Horizonte cerrado 31* Uma crítica ao evangelho da prosperidade
Luxúria (Record, 2015), de Fernando Bonassi, é mais um livro que figura bem no conjunto dos bons romances da literatura brasileira contemporânea. Com habilidade narrativa e acurado sentido técnico, o autor nos apresenta uma história com a qual nos identificamos rápida e dolorosamente. Sob o aspecto universal, o enredo comove e provoca ao retratar uma típica trama trágica: um personagem, por decisão própria, lança-se em uma cadeia de fatos que independem de sua vontade, uma vez que derivam de forças maiores que oprimem o indivíduo, entregando-o, junto com os seus, a um destino de irresolução. Partindo, pois, de uma situação em que se envolve por escolha própria o personagem central vê-se encarcerado em um rito trágico no qual nada pode escolher além de aceitar (e até desejar) a própria consumição.
Este é o aspecto, por assim dizer, universal do relato que Luxúria oferece. Ele, entretanto, ganha um apelo familiar porque trata de um contexto social e histórico que diz muito respeito ao leitor de hoje, bem como ao país que encaramos meio absortos atualmente, numa quadra histórica diferente, na qual tentamos compreender o enigma dos recentes “anos de prosperidade”, que embalaram alguns em sonhos traiçoeiros. O livro não nomeia o país em questão, mas, pelos sonhos e pesadelos típicos da classe média brasileira, sabe-se muito bem que se trata do Brasil dos primeiros anos do século XXI. Assim, a trágica narrativa de Bonassi trata do trivial fato que consiste na decisão de um chefe de família comum da pequena burguesia brasileira de construir uma piscina no apertado terreno onde vive com a mulher e o filho no Bairro Novo, o símbolo da nova era de “emergência social” e de “prosperidade” da nação. A decisão de contrair, através de um pequeno “golpe”, um financiamento que viabilize a construção da (que depois se saberá: maldita) piscina, leva o personagem central a um destino irreversível e mortal.
Luxúria assume a literatura como um instrumento de descoberta e interpretação da nação, dando forma a um empenho estético que fora pouco comum na narrativa brasileira da primeira década do século XXI. A ideia de experiência nacional como mediadora fundamental para a compreensão, pela via literária, de uma complexa matéria social é ativada. Não se trata de traduzir aspectos parciais da contemporaneidade, recortando a realidade em idiossincrasias, em “parcialismos”, como foi comum em boa parte da literatura brasileira recente, bastante voltada para um “gosto dominante” do mercado. No romance, Bonassi trata de articular diversos desses aspectos da experiência histórica contemporânea em uma narrativa tensa, que mira a compreensão e a interpelação da totalidade (ou o quanto for possível dela) que conforma a dinâmica atual do capitalismo à brasileira. O romance, desse modo, reaviva questões de crítica e de historiografia muito importantes, que até certo ponto estavam, digamos, “postas em sossego” pela vaga do multiculturalismo mais festivo.
A obra estimula a ler a ficção em contatos e confrontos com o pensamento brasileiro recente. Seria produtivo estabelecer uma leitura sistemática que colocasse em balanço crítico a produção cultural e certa produção das ciências humanas recentes do Brasil, que, salvo engano, encontraram um novo esplendor que ainda está por ser medido e considerado em sua verdadeira intensidade de descoberta do especificamente brasileiro contemporâneo. Considerem-se, por exemplo, obras como A tolice da inteligência brasileira, de Jessé de Souza, Mal-estar, sofrimento e sintoma, de Christian Dunker, Lulismo: carisma pop e cultura anticrítica, de Tales Ab’Saber, O passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo, Que horas ela volta?, de Anna Muylaert. Estas e mais uma boa dezena de outras obras muito importantes, somadas a este bom romance Luxúria, têm muito a dizer aos brasileiros sobre o que somos e não pudemos ser, sobre o que sonhamos e o que sabotamos em nós, sobre como se constitui o nosso presente ainda calcado em velhas estruturas sociais onde roncam fantasmas coloniais.
