O lugar da “burguesia nacional” na composição social das forças golpistas
Em São Paulo, sempre foi comum ouvir a palavra “poderosa” antes da sigla Fiesp toda vez que algo é dito sobre a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, epíteto usado como reforço da campanha golpista contra a presidenta Dilma Roussefff. A fórmula se repete pelo país afora, com entidades congêneres, que igualmente se lançaram na aventura irresponsável do golpismo. Em Maringá, Paraná — minha cidade natal, assim como do juiz Sérgio Moro —, vi a Associação Comercial e Industrial (ACIM) chegar ao ponto de fechar lojas e paralisar obras em protesto contra a “corrupção” e em apoio à “Operação Lava jato”.
Essa cópia maringaense da Fiesp não é a única, mas o exemplo revela o grau de cinismo dos golpistas. Por sua visibilidade e poder de fogo, a influência da inquilina do prédio de dezesseis andares construído sob a forma de pirâmide num dos pontos mais valorizados da Avenida Paulista na campanha contra a democracia é a mais poderosa. Tanto que a combinação da sigla com o adjetivo “poderosa” colou de tal forma que a associação se tornou automática. A fórmula sintetiza o poderio do baronato paulista, seus abusos e desmandos, mesmo ele não sendo mais o que já foi.
Industrialização do país
Quando a entidade fez algumas críticas ao peso excessivo do setor rentista nas políticas do governo durante a “era neoliberal”, ela foi duramente atacada. Fernando Collor de Mello chegou a dizer que a Fiesp era um “covil de retrógrados”. E Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central (BC) e o mais neoliberal dos neoliberais (era o queridinho do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso), disse que a entidade era um “monumento ao desperdício”. Nem por isso ela fez oposição peçonhenta ao governo como faz atualmente, comandada por Paulo Skaf.
A entidade, que tem usado como símbolo de sua campanha “Não vou pagar o pato” para atacar a presidenta Dilma Rousseff e apoiar o impeachment fraudulento em curso, vem sendo acusada até de plágio pelo artista plástico holandês Florentijn Hofman por não ter pago o pato — literalmente — que copiou da obra Rubber Duck (ou pato de borracha), criada pelo artista e exposta em cidades como São Paulo, Amsterdã e Hong Kong. Ela, na verdade, expressa o pensamento político do que se chama de “burguesia nacional”, pusilânime e oportunista desde que a Revolução de 1930 se propôs a industrializar o país.
Poder contra o povo
O papel dessa burguesia foi tema de intensos debates no 5º Congresso do Partido Comunista do Brasil, que consumou o racha e levou à reorganização do Partido com a sigla PCdoB, quando ficou constatado que ela não tem compromisso com um projeto de desenvolvimento, principalmente se o seu escopo contemplar a inclusão social dos milhões de brasileiros que historicamente se multiplicaram à margem da sociedade organizada, sem cidadania e sem poder aquisitivo. Uma caracterização dessa posição foi a conclamação do ex-presidente da Fiesp Mário Amato para que o empresariado nacional abandonasse o país em caso de vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 1989.
Skaf foi mais além ao pôr a entidade a serviço de um trabalho sujo, farsesco, a ponto de mandar decorar o prédio da entidade com as cores alusivas ao golpismo (uma conspurcação dos símbolos nacionais), e dizer, entre outras bobagens, que Dilma não tem “carisma” para o cargo que ocupa. Essas provocações mostram bem o seu grau de obtusidade política. A questão é que carisma pode muito, mas não consegue frear a passagem do tempo. E o que diminuiu o poder político dessa gente foi exatamente isso: o tempo passou. O seu equívoco maior é o de imaginar que basta pôr alguém da sua turma no painel de comando do país para que o seu projeto recobre o brilho perdido.
A economia do país mudou. O cenário político é outro. Mas a direita continua a mesma. Isso quer dizer que os conservadores perderam poder político, mas não o dinheiro, a pose. Poderosa politicamente a direita não é mais como no passado, mas economicamente sim. E a nossa história tem demonstrado que a elite brasileira não titubeia quando precisa usar esse poder contra o povo para assegurar os seus privilégios. Essa é a explicação para a sua insistência no golpismo, hoje uma tentativa desesperada de instalar um governo que garanta a “ortodoxia” macroeconômica, uma forma de jogar nas costas dos trabalhadores e do povo o custo da crise internacional do capitalismo.
