A dura e longa luta contra a fascistização como tendência do golpismo
O principal ator do teatro golpista encenado pela direita no Brasil, a mídia, passou por um escalonamento que revela bem o seu grau de degeneração. Desde que a denunciamania irrompeu com a tentativa golpista do “mensalão” contra o ex-presidente Luiz Inácio da Silva, ela vinha numa toada de criar avalanches de “escândalos”, uma mais irrelevante do que a outra, e chegou à editorialização da campanha golpista. Nos últimos dias, o panfletarismo descarado entrou em cena de forma acachapante. É uma militância golpista ferrenha, fanatizada, acintosa, criminosa.
Um exemplo é a profusão de pareceres para tentar apresentar o impeachment como um recurso legal, sem considerar o precedente para se chegar a ele; a caracterização de algum crime. O diz-que-diz jurídico, na verdade, oculta uma questão política, sem nenhum parâmetro legal. A maior parte dos que avalizam essa ação contra o governo transformou o episódio em mais uma batalha da guerra movida contra a presidenta Dilma. Mais do que qualquer opinião fanatizada ou falácias como as “pedaladas”, contudo, é o futuro do país que está em disputa.
Fica claro, portanto, que há uma guerra política que se move contra o programa de governo do Executivo eleito, bem como uma luta em favor de interesses politiqueiros. Ninguém, nesse caso, está envolvido numa batalha contra a corrupção, contra os desmandos de um governo autoritário ou a favor das liberdades públicas. Apenas se luta contra um programa de governo. Visto de outro ângulo, pode-se dizer que uma pequena parcela da sociedade mostra-se incapaz de respeitar regras estabelecidas democraticamente e renitente na defesa de privilégios descabidos.
Desprivatizar o Estado
O resultado é a construção de uma política de rancor. O atual governo é apresentado como o pior que já surgiu na história depois de Calígula. Dilma já foi comparada a Hitler, seu governo classificado como mais nocivo que a ditadura militar do AI-5, a campanha contra o golpe descrita como oportunista — e por aí afora, numa sucessão de disparates que seria cômica se não fosse reveladora da intolerância e do fanatismo que a mídia colocou no coração da política brasileira. Querem levar a disputa pela hegemonia na sociedade para longe de arenas claras, iluminadas pelo Estado Democrático de Direito.
Ou seja: não é com o governo Dilma que a direita realmente está em guerra. O seu problema é com o Brasil que não quer mais ser o mesmo. Ela guerreia com este Brasil em transformação pelo menos desde o início da década de 1940 do século XX. O problema é que de 1950 para cá a direita tem obtido poucas vitórias. De meados daquela década em diante, as forças populares deixaram de ser marginais para tornarem-se capazes de influir no grande jogo político do país.
Um exemplo disso foi a atitude de Juscelino Kubitschek que, em sua campanha eleitoral para a Presidência da República, conforme ele mesmo disse, foi forçado a reformular a sua proposta de governo sobre o petróleo por conta do sentimento patriótico entre o povo desenvolvido pelas forças progressistas. Fatos como este refletiam o crescimento das correntes políticas populares que chegaram à pauta das reformas de base, que deveria a um só tempo desprivatizar o Estado e dinamizar a vida econômica e política do país.
Práticas fascistas
São duas profilaxias tão urgentes quanto necessárias. A definição clara do que é público e do que é privado no país, do que é de todos e do que é de cada um, e do espectro de ação de ambos, é uma das discussões mais prementes nesse Brasil que nasceu nessa evolução política brasileira. No centro desse debate, está a engrenagem básica de qualquer sociedade humana contemporânea: a relação capital e trabalho, que transcende a esfera sindical. Desde a modernização do quadro partidário brasileiro pelo governo do presidente Getúlio Vargas, com a incorporação de uma ativa classe trabalhadora ao cenário político, há um espaço de centro-esquerda bem demarcado.
Até 1964, esse espaço foi liderado pelo PTB, partido ligado ao movimento operário que adotou uma plataforma nacional e democrática e revelou-se uma força ponderável na formação de um campo político nacional amplo e ao mesmo tempo com base popular. A interrupção abrupta dessa evolução com o golpe militar de 1964 criou mais obstáculos para o avanço histórico e se tornou calamitosa com a herança maldita deixada pelo neoliberalismo. Ela exige ações vigorosas para revogar a lógica de fazer do Estado um simples mediador da dinâmica do capital, questão apenas iniciada pelo ciclo Lula-Dilma.
