Crise política tem origem em conflito distributivo
Professor titular de Ciência Política da Unicamp, Boito participou nesta quinta-feira (18), do debate “A natureza da crise política brasileira”, promovido pela Fundação Maurício Grabois, em São Paulo, com apoio da seção estadual paulista. A partir de uma reflexão sobre os conflitos de classe para compreensão de crises sociais, o pesquisador aponta para uma realidade mais complexa do que simplesmente um conflito entre a burguesia nacional e o trabalho.
Boito aponta um fracionamento na burguesia brasileira, que sinaliza contradições internas entre aquela integrada ao capital internacional, “principal alvo da Operação Lava-Jato”, e aquela que não se beneficia da abertura internacional de capitais, assim como o ativo campesinato no Brasil também se subdivide. “Estes conflito entre classes e frações de classe estão refletidos no processo político”, saliente ele, pois as divisões sociais não correspondem, de maneira exata, às divisões políticas
O sociólogo desenvolve sua análise afirmando que a crise política atual é oriunda do agravamento de dois tipos de contradições, entre essas frações da burguesia neoliberal, hegemônica nos anos 1990, contra a frente política neodesenvolvimentista, surgida desde o Governo Lula, em 2003, e contradições presentes no interior da própria frente neodesenvolvimentista. A partir dessa fragilidade no interior da base de apoio aos Governos do PT, a frente neoliberal ortodoxa passou a organizar com maior eficácia a oposição às gestões petistas.
“A crise se originou fundamentalmente dessa ofensiva restauradora, que quer reimplantar o programa neoliberal na economia. A partir de janeiro de 2013, essa frente sitiou o Ministério da Fazenda e retomou a agitação do programa neoliberal da década de 1990. Mas isso foi possível, principalmente, porque ela encontrou a unidade esgarçada entre os neodesenvolvimentistas”, disse.
Para Boito, é fundamental ter claro a origem deste fenômeno, para não partir de premissas equivocadas. “Não foi o ascenso do movimento popular que gerou a ofensiva, mas a direita neoliberal ortodoxa!” Esta é a origem fundamental para se ter uma avaliação realista do que fazer frente a crise.
Desenvolvimentismo neoliberal
O que Boito chama de neodesenvolvimentismo é a política aplicada pelo PT, que procurou estimular o crescimento econômico por intermédio de uma intervenção multifacetada do Estado na Economia, a partir de ações de financiamento, ampliação do investimento público e protecionismo à produção local, por exemplo. O “neo” não é uma retomada do velho desenvolvimentismo, apenas, mas a tentativa de implementação desse intervencionismo após a consolidação de um modelo neoliberal internacional, que impõe limites ao desenvolvimento econômico. Ou seja, embora o PT governe há mais de uma década, o capitalismo neoliberal hegemonizado pelos tucanos nos anos 1990, não foi superado e sempre levou os petistas a recuarem diante de seus limites.
O professor lembrou a elaboração do filósofo grego Nicos Poulantzas, ao afirmar que nao ha fusão das burguesias em escala mundial. Para Boito, a frente neodesenvolvimentista brasileira é dirigida por uma burguesia interna em conflito. “Preservou-se aqui uma fração de classe com base de acumulação própria, com interesses distintos dos interesses do capital imperialista. Não é uma burguesia anti-imperialista, mas que disputa com o capital estrangeiro posições na economia brasileira. E inclusive na economia da América Latina. Essa é a principal base social dessa política”, diz.
O professor afirma que, no Brasil, essa burguesia interna não precisou criar um partido político. Ela “assediou com sucesso” o PT, conseguindo que o partido passasse a aplicar uma política que atendesse a seus interesses. Desta forma, apesar de o PT não ter rompido a ordem que vigorava anteriormente, adotou medidas que moderaram os efeitos negativos do modelo capitalista neoliberal sobre o crescimento, explica Boito.
