Política do narcisismo perverso
Se concretizada, a aventura inconsequente do impeachment, mais provável agora devido ao aprofundamento do desembarque do PMDB da coalizão de governo, será a completude da farsa narcísica que embala o comportamento político da elite rica e liberal-conservadora na crise brasileira. No narcisismo perverso, a face explícita, o falso-eu, é um simulacro de perfeição, a máscara que oculta o verdadeiro-eu, vazio em conteúdo ético e beleza psíquica, retendo apenas, devido às sequelas da ferida originária estruturalmente destrutiva, baixa-estima, inveja e ódio. Mas, incapaz de lidar com suas dores, temores e impotência, o narcisista lança-se, pelo pensamento mágico, ao reino subjetivo da superioridade, poder e controle, partindo para ações, sem limites morais, que buscam iludir a si mesmo e aos outros de que possui perfeita natureza. A sinergia entre veredas principais da Operação Lava Jato, histeria coletiva – embora principalmente seletiva – contra a corrupção e sede de impeachment das forças de oposição pode ser iluminada reportando-se ao narcisismo perverso da minoritária elite rica, força social motriz e vanguarda política do ódio contra Dilma, Lula e o PT.
Apesar dos avanços internacionalmente reconhecidos no combate à miséria extrema e na queda da desigualdade na distribuição de renda, ainda que em ritmo lento, ocorridos desde o primeiro governo Lula, o Brasil ainda é muito injusto socialmente. No Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade (IDHAD), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, calculado a partir de 2010 com uma metodologia diferente em relação ao IDH tradicional, enquanto a média da América Latina é de 0,570, a pontuação do Brasil é 0,557, ou seja, inferior. Os governos petistas, até 2014, priorizaram o combate a essa realidade trágica, em um país campeão em concentração de renda, onde o 1% mais rico embolsou, em 2013, o inigualável 27% da renda nacional, segundo estudo de Marc Morgan Milá, orientado por Thomas Piketty, na Escola de Economia de Paris. E segundo dados do IBGE referentes a 2013, os 10% mais ricos detinham 41,7% da renda familiar per capita nacional.
Como argumentou o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, a “preferência forte e clara pelos trabalhadores e pelos pobres”, de governos de centro-esquerda, que procuraram manter seu compromisso sociopolítico com os de baixo, foi colocada em xeque, na primeira oportunidade – ensejada já no governo Dilma 1, devido ao crescimento baixo, inflação e escândalos de corrupção –, por um ódio coletivo da classe alta, algo inédito no Brasil, não à toa emergido em um momento histórico ímpar da democracia brasileira. Esse ódio é a fúria narcísica, invejosa, que está sempre cobiçosamente prestes a projetar seu próprio fracasso no outro; vingança oportunista e política e economicamente desastrosa do egoísmo-mor contra o partido político que, no governo, ousou, em alguma medida, não reproduzir, por meio das políticas públicas, as relações sociais à imagem e semelhança do falso-eu narcisista dos ricos, alucinadamente perfeito, mas, na verdade, apenas na construção da ordem social oligárquica e na acumulação capitalista selvagem.
Como podem governos de esquerda, justamente na pátria do autoritarismo social mantenedor das desigualdades, ousarem dificultar o secular vampirismo narcisista da elite rica (e com complexo de vira-latas) sobre os pobres, pelos quais não nutre nenhuma empatia, considerando-os apenas meros objetos a seu dispor? Como essa “raça” pode ter regulamentado o trabalho doméstico se sua condição de contratação precária era um direito adquirido dos tempos da escravidão? Como pode o populacho, ao invés de prosseguir reverenciando barões e madames, ingressar nas universidades públicas frequentadas pelos filhos da elite e começar a embarcar em aviões, meio de transporte até então exclusivo dos privilegiados? Como a plebe pode envolver-se com irregularidades no financiamento empresarial de campanhas eleitorais se esse artifício era até então de propriedade dos partidos da preservação da ordem desigual? Como pode essa “horda de comunistas” – segundo a invenção da paranoia narcisista, que projeta de modo invertido seu espírito capitalista selvagem – lograr que o STF tenha proibido o financiamento eleitoral empresarial, imensa fonte dos crimes de corrupção ativa e passiva identificados na Operação Lavo Jato? Que coerência há na iniciativa das forças político-partidárias, a começar pelo PSDB, defensoras com unhas e dentes da fonte empresarial de fundos eleitorais – cronicamente contabilizados no caixa dois e derivados de barganhas em contratação de obras públicas e compras e vendas governamentais e das estatais (de nafta para a Braskem, por exemplo) – recorrerem ao TSE para tentar impugnar a prestação de contas da campanha presidencial de Dilma? Ora, petralhas, vocês só podem fazer o que os coxinhas, avalistas do sistema político plutocrático, permitem que seja feito, mas não o que eles fazem por prerrogativa oligárquica!
