“Estátuas pode haver nas praças, mas não na historiografia: nesta ninguém é de bronze” Dario Canale 

Dentro da produção historiográfica sobre o comunismo no Brasil um texto importante estava faltando ser publicado entre nós. Refiro-me a O surgimento da Seção Brasileira da Internacional Comunista (1919-1924), tese escrita pelo ítalo-brasileiro Dario Canale e apresentada para obtenção de título de doutor numa universidade da antiga República Democrática Alemã, ainda nos anos 1980.

Este trabalho, em grande parte, foi baseado em pesquisas realizadas no Arquivo Histórico do Movimento Operário Brasileiro (AHMOB), localizado na cidade de Milão. O núcleo principal do acervo daquela instituição italiana era composto por documentos que haviam pertencido a Astrojildo Pereira e conseguiram ser salvos das garras dos órgãos de repressão através de uma verdadeira operação de guerra, montada por militantes do antigo PC Brasileiro, como Marly Vianna, José Luis Del Roio, Zuleide Farias, entre outros. Graças a este esforço, momentos importantes da nossa história puderam ser preservados. Posteriormente, com o processo de democratização, este material voltou ao Brasil e hoje se encontra sob a guarda do CEDEM-Unesp.

Entre os vários méritos do livro de Canale está a demonstração de que, nas análises sobre a formação do Partido Comunista do Brasil (PCB), é preciso estabelecer um justo equilíbrio entre as influências externas – impactos da Revolução Russa e das relações com a Internacional Comunista – e os fatores nacionais, como o desenvolvimento da experiência e consciência do movimento operário brasileiro.

Muitos autores, especialmente anarquistas e liberais, tenderam a associar a formação do PC no Brasil ao chamado Cometa de Manchester. Resumamos a história: na segunda metade de 1921, um representante da Internacional Comunista, disfarçado de funcionário de uma fábrica inglesa, teria vindo ao nosso país, se reunido com Astrojildo e lhe pedido que formasse um Partido Comunista e, em seguida, o filiasse à recém-criada III Internacional. O brasileiro teria aceitado a proposta e iniciado o trabalho de constituir tal organização revolucionária. Assim, neste misterioso emissário estrangeiro estaria a gênese do comunismo entre nós.

Segundo Canale, a visita do “Cometa de Manchester” talvez tivesse até ocorrido, mas “nenhum ‘Ramison, ‘Abramson’ ou ‘Watson Davis’ (possíveis nomes do agente da Internacional) poderia originar ex novo uma tendência inédita no seio do movimento operário brasileiro (…). No Brasil, como, aliás, em todos os países, o surgimento do Partido Comunista foi o resultado de uma interação dialética entre fatores nacionais e internacionais. (…) Edgard Leuenroth nunca teria indicado Astrojildo Pereira como pessoa capaz de fundar o PCB, se não estivesse esboçada em nosso país uma tendência neste sentido”. O terreno, portanto, já estava preparado pelos anos de lutas e reflexões autônomas da classe operária brasileira.

Na mesma linha, o autor critica certas visões preconceituosas em relação aos trabalhadores nascidos no Brasil, em geral, tidos como naturalmente antiassociativos, avessos à militância sindical e revolucionária. Para muitos teria sido a condição de imigrante que havia proporcionado um caráter combativo àquela parcela do proletariado que, no início do século XX, investiu na construção de entidades sindicais e na organização de greves e manifestações classistas. 

“A atitude militante de numerosos trabalhadores estrangeiros”, afirma Canale, “é uma consequência de sua forte presença entre o operariado e não de sua nacionalidade. Em outras palavras: os militantes o foram enquanto operários, e não enquanto estrangeiros. Muito deles foram ser operários pela primeira vez no Brasil (…). Nesse sentido, a militância sindical e/ou política dos imigrantes deve ser vista como um fenômeno brasileiro”. Assim, não teria sentido a propaganda conservadora que afirmava – e ainda afirma – que “o movimento sindical combativo seria uma criação ‘alienígena’, estranha à realidade nacional”.

Ele nos dá outro exemplo desta simbiose entre os fatores nacionais e internacionais. O verdadeiro impacto da Revolução Russa sob a subjetividade dos anarquistas – hegemônicos entre os sindicalistas mais combativos – só pode ser plenamente entendido quando temos em conta a crise de perspectiva vivida por eles, resultado das inúmeras derrotas sofridas naqueles anos. Diante dessa situação, muitos libertários começaram a questionar as concepções e os métodos predominantes em seu meio. A própria criação, em 1919, de um Partido Comunista do Brasil – de conteúdo anarquista e defensor do bolchevismo – mostra muito bem o grau dessa crise. Neste terreno original – diferente do europeu – é que se plantariam as raízes de um comunismo brasileiro.

O nosso autor faz críticas a certas concepções que norteiam a construção da história do partido comunista. “Existe até hoje uma tendência teleológica na historiografia do PCB, segundo a qual a formação do Partido estaria de certa forma ‘escrita’ desde o começo do movimento operário nacional, constituindo o sentido dele e o fim dele”. Dentro deste esquema fatalista tudo se passaria como se as coisas já estivessem, de antemão, determinadas a acontecer. Como se a história humana só pudesse se realizar de uma única forma, num único sentido e ter apenas um resultado possível. Concepção fundamentalmente falsa, pois a história é o resultado da luta de classes em seus vários graus e dimensões, onde nada está decidido a priori.

