Por Augusto Buonicore

Em 10 de novembro de 1945, o Partido Comunista do Brasil (PCB) obteve o seu registro legal junto ao Tribunal Superior Eleitoral e, uma semana depois, lançou a candidatura do engenheiro Yedo Fiúza à presidência da República e uma chapa própria às eleições para a Assembleia Nacional Constituinte. Fiúza havia sido prefeito de Petrópolis (RJ) e, durante o Estado Novo, exerceu o cargo de diretor-geral do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER). Era muito próximo de Getúlio Vargas. Prestes tinha esperanças de que o ex-ditador pudesse apoiá-locontra as candidaturas do brigadeiro Eduardo Gomes e do marechal Eurico Gaspar Dutra, arquitetos do golpe que o havia derrubado do poder alguns meses antes.

O pleito ocorreu em 2 de dezembro. Foi a maior batalha eleitoral travada pelos comunistas até aquele momento e os resultados não podiam ser mais positivos. Eles conquistaram 10% dos votos, elegendo 14 deputados federais e um senador: Luiz Carlos Prestes.Os eleitos foram João Amazonas (DF), Maurício Grabois (DF), Joaquim Batista Neto (DF), José Maria Crispim (SP), Osvaldo Pacheco (SP), Jorge Amado (SP), Mário Scott (SP), Gregório Bezerra (PE), Agostinho Dias de Oliveira (PE), Alcedo Coutinho (PE), Claudino José da Silva (RJ), Alcides Sabença (RJ), Carlos Marighella (BA), Abílio Fernandes (RS). A grande parte deles era de origem popular, contrastando com as demais bancadas.
Contudo, a eleição do marechal Dutra representou um duro golpe à recém-conquistada democracia brasileira. O novo presidente havia sido um dos homens fortes do Estado Novo e demonstrara simpatias pelo fascismo. Mesmo tendo sido um dos responsáveis pela derrubada de Getúlio, acabou recebendo o apoio do ex-presidente na reta final da campanha –fato decisivo para a sua vitória. Apesar desse revés, o clima era de otimismo. Ninguém acreditava ser possível um retrocesso depois da acachapante derrota das potências nazi-fascistas.
Segundo Diógenes Arruda Câmara, numa entrevista dada em 1979, “o salário do deputado federal era de 24 mil cruzeiros; deste valor, o parlamentar ficava com 1.200 cruzeiros. Isto, os casados. Os solteiros, como Amazonas e Marighella, ficavam com apenas 600 cruzeiros. Antes de assumir os mandatos, os comunistas tinham que assinar uma carta renunciando ao cargo, que poderia ser apresentada a qualquer momento pela direção partidária”, caso não se comportasse de maneira condizente com a condição de parlamentar comunista.
Apesar de pequena e muito discriminada, essa bancada teve destacada atuação no processo constituinte. A primeira grande polêmica foi sobre a questão da manutenção ou não da Constituição estado-novista de 1937, enquanto não se aprovasse a nova Carta Magna. Os deputados comunistas defenderam que, depois de instalada a nova Constituinte, a antiga Constituição deixaria de vigorar. Esta tese democrática foi derrotada pela maioria conservadora. Assim, os mecanismos coercitivos criados pelo Estado Novo continuaram vigorando.
Após esta votação, deputados governistas foram vaiados por alguns populares revoltados. O PCB acabou sendo responsabilizado pelo que aconteceu. Desde então, o Palácio Tiradentes, onde se reuniam os constituintes, foi cercado pela Polícia Especial eas galerias esvaziadas cada vez que ali se demonstrasse apoio aos parlamentares comunistas.


Diante da postura altiva assumida pelos comunistas, o jornal O Estado de S. Paulo afirmou: “Os comunistas, já no primeiro dia (…) se salientaram como elementos perturbadores da marcha dos trabalhos (…). Na realidade o que demonstram é a incompatibilidade de seus próprios métodos e ideologia com a prática da democracia e o respeito que se deve ao Parlamento” (OESP, 05-02-1946). Desde o início dos trabalhos do Parlamento, as elites brasileiras começaram a plantar as sementes para a futura cassação do Partido Comunista.
A maioria governista incluiu no Regimento Interno o preceito de que, durante as sessões, os constituintes não poderiam tratar de outros assuntos senão das matérias que diziam exclusivamente respeito à nova Constituição. Isto limitava o poder dos deputados e dava carta branca para o presidente Dutra legislar através de decretos-leis cada vez mais antidemocráticos. Dia a dia, o Poder Legislativo ia se subordinando aos ditames do Executivo, tornando-se uma instância subalterna e homologatória de decisões tomadas fora dele.
No início dos trabalhos foi eleita uma comissão para apresentar um anteprojeto constitucional a ser debatido pelo conjunto dos deputados. Esta “grande comissão”, como era chamada, refletia a correlação de forças existente no plenário da Constituinte, amplamente favorável aos conservadores. Foi composta por 37 membros: Dezenove do Partido Socialdemocrata (PSD), dez da União Democrática Nacional (UDN), dois do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), um do Partido Comunista do Brasil (PCB) e cinco de outras legendas menores. Isto não correspondia à proporção de votos adquiridos nas urnas.