“Não superaram a política de abertura comercial, mas criaram uma política de produção de conteúdo local, e instauraram nichos de protecionismos. Mantiveram a política de juros elevados, que inibe o investimento produtivo, mas procuraram moderar os efeitos negativos dessa política ao decuplicaram o orçamento do BNDES e passar a emprestar a juros negativos para grandes empresas nacionais. Não renegociaram a dívida pública, então grande parte do orçamento é esterilizado, o que inibe a capacidade de investimento do estado, mas procuraram retomar os investimentos em grandes obras públicas”, enumera. De fato, segundo ele, a indústria de transformação não foi o foco da política neodesenvolvimentista, ao priorizar a exportação de commodities, mas ela fortaleceu muito a construção civil e naval. “Isso é indústria também!”
Para ele, o simples atendimento aos interesses dessa burguesia interna – que resulta em uma política de crescimento econômico – já tem um impacto popular, que permite a esses governos ter certa base de apoio. “FHC entregou o governo em 2003 com 13,5% de desemprego. No fim do primeiro mandato de Dilma, o desemprego era 4,6%. A diferença é bárbara. Mas, além disso, esses governos adotaram medidas de política social que contemplaram interesses de assalariados urbanos, de uma classe média e operária, dos camponeses e de um grande contingente de trabalhadores da massa marginal”, acrescenta.
Com tanta heterogeneidade, era mesmo de se esperar que houvesse contradições dentro desta frente. Mas, de acordo com Boito, nos momentos críticos, como na crise do mensalão, por exemplo, essas forças muito distintas se juntavam.
“Em 2005, os movimentos populares defenderam o mandato de Lula e as grandes entidades empresariais se fizeram fotografar na porta do Planalto com o presidente, apoiando-o. A imprensa da Fiesp publicou matéria atrás de matéria criticando a oposição que estava conturbando o ambiente econômico do país. Em 2010, Dilma recebeu o apoio ativo e explícito do setor sucroalcooleiro, das centrais sindicais, do MST. Passada a eleição, os conflitos afloram”, conclui.
De acordo com Boito, do outro lado, está a Frente Neoliberal Ortodoxa, “também heterogênea e contraditória”, pautada pela política econômica, social e externa que vigorou durante os governos do PSDB. Na agenda dos tucanos estava a desregulamentação financeira, abertura comercial, privatização e uma política externa de submissão aos Estados Unidos, cita.
O professor afirma que a ligação da oposição neoliberal com o capital estrangeiro fica clara na análise da sua plataforma econômica. Ele citou o livro de FHC, “A Miséria da Política”, – uma crítica cínica a todo o programa político e econômico do PT -, e o momento em que projetos de tucanos tramitam no Congresso, propondo mudar as regras do Pré-Sal e abrir o capital e a gestão das estatais brasileiras, para questionar: “Quem vai ganhar com o fim da política de conteúdo local? Quem vai ganhar com o fim do financiamento do BNDES para empresas nacionais? Tudo que eles propõem favorece o capital estrangeiro e o setor da burguesia subordinado a esse capital”.
Quando do Governo FHC, o Itamaraty foi alçado ao papel de integração subordinada aos EUA. Isso não se deu, segundo Boito, porque a política de relações internacionais do país foi tomada pelo convencimento dessa ideologia, mas porque esse era o interesse de uma fração da burguesia nacional.
O conflito distributivo nos setores médios
Segundo o professor da Unicamp, a fração da burguesia, que é a força dirigente do campo neoliberal, tem ainda como aliada a alta classe média, que não possui os mesmos interesses da fração da burguesia. “O problema dessa alta classe média não é a política econômica, mas a política social dos governos do PT”, diagnostica.
