O grupo Gerdau e o “moralismo” neoliberal
O acontecimento não mereceria comentários se não fosse a informação de que a Polícia Federal suspeita de que o Grupo Gerdau tenha contratado escritórios de advocacia apenas como fachada para dissimular pagamentos a representantes do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
A empresa é investigada por, supostamente, ter pago propina para influenciar decisões do órgão — espécie de “tribunal” que avalia recursos de grandes contribuintes contra autuações da Receita Federal. Em nova fase da Operação Zelotes, os investigadores descobriram que a Gerdau autorizou a subcontratação de escritórios para atuar no Carf, “dissimulando contrato existente com a SGR Consultoria”. A empresa pertence a José Ricardo da Silva, que era conselheiro do órgão e não podia, portanto, atuar em processos que envolvessem interesses de seus clientes privados.
O fato, se comprovado, revela, mais uma vez, a diferença entre o discurso e a prática dos “moralistas” que acenam com a bandeira neoliberal como a salvação para a humanidade. André Gerdau participa de um grupo de cerca de 40 jovens — sócios ou herdeiros de algumas das maiores empresas do Rio Grande do Sul — que todas as noites de segunda-feira reúne-se no restaurante do Ritter Hotel, no centro de Porto Alegre. Lá, dispostos em mesas que formam um semicírculo, homens engravatados e mulheres vestidas elegantemente passam cerca de 3 horas sendo doutrinados sob os princípios do liberalismo.
Líderes virtuosos
São os sócios do “Instituto de Estudos Empresariais”, mais conhecido como IEE. Eles formam uma espécie de brigada fundamentalista, cuja missão é assimilar e disseminar as crenças na “economia de mercado”, na supremacia do privado sobre o público, no chamado “Estado mínimo”. Defendem que o Estado deve se ater exclusivamente ao provimento de “segurança e justiça aos cidadãos”, pregam o fim do Banco Central e a “livre escolha” da moeda corrente.
O alvo principal é a legislação social e trabalhista. ”Nossa causa é formar líderes virtuosos que conduzirão empresas e governos melhores”, diz Leandro Gostisa, sócio e gestor de negócios da Methode Ikro South America, fabricante de componentes automotivos, e vice-presidente do IEE.
Nos últimos 30 anos, mais de 300 empresários já passaram pelas fileiras do Instituto. Entre os patrocinadores de seus eventos estão algumas das maiores empresas brasileiras, como o grupo Ipiranga, do setor de petróleo e petroquímico, a Vonpar, engarrafadora da Coca-Cola na Região Sul, a Lojas Renner e a Springer Carrier.
Inimigo número um
Os líderes do IEE esperam que seus discípulos defendam — permanentemente — a causa em entidades empresariais, sindicatos e, principalmente, no governo. ”Há muitas lideranças do IEE infiltradas nas entidades, buscando espaço para as ideias liberais”, diz o empresário Paulo Afonso Feijó, sócio e presidente da Mercador.com, empresa do grupo Telefônica especializada em serviços para o setor de varejo.
A formação dos quadros da entidade dura, no máximo, cinco anos. Durante esse período, o sócio tem de participar das reuniões semanais e seguir uma bibliografia recomendada — toda ela formada, obviamente, por libelos do liberalismo. Entre os títulos estão “O que é liberalismo”, do empresário brasileiro Donald Stewart Jr., e “O caminho da servidão”, do economista austríaco Friedrich von Hayek — considerado a gênese do neoliberalismo.
É preciso estudar todos os temas discutidos, debater com convidados, participar dos eventos e coordenar grupos de estudo. Hoje, o grande desafio dos militantes do IEE é espalhar a causa para além dos limites do Rio Grande do Sul. Para eles, é preciso guardar as fronteiras da propriedade privada contra o contágio infernal das organizações dirigidas pelo Estado-Diabo, o inimigo número um do mercado-Deus.
O pai da morta-viva
Os fatos e os personagens ocorrem duas vezes na história: a primeira como tragédia e a segunda como farsa, lembrava Karl Marx, num processo ”em que a tradição das gerações mortas volta para assombrar a memória dos vivos”. Um clássico exemplo disso é a volta triunfal da ideologia liberal, com nova roupagem e registrada com o nome de neoliberalismo, no final dos anos 1970 do século XX.