Quando o documento foi apresentado, Prestes anunciou: “Votamos contra o projeto por ser no seu todo e na maioria dos seus capítulos a negação daquilo por que prometemos lutar (…). É extenso porque multiplica exceções, e, inúmeras vezes, se põe a limitar, senão a negar, direitos, preceitos e afirmações do próprio projeto (…). Não se diz nada de prático sobre a reforma agrária, sobre a maneira de acabar com os restos feudais na agricultura, sobre a necessidade do ensino gratuito, sobre a gratuidade indispensável da Justiça, sobre as medidas práticas que assegurem o progresso do Brasil”.

Os comunistas apresentaram centenas de emendas visando a melhorá-lo. A quase totalidade delas foi rejeitada. Diante da correlação de forças desfavorável no interior do parlamento, realizaraminúmeras manifestações em defesa de uma Constituição democrática e de caráter popular. Contudo, no início de abril de 1946, o governo proibiu comícios no Distrito Federal. Para as classes dominantes, ao povo caberia apenas o papel de expectador passivo.
A bancada liderada por Prestes colocou-se contra o presidencialismo imperial e propôs um sistema misto, com um Parlamento fortalecido.Após a derrota dessa emenda, os comunistas protestaram: “Aqui em nossa pátria, a verdade é que o presidencialismo tem sido a ditadura, sempre ditadura; benéfica ou maléfica, mas sempre ditadura; o contrário, portanto, da democracia (…). O projeto que temos em mãos agrava-a ainda mais, e os poderes, nas mãos do presidente da República, são os mesmos das Constituições anteriores, mas aumentados”. Todas as emendas visando a relativizar o presidencialismo foram rejeitadas.
Defendeu a extinção do Senado e a redução do tempo dos mandatos dos deputados para dois anos. Isso aumentaria o controle dos eleitores sobre os eleitos. Advogou a extensão do direito de voto aos analfabetos. Na defesa desta última proposta se destacou Gregório Bezerra. “Não é possível”, afirmou, “na época que atravessamos, que cerca de 30 milhões de brasileiros fiquem privados do direito de cidadania, da faculdade de escolher os candidatos de sua preferência para representar, nesta assembleia, seus interesses, seus direitos e suas reivindicações”.
Outra grande batalha foi quanto à defesa da autonomia dos mais importantes municípios brasileiros. O anteprojeto, impregnado pelo espírito centralista e autoritário, estabelecia que os prefeitos do Distrito Federal e das capitais seriam indicados pelo presidente da República e governadores. Nos balneários, centros portuários, e nos quais existissem unidades militares importantes, também não haveria eleições diretas. Este era um casuísmo visando a impedir que a oposição, especialmente o Partido Comunista, pudesse vencer nos municípios mais importantes do país. Reforçava-se assim o poder do presidente e dos governadores. Novamente as teses conservadoras foram vitoriosas. A democracia plena não chegaria a muitas cidades brasileiras, que não teriam o direito de eleger livremente seus prefeitos.
Foi João Amazonas que encaminhou a votação das emendasgarantindo o direito à greve e à liberdade sindical. Afirmou: “No título que ora votamos, determina o artigo 158: ‘É livre a associação profissional ou sindical’ (…). Estabelece, portanto, o princípio (da liberdade sindical), mas, em seguida, faz restrições que, a meu ver, negam a livre associação profissional ou sindical. É quando reza ‘(…) ser-lhe-á regulada por lei a forma de constituição, a representação legal nos contratos coletivos de trabalho e o exercício de função delegada pelo poder público’. A forma de constituição de sindicatos deve ser a mesma das sociedades civis em geral (…). Se se conserva a expressão de que lei regula ‘a forma de constituição’ dos sindicatos, estamos negando o princípio da associação profissional ou sindical. Bastaria que se dissesse que a lei poderia regular que os sindicatos seriam constituídos segundo o princípio da corporação ou à base de indústria, ou ainda à base de empresa. Qualquer dessas formas, que a lei ordinária admitisse, iria contrariar na prática o direito de livre associação profissional ou sindical”. (ALMINO, 1980:142).
A Assembleia Constituinte aprovou ser “livre a associação profissional e sindical”, determinando, em seguida, que seria “regulada por lei a forma de sua constituição, a sua representação legal nas convenções coletivas de trabalho e o exercício de funções delegadas pelo poder público”. Caberia a uma lei ordinária regulamentar a forma de organização dos trabalhadores. Como ela já existia – a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), promulgada no Estado Novo–, tudo continuou como antes. O Ministério manteve sua prerrogativa de intervir e até fechar as entidades sindicais. Nestes e em outros artigos, ficava estampada a ambiguidade das Constituições burguesas em relação ao proletariado. Afirma-se um direito em um parágrafo para imediatamente negá-lo em outro.
Quanto à questão do direito à propriedade, os comunistas procuraram relativizá-lo e subordiná-lo a outros direitos e interesses maiores. Sua emenda afirmava: “É garantido o direito de propriedade, desde que não seja exercido contra o interesse social ou coletivo, ou quando não anule, na prática, as liberdades individuais proclamadas nesta Constituição ou ameace a segurança nacional”. Abria a possibilidade de que as “empresas de serviços públicos (…), em ritmo mais ou menos acelerado, pudessem passar às mãos do Estado” (ALMINO, 1980:107). Estas eram verdadeiras heresias aos ouvidos das classes dominantes e seus ideólogos: os liberal-conservadores. Para eles, o direito à propriedade privada era sagrado e se sobrepunha a todos os demais direitos.
Os deputados do PC do Brasil se colocaram frontalmente contra a aprovação do artigo que determinava o pagamento prévio, em dinheiro e pelo justo valor, das propriedades desapropriadas por utilidade pública e interesse social. Estas condições draconianas inviabilizariam toda e qualquer tentativa legal de realizar a reforma agrária e urbana. Neste item a esquerda foi novamente derrotada e os grandes latifundiários e especuladores imobiliários puderam continuar usufruindo livremente de sua propriedade à custa da miséria do povo.
A nova Constituição foi promulgada em 18 de setembro de 1946. Nas suas disposições transitórias determinava a realização de eleições para as Assembleias constituintes estaduais e Câmara dos Vereadores do Distrito Federal. Nestas, os comunistas tiveram nova e surpreendente vitória. Eles elegeram 46 deputados estaduais em 16 unidades da Federação. No Distrito Federal conseguiram eleger 18 vereadores e se tornou a maior bancada.
Nas eleições suplementares para a Câmara Federal, realizadas em São Paulo, foram eleitos Pedro Pomar e Diógenes Arruda, embora pela legenda do Partido Social-Progressista (PSP) de Adhemar de Barros. A bancada federal comunista chegoua 16 deputados. João Amazonas e Cândido Portinari tiveram estupendas votações para o Senado – o primeiro no Distrito Federal e o segundo em São Paulo. A fraude e uma sórdida campanha anticomunista, que teve na Igreja Católica seu principal instrumento, impediram que o Partido Comunista pudesse ter mais dois senadores.


