho seria tirar certificado de reacionário (…). Puxávamos palmas (…), os colegas de todas as bancadas, unânimes, acompanhavam”.

Aqui cabe abrir parênteses: Marighella também era de origem negra e se orgulhava da sua herança africana. Num de seus poemas escreveu: “Ei, Brasil-africano!/ Minha avó era negra Haussá,/ ela veio da África, num navio negreiro./ Meu pai veio da Itália,/ operário imigrante./ O Brasil é mestiço,/mistura de índio, de negro, de branco”.

Além de Claudino, outros membros da bancada comunista eram alvos de preconceito das elites. Um deles era Gregório Bezerra. Este, filho de camponeses e ex-sargento do Exército, havia se alfabetizado apenas aos 25 anos de idade. Por isso se enrolou nos seus primeiros discursos parlamentares. Escreveu o Correio da Manhã que o deputado “pronunciava, na sua meia língua, um discurso que pode ser considerado notável. Não havia concordância de verbos com sujeitos e o regime de preposição chegava a ser anárquico, isto é, completamente sem governo”. Este, diferente de Claudino, não tinha ao menos um terno para exercer sua função parlamentar. Assim era a bancada comunista.     

Uma das primeiras coisas que preocuparam Claudino era a situação difícil que viviam os pracinhas brasileiros retornados da guerra, especialmente os filhos das classes populares. Ele apresentou vários requerimentos a respeito disso: propondo a nomeação uma comissão da ANC para visitar os pracinhas internados; que o governo priorizasse o acesso deles aos empregos públicos e moradias, além de garantir-lhes o ingresso nos cursos para oficiais. Nada mais justo, visto que eles haviam colocado em risco suas vidas na luta contra o nazismo. Essas propostas angariam simpatias das organizações de ex-combatentes, que dirigiram ao deputado inúmeras cartas de congratulação.

Charge publicado no jornal A Noite, em 1946

Contra o racismo

Claudino Silva, representando o Partido Comunista, esteve presente na 1ª Convenção Nacional do Negro Brasileiro, realizada em 11 de maio de 1946. O evento foi presidido por Abdias Nascimento e, ao lado de Claudino, participaram da mesa o deputado e sociólogo Gilberto Freyre (UDN), o senador Hamilton Nogueira (UDN) e o poeta negro Solano Trindade, presidente do Centro de Cultura Afro-Brasileiro.

Naquela Assembleia Constituinte conservadora, Claudino foi um dos poucos a dar atenção ao problema do preconceito racial e apresentar emendas visando a combatê-lo. Podemos dizer que o parlamentar negro falava em nome de toda a bancada comunista na qual havia uma divisão de trabalho em relação aos temas a serem tratados.

Quando um deputado conservador propôs que o parlamento fizesse uma homenagem à Princesa Isabel pela passagem do dia 13 de Maio, Claudino aproveitou a oportunidade e expôs a situação dos trabalhadores negros e as vicissitudes do processo de abolição. Segundo o jornal comunista Tribuna Popular, ele disse “que a abolição resultou de uma luta bem longa da qual participaram principalmente os negros. Lembrou que abertas as senzalas no 13 de maio (…) não foram dados recursos a esses homens para se amoldarem às novas condições de existência. Não foram dadas terras aos antigos escravos, quase todos homens do campo, trabalhadores das fazendas e dos engenhos”(TP, 14-05-1946).

Assim concluiu o seu discurso: “Senhores Constituintes, no texto da Carta que estamos elaborando, onde se trata dos direitos dos cidadãos, bem poderíamos incluir os homens de cor. E isso porque, conforme já se acentuou desta tribuna, o negro, no Brasil, vive completamente abandonado, não tendo acesso, na carreira militar, aos postos mais elevados. Não obstante a Constituição, que é a primeira a assegurar a todos o regime de igualdade democrática, o preconceito de cor ainda predomina no Brasil, e, por desgraça nossa, já vem atingindo o próprio negro, o que poderá redundar num complexo: o de inferioridade. A Assembleia Nacional Constituinte, numa homenagem verdadeiramente significativa à data que hoje se comemora, poderia fazer inserir em nossa Carta Magna um preceito democrático, fruto da vontade de todos os partidos aqui representados, sem distinção de ideologia política, segundo o qual, a todos, brancos ou negros, seria assegurada a mais ampla participação na vida nacional”.