A morta-viva tinha como pai o economista norte-americano Milton Friedman, que morreu aos 94 anos e ganhou o Prêmio Nobel de Economia em 1976. Ele liderou a corrente liberal, que se opôs ao pensamento de John Maynard Keynes. Proclamado herdeiro do pensamento de Adam Smith, o economista é equiparado, por seus admiradores, a personalidades como Keynes, Joseph Schumpeter e Paul Samuelson. Um exagero, está claro.
O “fim da história”
Sobre Friedman há quem afirma que daqui a 50 anos ninguém vai ler uma linha do que ele escreveu. Isso, aliás, é verdade para a grande maioria dos economistas. Friedman é basicamente alguém que argumentou que os economistas anteriores a Keynes tinham elementos de verdade em suas teorias, o que está correto. Mas é só. Até relógio parado está certo duas vezes por dia. Na verdade, a teoria de Friedman, além de fútil, é perversa.
O problema é que o seu pensamento influenciou fortemente líderes políticos, como o ex-presidente norte-americano Ronald Reagan e sua contemporânea, a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. Suas ideias também serviram de inspiração para a onda anti-socialista. Vaclav Klaus, que mais tarde se tornaria o primeiro-ministro da República Tcheca, foi um dos que seguiram as lições de Friedman na construção de um novo modelo econômico para as ex-repúblicas socialistas.
Para os seguidores de Friedman, o desenrolar dos acontecimentos no mundo acabou revelando que os revolucionários que deram certo não foram Marx, Engels, Lênin e Mao Tse Tung; foram Friedman, Reagan e Thatcher. Teria triunfado, sobre os escombros do muro de Berlin, a tese de que a economia de “livre mercado” ganhara o mundo. Em 1992, o também norte-americano Francis Fukuyama chegou ao ponto de publicar um livro que incendiou os debates internacionais, intitulado “O fim da história”.
A chamada escola de Chicago
Para ele, as ideias de Friedman em ação era uma demonstração de que o capitalismo havia superado em definitivo todas as demais experiências de organização social. Segundo Fukuyama, o capitalismo de panelinhas, somado aos setores financeiros especulativos, era a fórmula definitiva da evolução política.
A baronesa Thatcher foi a primeira a alterar o consenso keynesiano segundo o qual o centro da economia deveria ser ocupado pelo Estado. Ela enfrentou essa batalha com ferocidade. ”Nunca senti qualquer simpatia pelo socialismo”, disse Thatcher. ”Já estava ficando óbvio para as pessoas que o caminho socialista era sinônimo de declínio. Dá para imaginar isso? As pessoas aceitando o declínio?”, afirmou.
Os liberais radicais são conhecidos pela diferença entre seus discursos e suas práticas. Na Grécia antiga, seriam exímios sofistas. No mundo de hoje, podem ser chamados de vigaristas. Thatcher jogou com as palavras com o mesmo cinismo de Friedman. Expoente maior da chamada Escola de Chicago, ele encarnou como ninguém a defesa radical do liberalismo canhestro.
Uma de suas esquisitices era estabelecer que os Estados Unidos são 50% socialistas por conta do papel que o Estado exerce na economia daquele país. Uma simplificação infantil. “Os Estados Unidos são um mercado livre? Não! No meu país, as despesas de todos os níveis de governo chegam a 40% do Produto Interno Bruto (PIB). Além disso, as regulações colocam um custo de mais 10% do PIB nos negócios. O resultado é que os Estados Unidos hoje são 50% socialistas”, sentenciou.
Retalhos de velhas ideias liberais
Para Friedman, qualquer ideia de regulação era uma coisa diabólica, socialista. Ele era a favor até da extinção do Fundo Monetário Internacional (FMI). Em sua visão, os empréstimos do FMI retardam a velocidade de “ajustes necessários”, estimulam a persistência de políticas equivocadas e falsificam a percepção de risco dos bancos credores. E, como ardoroso defensor da liberalização cambial, Friedman se enfurecia quando ouvia dizer que o fracasso de um regime de câmbio fixo estimulado por quase uma década pelo FMI era atribuído à falência do liberalismo.
Outra implicância de Friedman era com a política monetária do banco central norte-americano, o Federal Reserve (Fed). Ele atribuiu a erros do Fed boa parte da culpa na derrapagem rumo à Grande Depressão. Keynes, por sua vez, considerava a política monetária impotente para promover a saída do buraco negro do início dos anos 30.