A mudança da situação internacional, com a eclosão da guerra fria, teve reflexo na política nacional. Tiveram início as manobras e provocações no sentido de colocar na ilegalidade o Partido Comunista. Um dos pretextos foi a declaração dada por Luiz Carlos Prestes. Questionado sobre qual seria a posição dos comunistas brasileiros diante de um conflito com a URSS, ele afirmou: “no caso (…) de ser o Brasil arrastado a uma guerra contra a União Soviética, guerra que, do nosso ponto de vista, só poderia ser uma guerra imperialista – seríamos contra e lutaríamos contra o governo que levasse o país a uma guerra dessa natureza” (ALMINO, p.157).
Esta declaração fez com que se levantasse uma onda de protesto dos setores conservadores. Era a prova de que o Partido Comunista não passaria de uma marionete dos soviéticos e precisaria ser fechado. Mais tarde, uma diligência policial na sede nacional do PCB encontrou uma cópia de um projeto de reforma do Estatuto, que ainda estava sendo debatido. Forjou-se então a tese de que ele teria dois estatutos: um registrado no cartório e outro ilegal, que de fato regeria a vida dos militantes. Por isso, no dia 7 de maio de 1947, o TSE decidiu-se pela cassação do registro partidário. Imediatamente suas sedes foram invadidas, depredadas e fechadas pela polícia.
Apesar de seu partido ter sido colocado na ilegalidade, os comunistas tiveram um excelente desempenho nas eleições municipais que ocorreram no final de 1947. Na cidade de São Paulo elegeram 15 vereadores, a maior bancada da Câmara Municipal, mas foram impedidos de tomar posse. Em Santos foram eleitos 14 vereadores. Em Recife obtiveram 12 cadeiras numa Câmara de 25 assentos e em Olinda tambémfizeram a maior bancada. Esse fenômeno se repetiu na maioria das grandes cidades onde existia uma forte composição operária.
Em Santo André (SP),fizeram o prefeito, Armando Mazzo, e uma bancada de 13 vereadores. Elegeram-se pelo Partido Social Trabalhista (PST). Menos de 24 horas antes da posse, o TSE decidiu pela cassação de todos eles. A própria direção nacional daquela legenda havia feito o pedido, alegando que os comunistas tinham tomado de assalto a sigla no município. Na cidade de Jaboatão, importante centro ferroviário em Pernambuco, o médico Manoel Rodrigues Calheiros se elegeu prefeito – o primeiro prefeito comunista a assumir no Brasil. Durante todo o seu mandato sofreu dura perseguição por parte dos governos estadual e federal.
Alguns dias depois, os comunistas sofreram mais um duro golpe: em 10 de janeiro de 1948, o projeto de cassação dos eleitos pela legenda do PCB foi aprovado na Câmara dos Deputados. Em seguida, decretou-se a prisão preventiva de suas principais lideranças, que foram obrigadas a entrar na clandestinidade. Encerrava-se, assim, mais uma fase da vida do Partido Comunista do Brasil.

* Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

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