Em comum com a obra de Bonassi, todas essas produções têm o fato de que, de alguma maneira, tratam de dissecar criticamente uma certa euforia com a prosperidade do país, que arrebanhou os diversos setores da sociedade brasileira transformando-se no lema de um país miserável que chegava ao mundo desenvolvido. A chave linguística dessa chegada ao momento da prosperidade, entretanto, é o idioma do consumo, com todas as suas chicanas ideológicas cravadas na novilíngua de um verdadeiro evangelho da prosperidade, professado pela pentecostalismo charlatão, pela televisão aculturada, pelo sistema bancário perverso, pela publicidade aniquilante, pelos governos de rabo preso. Enfim um idioma que é o meio privilegiado para a transmissão de uma cultura média partilhada por quem finalmente dormia pensando ter alcançado o ansiado direito à aquisição de bens materiais e acordava com a realidade de que, se realizava sonhos de consumo, em regra quase geral, o fazia através de um endividamento movediço estimulado pelo capital vampiresco.
Eis a síntese do processo, nas palavras do narrador: “A maioria pode comprar. Nunca é demais lembrar que eles estão vivendo um momento histórico de prosperidade, depois de tantos e tantos anos de miséria absoluta, graças a Deus.” A euforia[1] “carismática” com que o brasileiro médio se entregou, neste “momento histórico de prosperidade”, é tratada no romance como uma espécie de transe religioso, o qual, em verdade, se verá convertido em pesadelo, do qual o protagonista e sua família não conseguem se livrar senão pela medida mais extrema. O tempo que o enredo representa está, portanto, mais do que claro: o chamado “momento de prosperidade” foi caracterizado por uma política que assentava a economia no consumo e este, por sua vez, estava assentado no crédito.
É o avesso crítico desse evangelho que Bonassi apresenta em seu Luxúria. A ironia ácida, o humor cáustico, mordaz (e, às vezes, desesperador) dá o tom da dicção da narrativa, um relato em terceira pessoa que mimetiza criticamente diversos padrões discursivos da contemporaneidade brasileira – do templo pentecostal ao sistema financeiro, passando pela Internet, a publicidade e os aberrantes programas policiais de TV e rádio. O leitor, portanto, está diante de uma narrativa que, ao performatizar certa objetividade no trato com a matéria narrada, não dá descanso à raiva de ver o sonho de realização próspera dos indivíduos se tornar um lamacento e fétido pesadelo de dívidas e desespero.
Um dos elementos que garante a unidade da narrativa, constituída caleidoscopicamente a partir de uma série de matrizes discursivas, é o ritmo. Muito bem conduzido o enredo vai mantém a progressão de recrudescimento da opressão, que é, no fundo, a figuração da entrega total do protagonista à engrenagem do “crescimento econômico nacional”, que, visto pelo avesso (se sentido na intensidade subjetiva), atesta a lógica mafiosa do sistema de exploração do trabalho, do tempo. Uma lógica cujo destino é a frustração da integridade da vida dos seres humanos para além do fetichismo da mercadoria. A narrativa ordena-se e progride como um parafuso que se aperta lentamente, em compasso que jamais se desequilibra. A esperança de conforto do protagonista converte-se em dor, no ritmo ralentado de uma tortura perversa, da qual não consegue o personagem fugir.
Além do ritmo, outros elementos constitutivos da forma do romance merecem destaque pelo seu valor de intensificação da mensagem que o autor pretende transmitir. O primeiro deles é a escolha da camada social média da personagem, que é um hábil e experiente operador de máquina de uma indústria de autopeças. Esse típico pequeno burguês representa muito bem a camada social premida pela sedução do consumo e siderada pelo afã de destacar-se em relação aos que estão abaixo dele na escala social. Um tipo que deseja cercar-se de um aparato de mercadorias que lhe forneça a aparência de pertencer a uma classe superior à sua. Nesse tipo humano que é o protagonista de Luxúria batem, de modo mais intenso, as marteladas opressivas do capital e é nele que o exaurimento vital se revela de modo mais patente. Trata-se de um original que é, quase por si só, já uma caricatura. A típica família de classe média envolvida nos sonhos e promessas do “momento de prosperidade” é, no romance, representada como grupo representativo, desprovido da capacidade crítica que lhe facultaria a percepção de seu verdadeiro lugar na sociedade. Restam aos membros da família certas formas de fuga triviais na mercadoria, no espetáculo, nos psicotrópicos e no endividamento, que terminam por aprofundar o seu sonambulismo social.
Há alguns aspectos da estrutura de Luxúria que merecem um destaque especial, pois garantem, em boa medida, a considerável eficácia estética do romance e a sua capacidade de revelação íntima dos dilemas do Brasil contemporâneo. Tais aspectos aqui serão apenas indicados, como forma de estimular uma leitura em profundidade do livro no futuro.
