Escrevendo três meses antes do pedido de concordata do banco Lehman Brothers, marco do início da atual crise econômica mundial, o professor de economia da Universidade da Califórnia em Davies, Gregory Clark, publicou uma resenha crítica à obra-prima de Polanyi questionando-se sobre as razões da longevidade de seu interesse. Afinal:

“A história não foi gentil com os prognósticos de Karl Polanyi. O capitalismo de livre mercado é um sistema estável e resistente na maior parte do mundo – particularmente, nos países de língua inglesa. […]. O padrão-ouro desapareceu, mas em seu lugar surgiu um sistema de taxas de câmbio flutuantes regulado por mecanismos de mercado. […]. Instrumentos mais eficientes de administração monetária reduziram enormemente a severidade dos ciclos de negócios. Medido pelo sucesso dos mercados, a civilização do século 19 parece estar desfrutando de um renascimento. O verdadeiro enigma do livro de Polanyi é, então, por que razão seu fascínio é tão duradouro tendo em vista a desconexão entre suas predições e as realidades modernas. […]. Assim, a popularidade de Polanyi representa o triunfo da vontade e do romantismo sobre a ciência em disciplinas como a sociologia”.1

Ainda que o contexto presente tenha arruinado o otimismo de Clark sobre a estabilidade dos mercados, argumentaremos que, no tocante à sociologia crítica o livro de Karl Polanyi, A grande transformação, talvez seja a obra que mais perto tenha chegado de traduzir para a linguagem da teoria social o grande consenso popular formado no pós-Segunda Guerra em torno da necessidade imperiosa de regular o capitalismo a fim de proteger a humanidade dos efeitos deletérios da mercantilização do trabalho, da terra e do dinheiro. Publicado em 1944, mesmo ano do aparecimento do livro de Friedrich von Hayek, O caminho da servidão, o projeto intelectual por trás de A grande transformação foi, em grande medida, forjado nos anos 1920 enquanto Polanyi vivia em uma Viena “socialista” que marcou de forma indelével suas convicções socialistas democráticas.

Aliás, as trajetórias, os destinos e as fortunas críticas de Polanyi e Hayek não deixam de sintetizar boa parte das desventuras do capitalismo no pós-Segunda Guerra. Chegados juntos à Inglaterra como imigrantes no início dos anos 1930, ambos viveram na mesma Viena socialista que fascinou Polanyi e horrorizou Hayek e seu mentor intelectual Ludwig von Mises.2 Nos anos 1920, Hayek e von Mises ficaram traumatizados pela experiência da prefeitura socialista de Viena que por meio de suas políticas públicas de moradia popular e proteção social favorecia as classes trabalhadoras. Ambos consideraram o socialismo em todas as suas múltiplas variedades, utópicas, reformistas ou revolucionárias, como uma usurpação das liberdades individuais. E decidiram olhar para trás, isto é, para a utopia do mercado auto-regulado, a fim de recuperar essa ideologia completamente desacreditada pela grande crise de 1929.

Hayek e Polanyi são antípodas perfeitos. Principal representante da quarta geração da escola austríaca de economia, Hayek emigrou da Viena vermelha do pós-guerra para a Inglaterra onde lecionou na London School of Economics (LSE) e influenciou a criação do Instituto de Assuntos Econômicos (IEA) que, posteriormente, ajudaria a formatar as políticas neoliberais implementadas por Margareth Thatcher. Finalmente, Hayek estabeleceu-se nos Estados Unidos, onde se transformou na figura ideologicamente mais proeminente associada ao Departamento de Economia da Universidade de Chicago. De desajustado na Viena socialista dos anos 1920 a ganhador do prêmio Nobel de economia em 1974: Hayek foi redimido pela grande onda de mercantilização inaugurada nos anos 1970.

Polanyi viveu entre Budapeste e Viena, cidades onde, antes de 1914, revolucionários russos eram bem-acolhidos por sua própria família. Manifestando inclinações socialistas desde jovem, Polanyi rapidamente evoluiu da liderança ativa do movimento estudantil húngaro a fundador do Círculo Galileu (ao lado de György Lukács) e admirador da coragem e audácia dos revolucionários marxistas. Em 1914, Polanyi ajudou a fundar o Partido Radical Húngaro, atuando como seu secretário-geral. Durante a I Guerra Mundial, ele lutou no front russo e terminado o conflito apoiou o célere governo socialdemocrata húngaro.

