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    Comunicação

    Um canto contra o arbítrio: “Os Estatutos do Homem”

    Contra a violência da ditadura imposta pelo golpe de 1964, a arte. Essa foi a arma utilizada por Thiago de Mello para se opor ao regime arbitrário que se instalara no país. Na ocasião, o poeta renunciou ao posto de adido cultural no Chile. Tomou a decisão em resposta ao Ato Institucional número 1 e […]

    POR: Alberto Ramos

    Contra a violência da ditadura imposta pelo golpe de 1964, a arte. Essa foi a arma utilizada por Thiago de Mello para se opor ao regime arbitrário que se instalara no país. Na ocasião, o poeta renunciou ao posto de adido cultural no Chile. Tomou a decisão em resposta ao Ato Institucional número 1 e também como forma de marcar sua posição contrária ao uso da tortura como método de interrogatório.

    A revolta também inspirou seu mais famoso poema, Os Estatutos do Homem que, não por acaso, tem como título complementar Ato Institucional Permanente. A obra surgiu no exato momento em que a democracia brasileira sofria um de seus mais duros golpes, mas só seria publicada vários anos depois, em 1977.

    Thiago de Mello será homenageado pelos paulistanos no próximo dia 15 de março. O poeta estará presente na solenidade em comemoração aos seus 90 anos de vida, na Biblioteca Mário de Andrade, em uma realização da Fundação Maurício Grabois e Prefeitura de São Paulo.

     

    Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)

    A Carlos Heitor Cony

     

    Artigo I

    Fica decretado que agora vale a verdade.

    agora vale a vida,

    e de mãos dadas,

    marcharemos todos pela vida verdadeira.

     

    Artigo II

    Fica decretado que todos os dias da semana,

    inclusive as terças-feiras mais cinzentas,

    têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

     

    Artigo III

    Fica decretado que, a partir deste instante,

    haverá girassóis em todas as janelas,

    que os girassóis terão direito

    a abrir-se dentro da sombra;

    e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,

    abertas para o verde onde cresce a esperança.

     

    Artigo IV

    Fica decretado que o homem

    não precisará nunca mais

    duvidar do homem.

    Que o homem confiará no homem

    como a palmeira confia no vento,

    como o vento confia no ar,

    como o ar confia no campo azul do céu.

     

    Parágrafo único:

    O homem, confiará no homem

    como um menino confia em outro menino.

     

    Artigo V

    Fica decretado que os homens

    estão livres do jugo da mentira.

    Nunca mais será preciso usar

    a couraça do silêncio

    nem a armadura de palavras.

    O homem se sentará à mesa

    com seu olhar limpo

    porque a verdade passará a ser servida

    antes da sobremesa.

     

    Artigo VI

    Fica estabelecida, durante dez séculos,

    a prática sonhada pelo profeta Isaías,

    e o lobo e o cordeiro pastarão juntos

    e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

     

    Artigo VII

    Por decreto irrevogável fica estabelecido

    o reinado permanente da justiça e da claridade,

    e a alegria será uma bandeira generosa

    para sempre desfraldada na alma do povo.

     

    Artigo VIII

    Fica decretado que a maior dor

    sempre foi e será sempre

    não poder dar-se amor a quem se ama

    e saber que é a água

    que dá à planta o milagre da flor.

     

    Artigo IX

    Fica permitido que o pão de cada dia

    tenha no homem o sinal de seu suor.

    Mas que sobretudo tenha

    sempre o quente sabor da ternura.

     

    Artigo X

    Fica permitido a qualquer pessoa,

    qualquer hora da vida,

    uso do traje branco.

     

    Artigo XI

    Fica decretado, por definição,

    que o homem é um animal que ama

    e que por isso é belo,

    muito mais belo que a estrela da manhã.

     

    Artigo XII

    Decreta-se que nada será obrigado

    nem proibido,

    tudo será permitido,

    inclusive brincar com os rinocerontes

    e caminhar pelas tardes

    com uma imensa begônia na lapela.

     

    Parágrafo único:

    Só uma coisa fica proibida:

    amar sem amor.

     

    Artigo XIII

    Fica decretado que o dinheiro

    não poderá nunca mais comprar

    o sol das manhãs vindouras.

    Expulso do grande baú do medo,

    o dinheiro se transformará em uma espada fraternal

    para defender o direito de cantar

    e a festa do dia que chegou.

     

    Artigo Final

    Fica proibido o uso da palavra liberdade,

    a qual será suprimida dos dicionários

    e do pântano enganoso das bocas.

    A partir deste instante

    a liberdade será algo vivo e transparente

    como um fogo ou um rio,

    e a sua morada será sempre

    o coração do homem.

     

    Santiago do Chile, abril de 1964

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