Uma das imagens marcantes do livro é a apresentação do relógio da fábrica onde trabalha o protagonista como maquinismo que anda para trás, como a atestar, de modo inconteste, o progressivo esvair-se do tempo de vida dos trabalhadores. Essa imagem, reiterada em alguns capítulos, é o índice mais forte do exaurimento da vida do homem simples de que trata o relato, espremida entre a exploração da sua força de trabalho, a burocracia, o trânsito caótico, a coerção financeira que viabiliza a aquisição de bens fúteis e mais uma série de outros elementos do mundo assolado pela lógica do capital. A questão fundamental a que alude essa presença do relógio é o fato de que o tempo da vida, o precioso “tecido da vida” no dizer de Antonio Candido, é convertido em tempo de servidão ao que determina o capital. Nada é vivenciado fora desse tempo que “devora” a vida do personagem central e de seus familiares.
A imagem do relógio lembra o famoso relato do capítulo LIV, das Memórias Póstumas de Brás Cubas, em que o protagonista imaginava o “velho diabo” do tempo retirando as moedas da vida para dá-las à morte, dizendo: “Outra de menos, outra de menos…”. Em Luxúria o velho diabo do tempo é o mundo do valor sobre o qual se estrutura o capitalismo, como atesta uma das epígrafes do texto, extraída do pensamento de Marx: “Quanto maior a força produtiva do trabalho, tanto menor é o tempo de trabalho exigido para a fabricação de determinado artigo, tanto menor também a quantidade de trabalho nele cristalizada e tanto menor seu valor. Ao contrário, quanto menor a força produtiva do trabalho, tanto maior é o tempo do trabalho necessário para a fabricação de determinado artigo, e tanto maior o seu valor”. Tematizando essa passagem de Marx, o livro de Bonassi parece, entretanto, não tratar da fabricação de objetos, mas da produção de sujeitos objetificados (que, por sua vez, reproduzem a lógica do sistema), envolvidos em um processo que os conduz ao esgotamento de suas potencialidades humanas. O relógio que, andando para trás, “come” a vida dos personagens da narrativa é, assim, o símbolo fundamental da consistência vertical e das implicações ontológicas do capitalismo.
O mundo narrado é, portanto, um mundo absurdo. Um mundo absurdo que é, todavia, vivenciado como trivial. Esse intercâmbio dinâmico e dialético entre o trivial e o absurdo é outro dos pontos fortes de Luxúria. Isso leva o leitor a confrontar, através de descrições e modelos narrativos típicos da literatura fantástica ou do absurdo, as cenas mais triviais do cotidiano de uma família de classe média das grandes cidades brasileira. Configura-se, desse modo, uma estratégia narrativa que reforça a confusão entre a realidade, o sonho e o pesadelo que é vivenciada pelas personagens e apresentada de modo crítico ao leitor. Talvez o exemplo mais acabado disso seja o relato da chuva apocalíptica que se abate sobre a cidade e transforma a obra da piscina do homem comum em um terreno arrasado, que lembra os resultados das piores hecatombes. A maneira como a natureza agride com sua força irrefreável o frágil sonho do homem, transformando-o em pesadelo real, é relatada com largo uso desses elementos da narrativa fantástica ou do absurdo que, por sua vez, também contribuem para o reforço do clima opressivo e angustiado que embala a narrativa.
Esse clima de opressão e angústia que se espraia sobre a vida dos personagens da família do relato é acentuado pelas grotescas imagens de congestionamentos monstruosos, restaurantes lotados, banheiros de escola onde vale tudo, e diversos outros ambientes onde reina o bizarro. Entretanto, o bizarro é reiteradamente avaliado pelos personagens como algo bem acabado esteticamente, daí serem inúmeras as passagens de Luxúria em que, ao contemplarem cenas e episódios grotescos, as personagens afirmem: “Chega a ser bonito”. Mas por que a opressão alienante, o roubo do tempo pela lógica fetichista do capital, as cenas urbanas que se avizinham da barbárie são tomadas como belas pelas personagens? Porque essa é a estética pedestre do mundo capitalista: ela trata de tornar o grotesco comum, trivial, palatável e “até bonito”. Não há o que se pôr no lugar. Há apenas o grotesco mundo antiestético da mercadoria, que por sua vez é a estética do totalitarismo consumista das sociedades capitalistas. A beleza não é, portanto, nem mesmo uma válvula de escape; a beleza, ou qualquer coisa medíocre que valha por ela, é apenas mais um comprimido tranquilizante cujo fim é “não nos fazer acordar”.