Nos anos 1920, vivendo em Viena, ele envolveu-se em debates sobre a contabilidade socialista, chegando a delinear um modelo democrático, funcionalista e associativo de processo de deliberação socialista tanto no âmbito econômico, quanto na esfera política. Entre 1924 e 1933, atuando como editor de uma prestigiosa revista econômica austríaca, Polanyi criticou a Escola Austríaca de Economia por sua visão abstrata e desenraizada dos processos econômicos.3 Desde então, os conflitos entre a economia de mercado, assim como a importância da deliberação democrática na economia moderna transformaram-se temas frequentes em seus trabalhos.

Em 1933, após a ascensão de Hitler ao poder, Polanyi foi demitido da revista onde trabalhava e mudou-se para Londres onde passou a lecionar numa associação educacional de trabalhadores por um salário mínimo. Suas pesquisas e anotações de aula serviram de base para a redação do livro A grande transformação. Em 1940, Polanyi e sua esposa, a revolucionária comunista húngara Ilona Duczyńska, mudaram-se para Vermont nos Estados Unidos onde ele passou a lecionar em uma faculdade local. Após a II Guerra Mundial e devido ao sucesso obtido pela publicação d’A grande transformação Polanyi foi convidado a lecionar na Universidade de Columbia. No entanto, o passado comunista de sua esposa os impediu de obter o visto estadunidense. Assim, o casal mudou-se para o Canadá, onde Polanyi continuou sua pesquisa sobre a formação do sistema econômico moderno a partir de uma abordagem histórica comparativa, lecionando eventualmente, em Columbia, até por volta de sua morte em 1964.4

O legado teórico de Karl Polanyi espalhou-se por várias especialidades das ciências sociais, tais como a sociologia histórica, a economia política e a antropologia social. A abordagem “substantivista” do enraizamento das relações econômicas na sociedade, assim como a crítica à ideia do mercado auto-regulado, ambas centrais nos trabalhos de Polanyi, encontram-se, por exemplo, tanto na base das elaborações da Teoria Francesa da Regulação quanto na sociologia crítica da economia de Pierre Bourdieu. Se é verdade que seu legado intelectual influenciou muitos campos das ciências humanas e sua influência acadêmica é reconhecidamente mais abrangente do que a de seu antípoda, Friedrich Hayek, por exemplo, foi a capacidade de sintetizar o “espírito da época” fordista em seu afamado livro que fez de Polanyi um autor incontornável da sociologia.

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No Seminário Cidades Rebeldes, Ruy Braga fez uso do arcabouço teórico desenvolvido por Karl Polanyi em sua intervenção no debate sobre a luta de classes no Brasil contemporâneo. Confira:

NOTAS

1 Gregory Clark. “Reconsiderations: ‘The Great Transformation’ by Karl Polanyi”. New York Sun, 4 de junho de 2008.
2 Para mais detalhes, ver Kari Polanyi Levitt. From the Great Transformation to the Great Financialization: On Karl Polanyi and Other Essays. Nova Iorque, Zed Books, 2013.
3 Para uma visão matizada a respeito da compreensão de Polanyi acerca do duplo processo de desenraizamento e re-enraziamento da economia, ver Gareth Dale. Karl Polanyi: The Limits of the Market. Malden: Polity Press, 2010. Sobre as raízes teóricas e políticas da visão do socialismo democrático de Polanyi, ver Kari Polanyi Levitt. From the Great Transformation to the Great Financialization: On Karl Polanyi and Other Essays. Nova Iorque, Zed Books, 2013.
4 Para mais detalhes biográficos de Karl Polanyi, ver Kari Polanyi Levitt. The Life and Work of Karl Polanyi. Montreal, Black Rose Books, 1996.

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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista, todos da editora Boitempo. É também um dos autores do livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. (Boitempo, Carta Maior, 2013). 

Publicado no blog da Boitempo