“Ela entende que paga os gastos dos programas sociais, e entende que essa política social promove, de maneira indevida, a população pobre. O alvo é a política social, tanto pelo aspecto econômico, quanto ideológico e simbólico, porque entendem que o pobre está comparecendo a lugares que, imaginam eles, deveriam ser frequentados apenas pelos ricos. E foi a alta classe média que se mobilizou em todas essas grandes manifestações [contrárias ao governo Dilma]. Era só coxinha, sim”, diz ele, referindo-se às pesquisas que demonstram o alto poder aquisitivo de manifestantes contra o Governo.
Boito afirma então que, devido a essa ofensiva restauradora da direta, setores populares que integravam a base social da frente neodesenvolvimentista, foram neutralizados e até ganhos pela agitação política promovida pela grande burguesia internacional e pela alta classe média.
“Você tem aí uma gradação. O setor mais ativo é a alta classe média, mas com capacidade de expansão de sua influência. Isso é a situação de crise. Porque significa que aquela linha, que sempre dividiu o campo neoliberal do neodesenvolvimentista, se deslocou, de modo a ampliar a base social do campo neoliberal ortodoxo”, reconhece, embora afirme que essa classe média considera o tucanato tímido em termos de oposição.
Conforme sua avaliação, mesmo forças e organizações que continuam no campo neodesenvolvimentista, “tiveram seu ânimo de luta abatido, devido à ofensiva da direita, que é multifacetada – nos planos partidário, parlamentar, midiático e nas instituições do Estado, como a Polícia Federal, o Ministério Público e o Judiciário”.
Para Boito, a presidenta Dilma Rousseff respondeu a essa investida da direita com um recuo, o que criou uma situação difícil para o movimento popular. Os setores populares são críticos à corrupção, mas não se manifestam como os setores médios, em panelaços. “Houve uma articulação complexa e perversa para os movimentos populares, confiscados pela ofensiva da direita por meio de um culto do espontaneismo”, avaliou ele, referindo-se às manifestações de 2013 contra a tarifa de ônibus.
No bojo dessa crise da política neodesenvolvimentista, o cientista político ressalta que há também uma instabilidade da democracia. “Não digo que haja uma crise da democracia, porque não há uma força social nacionalmente representativa propondo uma ditadura. O que estão propondo é um golpe branco. Mas há uma situação de instabilidade, que mostra como essa grande burguesia integrada ao capital internacional e a alta classe média prezam muito pouco pelos valores democráticos”, observa.
Boito ressalta que essas forças querem, a todo custo, anular o resultado das urnas. “Somos obrigados a refletir sobre esse desprezo pela democracia. Há uma velha discussão na esquerda brasileira sobre a fragilidade da democracia nos países dependentes e a gente está de novo assistindo a isso”, adverte.
Debate
Durante o debate da Fundação Maurício Grabois, o secretário nacional de Movimentos Sociais do PCdoB, André Tokarski, e o estudante de História e assessor da Vice-Presidência do PCdoB, Mateus Fiorentini, destacaram o contexto em que a crise política brasileira está inserida.
Tokarski situou o momento no marco de uma ofensiva conservadora na América Latina, que atinge países como a Argentina e a Venezuela. “A composição do Congresso brasileiro é desfavorável, com pauta convergente com a ofensiva neoliberal de ataque aos direitos dos trabalhadores e às politicas sociais”.
Tokarski também denunciou a “usina de crises políticas” que são os escândalos de corrupção. A direita utiliza-se, historicamente, de escândalos de corrupção, para atingir a esquerda e ganhar eleições, já que não é possível expor seu programa antipopular. “Os escândalos de corrupção não têm relação direta com o nível de corrupção de um país, mas com o nível de dissenso das burguesias desse país”, citou ele, dialogando com a análise de Boito.
Já Fiorentini, citou a crise estrutural do capitalismo, mencionando que o Brasil passa a internalizar os impactos das turbulências da economia internacional. “Os Estados nacionais foram capturados pelo capital financeiro”, afirmou, mencionando que a situaçãoo pode piorar com o provável estouro de uma crise da dívida pública, que levará a uma crise dos estados nacionais.