Sem poder racionalizar isso, resta aos personagens de Luxúria a raiva a selvageria contida sempre a um milímetro de estourar em barbárie. Daí deriva um dos elementos mais bem arranjados e reveladores da narrativa a reiterada (e também algo absurda) comunicação “entredentes” realizada pelos personagens que dirigem agressões verbais aos interlocutores para logo depois confundirem-nas com formar discursivas de gentileza. No consultório do dentista, a troco de quase nada, a raiva do personagem assim se revela: “Filho da puta. Como disse?. ‘Bom dia, doutor’”. A combinação de agressão semi-velada e gentileza mascarada é o terreno da cordialidade azeda e do “espírito rixoso”, marcas da sociabilidade entre aqueles que partilham de uma mesma situação de opressão diuturna empreendida pelas formas estruturantes do mundo do capital.
Uma questão que incomoda na construção de Luxúria, entretanto, é a distância que se estabelece entre o narrador e os personagens. Aquele se refere a estes sempre em terceira pessoa, em movimento tendente ao de um objetivismo pseudocientífico, reforçado pela ideia de que a narrativa se trata de um “relato”. Assim, o narrador acentua, em vários momentos, que o que está sendo narrado e criticado é a cultura “deles”, como se fosse possível conceber-se um sujeito investigador dos males da civilização contemporânea que seja, de alguma forma, refratário a esse estado de coisas. Há um risco de objetivismo de extração naturalista nessa forma, que, às vezes, faz o leitor ter a impressão de que a narrativa está constituída para a comprovação de uma tese prévia ao enredo. Embora haja intercâmbio frequente estre o que pensa o narrador e um certo nível de subjetividade dos protagonistas, por exemplo, em geral, há pouca ou nenhuma identificação entre a voz que conta a história e sofrimento dos personagens narrados. Isso os converte, em certas passagens do livro, em seres “em julgamento” por suas escolhas estúpidas. Uma leitura torta poderia, assim, desprezar a sua condição também de vítimas de forças que não conseguem compreender e às quais não resistem por pura falta de meios. O perigo ideológico aqui, evidenciado pela escolha da posição do narrador, é o de se tomar o personagem de classe média não como um símbolo da barbárie praticada também pelos setores mais graúdos da sociedade mas como uma espécie de exemplo de como a ideologia opressora que em verdade vitima os indivíduos parece ter sido pervertida exatamente por quem a sofre por todos os lados. Cabe aqui, então, sublinhar uma possível ambiguidade latente na narrativa. Se a experiência trágica narrada em Luxúria recebe uma leitura que a universaliza, ela se converte em uma grande crítica ao mundo contemporâneo e à experiência nacional como um todo; se, por outro lado, ela se oferece a uma leitura particularizada como o “retrato da classe média brasileira dos anos da prosperidade” ela perde até mesmo o amplo alcance crítico parecia almejar.
Mas este aspecto de Luxúria pode ser apenas um risco ou uma falha de interpretação deste resenhista. Caberá aos leitores (e que sejam muitos!), julgar melhor tal mecanismo narrativo. De todo modo, livros como os de Bonassi empolgam porque atestam cabalmente a força que a literatura tem de imiscuir-se no mais emaranhado tecido social e tornar inteligíveis questões e problemas que nos assediam diariamente como sujeitos do processo histórico. A literatura brasileira recente, com Luxúria, ganha um ânimo renovado, que sinaliza a resistência do literário às diluições da pura diversão, das fórmulas prontas para o mercado ou do puro academicismo. Luxúria é um romance de (re)descoberta, do país e de nós mesmos: nós que estamos sempre às voltas com pesadelos que vivemos como sonhos. O papel da literatura também é nos fazer acordar da sonolência ideológica a que nos condenam novos e velhos evangelhos.
Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). Acaba de lançar o livro de poemas e outros nem tanto assim (7letras, 2015). www.alexandrepilati.com
[1] Num texto sobre as manifestações ocorridas no Brasil de junho de 2013 referia-me a essa euforia (que em parte naquele contexto se desencantava) como uma espécie de “consciência amena do desenvolvimento”, parodiando de algum modo o argumento de Antonio Candido em “Literatura e Subdesenvolvimento”. Cf.: http://outraspalavras.net/posts/a-hora-do-direito-a-cidade/#sdendnote4anc
*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cujas perspectivas nos aparecem sempre encobertas por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.