Havia, para Friedman, uma regra segundo a qual para combater uma teoria nada melhor do que outra. Por isso ele enfrentava os conceitos keynesianos com teses que na verdade eram retalhos de velhas ideias liberais lançadas por terra ao longo da maior parte do século XX. O que sobrava em estado puro de sua teoria era a perversidade social.
Sensibilidade social
Uma de suas principais criticas recaía sobre a noção de “responsabilidade social” das empresas. “A empresa pertence aos acionistas. Sua missão é gerar a maior quantidade possível de lucros para eles, respeitando as leis de cada país”, dizia ele. Segundo Friedman, o conceito de “responsabilidade social” é ”fundamentalmente subversivo”. É evidente que se essa ideia fosse popularizada Friedman seria visto como uma pessoa próxima do fascismo.
Para se ter uma ideia, uma pesquisa feita pelo instituto Vox Populi mostrou que dentre as oito alternativas oferecidas num questionário sobre a missão de uma empresa privada, a opção ”dar lucro ao acionista” apareceu em último lugar. É um resultado que dá o que pensar. Não se trata, claro, de uma indicação de que os brasileiros querem já a estatização dos meios de produção.
O que a pesquisa sugere é que a população até aceita o capitalismo — desde que os empresários tenham “sensibilidade social”. Para os liberais, trata-se de um caso típico de miopia coletiva. É uma tese antiga. Como observou Smith em “A Riqueza das Nações”, sua obra máxima, ”não esperamos obter o nosso próprio jantar da bondade do açougueiro ou do padeiro, mas do interesse de cada um deles”. Ou seja: o padeiro produz pães não para ajudar o próximo, mas para prosperar.
Os males do planeta Terra
As empresas seguidoras desse conceito podem, sem dúvidas, ser responsabilizadas por boa parte dos males do planeta Terra. Fosse a empresa uma pessoa, esse indivíduo seria um psicopata. Alguém capaz de financiar tiranias como o nazismo e o fascismo, de comprar a imprensa e de usar o aparato policial para cometer assassinatos de opositores aos regimes políticos que protegem suas práticas.
Um sujeito tão desprovido de sentimento que, diante de tragédias ambientais ou naturais, pensa apenas em quanto vai embolsar com a alta do ouro e do petróleo. Alguém que, conscientemente, destrói a camada de ozônio, envenena o leite, queima as florestas e, como se isso não bastasse, usurpa todos os recursos naturais à disposição — até a água da chuva. Tudo em nome do lucro.
Até nisso Friedman se apequena diante do keynesianismo. Em 1930, Keynes escreveu que ”nos envolvemos numa colossal trapalhada, prejudicando os controles de uma máquina delicada, cujo funcionamento não é do nosso conhecimento”. Portanto, a verdadeira escassez no seu mundo — e no nosso — não era de recursos, ou até mesmo de virtudes, mas de conhecimentos.
Ditadura de Augusto Pinochet
Os liberais radicais veem essa questão como um problema individual. Para eles, a necessidade é o ingrediente mais importante do empreendimento humano. Para o liberalismo, o que move o mundo é o indivíduo. E o que move o indivíduo é a necessidade. Não é outra coisa a filosofia do ”nade ou afunde”, que recheia o discurso da ala mais conservadora do liberalismo mundo afora.
Trata-se de uma exacerbação da lógica que identifica no indivíduo a grande mola propulsora do desenvolvimento econômico. Chega-se, assim, a um quadro extremado, um ambiente em que, segundo Friedman, não há, sob hipótese alguma, almoço grátis. Quem não se encaixa nessa regra por não possuir as condições de, mesmo pressionado, produzir mais, é frequentemente ignorado nesse mundo liberal. Friedman dizia que o sujeito só nada quando a alternativa a isso é afundar e morrer afogado.
Ele apostava que a melhor maneira de produzir bons nadadores é não fornecer coletes salva-vidas nem equipes de salvamento. Alguns, claro, vão parar no fundo do lago com os alvéolos cheios de água e lama. Mas esse seria o preço a pagar para ter os vencedores. Há grandes diferenças entre essas ideias e as do fascismo? Parece que não. Como exemplo, temos o caso da ditadura do general Augusto Pinochet, que já no início da década de 1970 implantou as ideias de Friedman no Chile.