No dia 26 de agosto participou de novo debate sobre o problema da discriminação racial, dessa vez declarando o apoio comunista a uma emenda de Hamilton Nogueira (UDN/DF) que propunha uma nova redação ao texto proposto afirmando serem todos iguais perante a lei “sem distinção de raça e cor” e estabelecendo punição às práticas do racismo.

O jornal Diário de Notícias narrou o acontecido: “O Sr. Hamilton requereu e conseguiu em destaque para uma emenda (…) mandando acrescentar (no inciso 1º artigo 141) as expressões ‘sem distinção de raça e cor’ às já existentes no Projeto: ‘todos são iguais perante a lei’. Defendendo-a, falou o sr. Hamilton Nogueira, salientando a dignidade da pessoa humana e os nascentes preconceitos de raça no Brasil”. Num momento de sua intervenção o deputado se referiu ao colega comunista: “O nobre deputado Claudino Silva, em conferência feita em torno de sua vida, deu depoimento memorável e comovente, do que foi o preconceito de raça em relação à sua pessoa. Só podemos combater essa desigualdade, estabelecendo a igualdade para todos os homens e todas as raças”. A maioria dos deputados achava que simplesmente afirmar “todos eram iguais perante a lei” seria o suficiente. A emenda foi prontamente rejeitada.

A bancada comunista, capitaneada por Claudino, apresentou nova proposta de emenda “determinando obrigatoriamente a punição, por lei, para quem fizer restrição aos direitos contidos na Constituição”. Ela propõe que “toda restrição direta ou indireta dos direitos contidos nesta Constituição ou, inversamente, o estabelecimento de privilégios diretos ou indiretos em razão de raça, religião, credo filosófico ou político, assim como toda propaganda de exclusivismo racial ou de luta religiosa serão punidos por lei” (MEDEIROS, 2013:37-38) Esta emenda, criminalizando o racismo, também foi rejeitada. O racismo era ainda um tema tabu.

Apenas em julho de 1951, depois de surgirem inúmeras denúncias de prática de preconceitos em locais públicos, acabou sendo aprovada a lei Afonso Arinos. Ela punia práticas racistas em estabelecimentos como escolas, repartições públicas, hotéis, bares e cinemas. Este tipo de discriminação passou a ser considerado contravenção (crime leve). Na prática, poucos racistas foram enquadrados nela. 

Claudino apresentou outras emendas ao projeto de Constituição: determinando a dissolução da polícia política, incompatível com um regime verdadeiramente democrático; impondo um limite máximo de 48 horas para prisão de qualquer cidadão sem apresentá-lo a um magistrado competente. Medidas democráticas que poderiam impedir uma série de atos arbitrários cometidos pelo Estado. A não aprovação dessa importante emenda traria consequências nefastas à democracia brasileira.

Durante os trabalhos da Constituinte, o comunista Jorge Amado articulou e conseguiu aprovar a emenda que garantiu a ampla liberdade religiosa no país. Até então os cultos africanos eram perseguidos pela polícia.

Sem mandato, a luta continua

A existência legal do Partido Comunista incomodava nossas classes dominantes. A bancada era vítima de constantes intimidações policiais, mesmo tendo imunidade parlamentar. Claudino Silva, ao lado do deputado Maurício Grabois e do vereador Octávio Brandão, chegou a ser detido pela Polícia Política em pleno exercício do mandato. Em maio de 1947 o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) resolveu anular o registro do PCB e, em janeiro do ano seguinte, desrespeitando a vontade de centenas de milhares de eleitores, cassou o mandato de todos os parlamentares eleitos por aquela legenda. Eram os primeiros lances da chamada Guerra Fria.

Imagem de Claudino em 1954.

Foi decretada prisão preventiva dos parlamentares cassados e Claudino teve que se esconder. A clandestinidade era algo com que já estava acostumado. Em janeiro de 1950 foi preso em Niterói pichando num muro a frase “Salve Luiz Carlos Prestes!”. Ele seria arrolado como testemunha de defesa do Cavaleiro da Esperança num processo ocorrido dois anos depois. E, em 1954, seria convocado a disputar nova eleição para deputado. Desta vez não conseguiu eleger-se. O partido comunista fez apenas dois deputados federais, eleitos por outras legendas.

