O fim da Guerra Fria, com o colapso da União Soviética, liberou a China da concentração na defesa da sua massa terrestre, permitindo-lhe dividir as atenções com a defesa dos mares costeiros. Deng Xiaoping, na famosa formulação estratégica dos “24 caracteres” (1989), já enfatizara a necessidade de fortalecer o poderio marítimo da RPC, e pôde agora nomear o respeitado Almirante Li Huaqing para a vice-presidência da Comissão Militar Central, com a missão de elaborar uma estratégia naval moderna para o país. Huaqing criou o conceito da “defesa ativa das águas próximas”. No espaço em questão, delimitado por uma chamada “primeira cadeia de ilhas”, distinguem-se a Ilha de Taiwan, o Mar do Leste da China e o Mar do Sul da China. A ideia dessa primeira cadeia de ilhas, descendo das Ilhas Kurilas até Borneo e girando aí em direção à costa do Vietnã, surgiu entre estrategistas americanos durante a Guerra da Coreia, com o propósito de isolar o bloco URSS-RPC. Nos tempos recentes, é a China que continua a usar o conceito para ampliar suas águas territoriais, dando nascimento a uma área que Pequim pretende colocar sob seu controle. Estrategistas americanos lançaram também a ideia de uma “segunda cadeia de ilhas”, descendo das ilhas Ogasawara, no Japão, até as Marianas, e que era tratada como segunda linha de defesa estratégica dos EUA. A China usa hoje o conceito para fazer aparecer um espaço entre as duas cadeias de ilhas, sobre o qual Pequim almeja aplicar, no prazo longo, uma estratégia de negação de uso por parte de outras soberanias.

Na coluna de 26/06/15, sob o título “O Caribe Chinês”, eu descrevi as obras em que está empenhada Pequim para ampliar e solidificar a integração do Mar do Sul da China no território sob soberania chinesa. Além de intenso trabalho acadêmico para distinguir, no coração desse mar, uma área de soberania de 3.623 quilômetros quadrados chamada “língua de vaca”, os chineses estão aumentando e ligando entre si, graças a aterros com areia drenada no local, recifes e abrolhos que antes apenas afloravam acima das águas. Em meses recentes mais de 2.000 acres foram aterrados, permitindo a construção de pistas de pouso. Em abril de 2015, a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês fez uma preleção para jornalistas, afirmando que esses aterros “estão inteiramente dentro do âmbito da soberania da China (…) e não afetam, nem são voltados contra, qualquer país da área”. Cabe registrar, aliás, que dos seis países fora da China com reivindicações no Mar do Sul, cinco também já edificaram fortificações sobre aterros próprios. A diferença é a rapidez e amplitude dos aterros chineses. O Presidente chinês, Xi Jinping, em mais um dos gestos ousados que o vêm distinguindo como o mais poderoso líder chinês depois de Deng Xiaoping, promoveu agora em novembro um encontro tête-à-tête com o Presidente de Taiwan, Ma Ying-jeou. Foi o primeiro encontro, nesse nível de representatividade, entre líderes dos dois lados do Estreito de Taiwan. Realizada num hotel em Cingapura, a reunião marcou o desejo de Xi de aumentar a influência de Pequim em mais um dos três cada um dos lados declarar-se parte da China, mas definindo China à sua maneira. Cabe ainda assinalar a criação, também em novembro, de uma Zona de Identificação para Defesa Aérea na Zona do Mar do Leste da China. As iniciativas acima permitem a definição oficial das águas oceânicas próximas como “o segundo território nacional”. Um levantamento das descrições desse “território nacional marítimo” registra 12 mares territoriais; 24 “regiões marítimas adjacentes”; 200 zonas econômicas exclusivas e/ou plataformas continentais, totalizando mais de 3 milhões de quilômetros quadrados, ou um terço da terra firme chinesa.

Em coluna anterior, eu já acentuei que os EUA estão afinal podendo dar corpo ao deslocamento do seu poderio estratégico e econômico, do Oriente Próximo para o Pacífico Norte. O chamado “pivô para o Leste Asiático” buscado por Barack Obama desde o início do seu governo. O Pentágono está investindo boa parte dos declinantes recursos a seu dispor na fabricação de bombardeiros de longo alcance e submarinos nucleares, enquanto a Marinha e a Aeronáutica divulgam planos para concentrar, até 2020, 60 por cento de suas forças na Ásia-Pacífico. Vozes se levantam, entre os estrategistas de Washington, justificando tais desdobramentos como resposta à atitude “crescentemente provocadora” da China. Prescrevem a montagem de uma “Defesa Arquipelágica” que retire da China a capacidade de controlar o ar e as águas no espaço entre a costa e a “primeira cadeia de ilhas”, através de uma vigorosa mobilização de forças combatentes, dos EUA e aliados, complementada por recursos antiaéreos, antimísseis e antissubmarino. Num artigo altamente crítico (Foreign Affairs, May/June 2015), o reputado analista Michael D. Swaine rebateu essas pregações, pondo em realce a falha essencial em que se apoiam: o não reconhecimento do quase-inexorável declínio relativo da predominância econômica e militar dos EUA, ao longo das costas asiáticas. “O problema com essa linha de pensamento”, frisa Swaine, “é o erro de interpretação das motivações chinesas, que leva a exacerbar, em vez de mitigar, o problema real. Pequim procura, de fato, limitar ou pôr fim ao predomínio dos EUA na periferia marítima da China (…). Mas os líderes chineses não estão neste momento tentando delimitar uma esfera de influência exclusiva; tentam apenas reduzir a considerável vulnerabilidade chinesa e aumentar a liberdade de ação deles mesmo no conjunto do país.”

Imagem: 1- ASSOCIATED PRESS; 2- Office of the secretary of defense, Military and Security Developments involving the People’s Repiblic of China, August 2010. Asia-Pacific Review. November 2011


Amaury Porto de Oliveira
Embaixador