O desempenho positivo dos governos Lula na economia propiciou que uma parcela da elite rica valorizasse o presidente, mas apenas circunstancialmente, pois a inevitável desvalorização e descarte do ciclo narcisista não tardou a chegar com Dilma, que desafiou o rentismo e não propiciou suprimentos narcísicos suficientes para entorpecer a frustação da burguesia semiperiférica com o país que ela tem, expressão aterrorizante de seu verdadeiro-eu, de baixíssimo teor nacional, pois governado pelo ultra-egoísmo de classe, e consequentemente sem projeto de Brasil melhor. Além disso, como o narcisista odeia intimidade, sobretudo com quem tem certa autonomia em relação à sua voracidade de poder e controle, quatro governos consecutivos encabeçados pelo PT é algo insuportável e ameaçador. Novamente, a democracia brasileira está ameaçada pelo reino da hipocrisia perversa dos ricos, especializada em produzir bodes expiatórios, como fez em 1954 e 1964.
Desde o pedido de condução coercitiva de Lula, a Operação Lava Jato passou a explicitar claramente seu enraizamento no narcisismo perverso da elite rica, que, não por mera coincidência, é onde se situa socialmente o juiz Sergio Moro. Embora empresários de peso tenham sido presos e condenados, o foco maior da grande mídia e da força-tarefa está em Lula, Dilma e no PT, visando arruinar a candidatura do primeiro às eleições de 2018, depor o governo da segunda, não sem antes enfraquecê-lo o quanto possível para facilitar o abate psicopata, e varrer do mapa o maior partido de esquerda.
O vazamento criminoso e politicamente orientado das escutas telefônicas envolvendo Lula e Dilma foi o clímax da estratégia de difamação destruidora típica do narcisismo perverso contra suas vítimas. Recentemente, o vazamento obscuro da lista, assumidamente não divulgada pelo Jornal Nacional, com 316 políticos de 24 partidos que receberam contribuições eleitorais da Odebrecht, cuja maioria defende o impeachment, seguido pela decisão de Moro sobre seu sigilo, mostra a farsa da oposição sociopolítica e parlamentar, que está à caça de um bode expiatório, a presidente Dilma. Segundo se desenha, após o almejado impeachment, o próximo passo seria esvaziar a Lava Jato, dela protegendo os políticos interessados no governo pós-deposição, e a desmobilização dos coxinhas das ruas. Evoca à lembrança o escândalo da parabólica, em 1994, quando o então ministro da Fazenda, a serviço do conservadorismo-liberal, afirmou: “Eu não tenho escrúpulos; o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde”.
A fúria narcísica das elites ricas e de seus pares nas instituições públicas é destrutiva, mas a reação das forças politicamente saudáveis da sociedade civil veio vigorosa nas manifestações do dia 18, motivadas pelo pedido de prisão preventiva de Lula e pelo veto provisório do STF à sua posse na Casa Civil, e prossegue até hoje com diversos posicionamentos de juristas, jornalistas da imprensa nacional e internacional, intelectuais e artistas, movimentos sociais, enfim, em defesa das instituições do Estado Democrático de Direito. Reação salutar contra a política de terra arrasada do narcisismo perverso, que afunda a economia e violenta a democracia, cujo centro nevrálgico é a vingança da minoria rica contra o governo que se preocupou com os pobres.
Não se trata de aprovar a política econômica dos dois mandatos de Dilma, muito menos a corrupção, endêmica ao capitalismo e moeda corrente nas relações entre Estado e grupos empresariais no Brasil, onde também está muito próxima do arraigado clientelismo no sistema político. Mas juízes, procuradores e policiais federais instrumentalizarem politicamente o combate à corrupção e violarem direitos civis, organizações de mídia promoverem um imenso bullying contra um partido e suas lideranças, cidadãos colocarem dedo em riste na cara de quem defende o governo, mesmo não concordando com seus erros, pessoas serem agredidas nas ruas por usarem roupa vermelha e todos os demais tipos de violência, intolerância e ameaças, inclusive contra o ministro Teori Zavascki e sua família, isso tudo é expressão do novo autoritarismo que coloca em risco o desenvolvimento da democracia.
Diante de tantos problemas que o Brasil possui, a começar pela gigantesca desigualdade social, passando pela violência criminosa das polícias militares contra os pobres, por que motivo os holofotes foram colocados na corrupção, sobretudo aquela em que uma parte específica, ainda que a mais importante, de uma coalizão partidária se envolveu, o PT, principal partido governista? Uma explicação, não a única, pode estar na perversão da política, um tema da obra de Maquiavel, a serviço do poder socioeconômico narcisista da elite rica.
“Narciso acha feio tudo que não é espelho”, diz a canção. Para os ricos, pobres e negros são feios. Sim, os ricos, que, além de corromperem agentes públicos, são especialistas em sonegação e evasão fiscal, estão cinicamente liderando a campanha antipetista. Segundo o Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional, a sonegação somou, em 2013, R$ 415 bilhões e R$ 501 bilhões em 2014. Mas a Operação Zelotes da Polícia Federal, que investiga montantes de sonegação de valor maior que o desviado na Lava Jato, envolvendo grandes grupos econômicos nacionais e internacionais, vai sendo levada no banho-maria, a não ser quando se trata de tentar capturar Lula e familiares. Aí, então, a mídia divulga, mas jamais para tornar público, por exemplo, que a RBS, afiliada da Globo no Rio Grande do Sul, é uma das principais investigadas.
Enfim, se confirmada, a autorização de processo de impeachment por pedalada fiscal, com Eduardo Cunha na presidência da Câmara, será a maldade final da farsa golpista. Mas o custo dessa inconsequência terá nome ou já tem: instabilidade social.
* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador das relações entre Política e Economia e Visiting Researche Associate da Universidade de Oxford