Nesse período de predominância da direita seus governantes transformaram o Estado numa máquina exclusivamente a serviço do fluxo de capitais, com tecnocratas ocupando cargos centrais de poder, determinando suas metas, procedimentos e meios. Eles controlavam os mecanismos de diretrizes econômicas — e consequentemente políticas — e impuseram à sociedade seus valores rarefeitos e seus conceitos obtusos. São seus representantes políticos que, no afã de aproveitar o momento de fragilidade do governo para relançar o programa da direita, resvalam abertamente para práticas fascistas.
Cerceamento das liberdades
Há um compromisso aberto para afastar o povo das atividades políticas como meio para abrir caminho ao seu programa de governo. Basta ver como a mídia acena com a continuação da obra não terminada pelo projeto neoliberal, ao mesmo tempo em que joga a culpa da impopularidade do governo que ela forjou nas políticas públicas que beneficiaram os setores mais pobres da sociedade — como a valorização do salário mínimo e o estímulo ao consumo. Na impossibilidade de organizar o que a direita tem chamado de “vontade popular”, ela apela para o desgaste do seu adversário ideológico por meios vulgares, inescrupulosos, desonestos.
O “petismo” é o epíteto perfeito para essa finalidade. Toda e qualquer manifestação contrária a essa marcha golpista é insistentemente associada ao Partido dos Trabalhadores (PT) e à Central Única dos Trabalhadores (CUT) — umbilicalmente ligada a ele — para vincar essa ideia no imaginário popular. As coberturas midiáticas das manifestações anti-golpistas, por exemplo, são pautadas com esse viés. A ação persecutória do juiz Sérgio Moro, o capo da “Operação Lava Jato”, funciona como fonte para o conluio golpista. Com isso, forma-se a ideia coletiva de que há um mal que precisa ser eliminado: o “petismo”.
Quando se analisa as condições sociais desse modo de agir da direita, vê-se que ele tem necessidade de sufocar a ideia oponente. Nenhum regime dessa natureza pode se impor sem o cerceamento das liberdades públicas. Para realizar essa tarefa, ele dispõe de recursos para criar um clima de terror e delação. No Brasil de hoje, essas bases se encontram em germe, como pode ser visto nas manifestações golpistas de diferentes naturezas pelas ruas do país, na mídia e até nos lares. Esse figurino hitlerista está sendo confeccionado abertamente, sem que, até agora, muita gente boa tenha se dado conta.
Figura de um chefe
Para coroar esse movimento, precisa-se da figura de um chefe, capaz de se apresentar como a expressão corporal da “vontade nacional”. Seria ele o representante messiânico que transmitiria a força e a coragem nas quais são projetados os frustrados e humilhados pela subida de um ou dois degraus na escala do progresso social dos debaixo. Esses recalcados, com sua existência medíocre, se realizam pela identificação psicológica com esse personagem, como se ele fosse igual a um desses super-homens das ficções, imaginando que suas aspirações de elevação social podem ser realizadas por meio dele.
Mas, como em todos os outros aspectos dessa ideologia, a formação de um chefe nacional esbarra-se na sua heterogeneidade. É difícil para a direita conciliar seus compromissos e personificá-los em uma pessoa — salvo em pequenos interregnos, como foi na “era FHC”. O que a mídia tenta fazer é a cristalização ideológica de um projeto de poder para tentar dar-lhe sentido programático. E a partir daí forjar a figura do líder. Conclui-se, da análise desse estágio, que essa formulação da direita está se desenvolvendo. O seu crescimento dependerá, sobretudo, da capacidade de organizar a resistência pelas forças progressistas, populares e democráticas.
Nessa tarefa, cumpre analisar as experiências passadas para não cometer os mesmos erros e saber encontrar os verdadeiros objetivos históricos e a maneira acertada de realizá-los. A luta contra o golpismo não pode ser somente defensiva. Vencida essa etapa de ofensiva aguda da direita, a resistência terá de oferecer uma opção suficientemente convincente para amplos setores da sociedade. Nos momentos que se avizinham, haverá muito pouco lugar para timidez, hesitação e covardia política.