No início de maio de 1958, Claudino foi preso em Minas Gerais. Contudo, logo seria solto em razão da revogação das prisões preventivas existentes contra os dirigentes comunistas desde o governo Dutra. Este havia sido um dos compromissos assumidos por Juscelino Kubistchek durante a campanha eleitoral para a presidência da República.
Então na legalidade Claudino pôde atuar abertamente, participando do Conselho Sindical de Niterói e viajando a um encontro internacional de trabalhadores na URSS, ocorrido no segundo semestre de 1963. Quando houve a grande cisão dos comunistas brasileiros e o surgimento de dois partidos, entre 1961 e 1962, ele optou por ficar ao lado de Prestes no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Seus antigos companheiros de bancada João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Pomar e Diógenes Arruda seguiriam outro caminho, reorganizando o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). 

Este foi um período de grandes esperanças. Acreditava-se que o Brasil, através das reformas de base e de sucessivos governos progressistas, poderia transitar pacificamente a um novo regime político e social. Ilusão rapidamente desfeita, pois a rota traçada foi bruscamente interrompida pelo golpe militar de 1º de abril de 1964. Claudino entrou novamente na mira da polícia política e se escondeu. Em 27 de junho de 1968 seria condenado pela auditoria da 5ª região militar a um ano de prisão por distribuir material subversivo em Joinville. Segundo o processo, ele fazia parte de uma célula comunista no Paraná.

A última notícia que temos de Claudino Silva foi extraída de sua biografia divulgada pelo Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ). Ali se afirma: “Luiz Carlos Prestes, ao regressar do exílio em 1979, procurou seus velhos companheiros do PCB. Entre eles, Claudino José da Silva. Vivia no estado do Rio, velho, doente e abandonado. Prestes conseguiu sua internação na Casa São Luiz, instituição dedicada a atender a chamada ‘velhice desamparada’. Claudino passou a ter tratamento adequado, o que lhe permitiu viver condignamente ainda alguns anos. Faleceu em fevereiro de 1985, aos 82 anos de idade. Por orientação de Prestes, foi velado no saguão da Assembleia Legislativa do estado do Rio de Janeiro, onde havia atuado como deputado comunista nos anos de 1946-1947”.

* Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

Jornais consultados

A Classe Operária
A Nação (1927)
A Manhã (1935)
Tribuna Popular (1945-1947)
Imprensa Popular (1947-1958)
Voz Operária (1949-1959)
Novos Rumos (1959-1964)

Bibliografia

AMADO, Jorge. Navegação de Cabotagem. Rio de Janeiro: Record, 1993.
ARQUIVO DE MEMÓRIA OPERÁRIO DO RIO DE JANEIRO (AMORJ). Partido Comunista Brasileiro: da insurreição armada à união nacional (1935-1947). Rio de Janeiro: AMORJ/UFRJ, 2009.
BRAGA, Sérgio Soares. Quem foi quem na Assembleia Nacional Constituinte de 1946. Um perfil socioeconômico da Constituinte de 1946. Brasília: Câmara dos Deputados, 1998.
_________. Luiz Carlos Prestes. O Constituinte, o Senador (1946-1948). Brasília: Senado Federal, 2003 (Edições do Senado Federal, vol. 10).
BRASIL. Assembleia Constituinte. Anais da Assembleia Constituinte de 1946. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. 1946-1951.
DULLES, John W. F. O Comunismo no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
GIOVANNETTI NETTO, Evaristo. O PCB na Assembleia Constituinte de 1946. São Paulo: Novos Rumos, 1986.
MAGALHÃES, Mário. Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
MEDEIROS, Juliano. Das profundezas da história: um comunista negro na Assembleia Nacional Constituinte de 1946. Monografia de conclusão de curso de história. Brasília: UnB, 2013.
NOGUEIRA, Octaciano. A Constituinte de 1946. Getúlio, o sujeito oculto. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
SILVA, Claudino José da. Roteiro biográfico para o IV Congresso do Partido Comunista do Brasil.