Rejeitando teses de outros autores, como as do soviético Boris Koval, demonstra que a passagem de Astrojildo e seus camaradas para o comunismo não foi tão tranquila e isenta de contradições. Ainda por algum tempo depois da Revolução Russa, eles continuaram vendo “semelhanças teóricas entre bolchevismo e anarquismo”. O fundador do comunismo brasileiro chegou a afirmar: “o marxismo da revolução russa é um marxismo retificado pela experiência (…). Quanto a mim, sou dos anarquistas que defendem o bolchevismo”. A frase lembra um pouco a afirmação de Gramsci segundo a qual a Revolução Russa era uma revolução contra O Capital de Marx.

O Grupo Comunista do Rio de Janeiro, criado em 7 de novembro de 1921, não sendo o primeiro, foi o mais importante deles. Um de seus membros afirmaria meses depois da sua formação: “Aceitamos a III Internacional porque as bases não impedem a entrada de anarquistas em seu meio”. Como podemos ver, existiu em nosso país uma tentativa de conciliação ideológica entre o anarquismo e o marxismo, “retificado pela experiência”. Isso persistiu até as vésperas da fundação do PC do Brasil, ocorrida em março de 1922.

Na obra é realçado os esforços teóricos desenvolvido pelos primeiros comunistas brasileiros – especialmente depois de 1922 –, que procuraram construir uma estratégia mais condizente com a realidade brasileira. Contudo, eles não prosperaram, pois “foram condenados em bloco pelo CEIC (Comissão Executiva da Internacional Comunista), sobretudo no que se referia ao caráter e às tarefas da revolução brasileira”. Eles esperavam ajuda do “Estado maior” da revolução mundial, “entretanto, o tipo de ajuda proporcionada pelo Cominter (…) só serviu para frustrar a intervenção dos comunistas brasileiros nos acontecimentos nacionais de 1930”. A conclusão de Canale é que teria faltado, por parte da direção do PC do Brasil (PCB), a decisão de “continuar desenvolvendo essa prática e essa teorização com um mínimo de autonomia”. Uma autonomia que a própria estrutura e dinâmica da Internacional Comunista vetava.

Quase a título de conclusão, no seu posfácio, escreveu: “Não quis vender gato por lebre. Para que enfeitar o livro com conclusões edificantes, mas postiças, passando a plaina sobre as contradições, varrendo os paradoxos para debaixo do tapete, a fim de tirar uma moral unilateral, orientada para fim pré-estabelecido? Aí sim, que ficaria inútil ter feito a pesquisa (…). Se eu consegui incomodar o leitor e contagiá-lo em minhas dúvidas, dou-me por satisfeito”. Acreditamos que Canale nos incomodou e por isso seu trabalho é tão importante.

Dario Canale um italiano com alma brasileira

Dário militava num partido comunista – mais precisamente em dois: o italiano e o brasileiro. Como ele gostava de dizer, não era um brasilianista que observava de longe e que, aparentemente, não se envolvia com seu objeto de pesquisa. Sem baluartismo e sem renunciar fazer as críticas devidas aos erros da historiografia semioficial comunista, ele assumia suas posições. Embora essas tenham sido sempre suscetíveis de serem modificadas diante da descoberta de novos fatos e de reformulações teóricas que se faziam necessárias.

No Brasil, além de passar pelo antigo PCB, foi membro da Ação Libertadora Nacional (ALN), liderada por Carlos Marighella. Devido a sua atuação militante contra o regime militar, acabou sendo preso duas vezes, torturado e expulso do país.

Sabemos que os pontos de vista do antigo PC Brasileiro não são os mesmos que os do PC do Brasil, a qual a Fundação Maurício Grabois está vinculada. Por esta razão é natural que apareçam discordâncias – ainda que poucas – em relação a algumas ideias presentes no interior desta obra. Diríamos que o centro da discórdia é a tentativa de apresentar o PC Brasileiro como o único continuador do antigo Partido Comunista do Brasil. Na verdade as coisas não são tão tranqüilas assim. Desde a cisão ocorrida em 1962 existe um debate infernal sobre qual dos dois partidos comunistas seria o herdeiro de 1922.  Naquela época seria muito difícil chegar a um acordo sobre isso.

Atualmente, seria perfeitamente defensável afirmarmos que a frondosa árvore nascida em 25 de março de 1922 deu vários galhos e frutos – uns morreram pelo caminho, outros cresceram e se desenvolveram. Outros não tiveram a mesma sorte. Aos poucos, vamos superando a falsa idéia que só poderia haver um verdadeiro partido comunista em cada país. O restante, portanto, seriam forças políticas pequeno-burguesas ou burguesas, adversários (ou inimigos) a serem derrotados. Tese que levava a um eterno processo de exclusões e anátemas, que prejudicavam a unidade das forças mais avançadas da sociedade

Contudo, essa polêmica fica bastante secundarizada, se levarmos em conta o que é mais importante para todos nós: o resgate do complexo processo de formação do Partido Comunista no Brasil e de suas relações contraditórias com a III Internacional.

Ao lançar esta obra fundamental, a Fundação Maurício Grabois faz uma merecida homenagem aos homens e mulheres que deram contribuições à reconstrução da memória dos trabalhadores brasileiros e de um dos seus principais representantes, o Partido Comunista.

No projeto inicial da obra, elaborado pelo próprio Canale, estava prevista uma apresentação de Heitor Ferreira Lima, que possivelmente acabou não sendo redigida.  Também não foi encontrada a bibliografia original, embora anunciada no sumário provisório deixado por ele. Ela foi restituída através das notas presentes nos diversos capítulos.

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Augusto César Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.