Ustra: um corpo sem dignidade
OBITUÁRIO COM HURRAS, de Mario Benedetti
(…)
viva
morreu o cretino
vamos festejá-lo
e não chorar como de hábito
que chorem os que são como ele
e que engulam suas lágrimas
foi-se embora o monstro magnata
acabou-se para sempre
vamos festejá-lo
sem ficar mornos
sem acreditar que este
é um morto qualquer
vamos festejá-lo
sem ficar frouxos
sem esquecer que este
é um morto de merda
***
Ustra morreu hoje. Com 83 anos, faleceu tranquilamente em um hospital, com tratamento médico adequado e na companhia de sua família. Em tudo o oposto do sofrimento atroz que impingiu às suas vítimas e seus familiares.
Coronel da ditadura, Ustra comandou o principal centro clandestino de detenção e tortura brasileiro. No DOI-CODI de São Paulo, onde era conhecido como ‘major Tibiriçá’, pelas suas mãos sujas de sangue, entre 1970 e 1974, passaram ao menos 50 pessoas que foram mortas ou estão até hoje desaparecidas, além de mais de 500 pessoas torturadas barbaramente.
Sua família terá um corpo presente para velar e consumar o luto da sua perda. Não será um corpo torturado como o dos milhares de presos políticos, que passaram pelos cárceres ilegais da ditadura brasileira. Não será um corpo enforcado como o de Vladimir Herzog. Não será um corpo desfigurado como o de Eduardo Leite (Bacuri). Não será um corpo mutilado, como o de Luiz Eduardo da Rocha Merlino. Não será um corpo desaparecido, como o de Hirohaki Torigoe. Não será um corpo baleado, como o de Carlos Marighella. Não será um corpo sepultado como indigente ou com nome falso, como no caso de Luiz Eurico Tejera Lisboa. Não será um corpo jogado em uma vala comum, como o de Flávio Carvalho Molina. Não será um corpo enterrado e desenterrado diversas vezes para depois ser atirado no alto mar, como o de Rubens Paiva.
Os médicos que trataram do Ustra não faltarão com a verdade, ao contrário dos peritos e legistas que o auxiliaram a encobrir seus crimes na ditadura. Seu atestado de óbito não será forjado com versão falsa da causa mortis como “atropelamento”, como no caso de Alexandre Vannucchi Leme, “tentativa de fuga”, como no caso de Luiz Hirata, “tiroteio”, como no caso de Sonia Maria de Moraes Angel Jones, ou “suicídio”, como no caso de Manoel Fiel Filho. Tampouco constará, neste documento, uma morte fictícia e não esclarecida como nos atestados emitidos conforme a Lei dos Desaparecidos Políticos (Lei 9.140 de 1995).
Mas seu corpo, que será enterrado ou cremado inteiro, com atestado de óbito verdadeiro, com todos os cuidados médicos e na companhia de seus familiares que dele poderão se despedir é um corpo sem dignidade. É o corpo de um torturador covarde. É o corpo de um violador dos direitos humanos. É o corpo de alguém que matou, torturou, desapareceu e ainda achava que agiu corretamente. Morre reivindicando seus atos em gozo da liberdade e da impunidade que os verdugos não merecem. É o corpo impune que atesta a falta de justiça da nossa democracia.
Ao menos ele foi um dos 377 torturadores reconhecidos oficialmente pela Comissão Nacional da Verdade e também foi declarado torturador pelo Judiciário paulista em histórica ação da família Teles.
Outros assassinos da ditadura ainda estão vivos. Cabe agora ao Judiciário parar de torturar a justiça e a verdade. Que a lembrança dos nomes daqueles e daquelas que tombaram resistindo à ditadura e que foram vítimas diretas da violência do Ustra não nos permita esquecer esse passado e nos motive a lutar ainda mais pela justiça:
Alceri Maria Gomes da Silva, Alex de Paula Xavier Pereira, Alexander José Ibsen Voerões, Alexandre Vannucchi Leme, Ana Maria Nacinovic Corrêa, Ângelo Arroyo, Antônio Benetazzo, Antônio Carlos Bicalho Lana, Antônio Sérgio de Mattos, Arnaldo Cardoso Rocha, Aylton Adalberto Mortati, Carlos Nicolau Danielli (Carlinhos), Dorival Ferreira, Edson Neves Quaresma, Eduardo Antônio da Fonseca, Emmanuel Bezerra dos Santos, Flávio Carvalho Molina, Francisco José de Oliveira (Chico Dialético), Francisco Seiko Okama, Frederico Eduardo Mayr, Gelson Reicher, Gerardo Magela Fernandes Torres da Costa, Grenaldo de Jesus da Silva, Helber José Gomes Goulart, Hélcio Pereira Fortes, Hiroaki Torigoe, Iuri Xavier Pereira, João Batista Franco Drummond, João Carlos Cavalcanti Reis, Joaquim Alencar de Seixas, Joelson Crispim, José Ferreira de Almeida, José Idésio Brianezi, José Júlio de Araújo, José Maria Ferreira Araújo, José Maximino de Andrade Netto, José Milton Barbosa, José Roberto Arantes de Almeida, Lauriberto José Reyes, Luiz Eduardo da Rocha Merlino, Luiz Eurico Tejera Lisboa, Luiz José da Cunha, Manoel Fiel Filho, Manoel Lisboa de Moura, Manuel José Nunes Mendes de Abreu, Marcos Nonato da Fonseca, Norberto Nehring, Pedro Ventura Felipe de Araújo Pomar, Raimundo Eduardo da Silva, Roberto Macarini, Ronaldo Mouth Queiroz, Rui Osvaldo Aguiar Pfützenreuter, Sônia Maria Lopes de Moraes Angel Jones, Virgílio Gomes da Silva, Vladimir Herzog e Yoshitane Fujimori
Renan Quinalha é advogado.