Interesses particulares
Os métodos dessa campanha golpista mostram que ela representa mais nitidamente um setor da sociedade que se imagina dono do Brasil por razões históricas. É aquela gente que sente raiva de quem faz alguma concessão ao povo. “Os impostos que pagamos são a nossa contribuição para que o pobre do interior do Maranhão melhore de vida”, escreveu Danuza Leão, umas das venenosas porta-vozes dessa campanha, em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo. Essa afirmação garante a ideia de que a fome no país é resultado da proverbial má-fé dessa gente.
O Estado brasileiro, historicamente ligado a esse setor, funcionou, na maior parte do tempo, como continuidade de interesses particulares. Assim, não construímos ontem nossas estradas de ferro nem nos conectamos via telégrafo, por exemplo, porque o interesse coletivo nunca esteve no horizonte estatal brasileiro. Nem tampouco construímos uma competência brasileira no comércio exterior. Era fácil para uns poucos de sempre produzir qualquer coisa e vender de qualquer jeito para qualquer um. E ao mesmo tempo sempre foi fácil para eles comprar luxo lá fora. Tudo acontecia dentro da casa grande e suas congêneres, com as portas e as janelas seladas pelo Estado. Quem estava fora não tinha como entrar, quem estava dentro não tinha porque sair.
O ciclo Lula-Dilma teve a ousadia de abrir essas portas e janelas. Não existe um método mais eficaz de integrar os excluídos do que o de transformar o sertanejo, o peão, o matuto, o morador das periferias abandonadas em consumidores. O advento de uma sociedade de consumo de massa no Brasil começou a funcionar como atalho econômico para a solução de muitas de nossas mazelas sociais. O brasileiro consumindo mais leite, mais carne, mais frutas, e também mais teatro, mais filmes, mais livros, passou a ser um sujeito com potencial para alicerçar um novo ciclo da nossa história.
Mercado doméstico robusto
A dívida social, que sempre foi rolada e pulsava nos quatro cantos do país, intocada e intumescida, enfim começou a ser paga. A égide do consumo popular, dessa forma, representou a verdadeira esperança de dias melhores para o país, de um projeto de nação solidamente instalado no Estado, coisa que jamais tivemos por aqui. Quem poderia dar a partida nesse processo? A ignição teria de ser girada pelo governo. E, com isso, o neoliberalismo dito “moderno” passou a não ser mais a opção tida como única em nosso menu político. Ele é, hoje, a antítese da via óbvia para o desenvolvimento sustentado do país.
O desafio é conscientizar o país de que ou nos movemos nesse rumo, fazendo do Estado um ativo capitão de um time formado por jogadores efetivos, ou tombamos todos juntos, como nação, do pico à base da pirâmide social. Essa lógica tem boas chances de dar o troco histórico àquela distorção do Estado oligárquico. A distribuição da riqueza, antes ideia proscrita nos círculos que detinham o poder no Brasil, começou a se transformar em pré-requisito até para que o capital se remunere; o lucro dos produtores está cada vez mais atrelado ao poder de compra dos consumidores, bem como à inclusão dos excluídos na ala economicamente ativa da sociedade.
A obviedade da importância de um mercado doméstico robusto para o desenvolvimento econômico e social do país já deveria estar consolidada em solo nacional. Não faz tempo que o Brasil começou a sair do beco no qual foi enfiado pela “era neoliberal”, com sua economia estrangulada e exaurida. A própria Fiesp entrou nesse debate, quando o empresário Cláudio Vaz concorreu com Skaf em 2004. “Num país como o nosso, precisamos do Estado como instrumento de efetiva liberdade, indutor de investimentos, inclusive para dar forma a uma sólida sociedade civil”, escreveu ele em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo.
Investida do neoliberalismo
Segundo ele, havia um projeto para Lula chegar ao poder, mas não um projeto de governo. “Resultado: mantidas as linhas macro da economia, que vinham sendo seguidas desde meados dos anos 1990, o país teima em não crescer. É frustrante. É inquietante. A economia, hoje, ancorada nas exportações e na agroindústria, emite claros sinais de esgotamento. Daí a necessidade de novos rumos”, escreveu. Para Cláudio Vaz, o empresariado industrial brasileiro precisava realizar um amplo trabalho de integração e articulação entre todos os setores econômicos para desenvolver “produtiva discussão” com os atores sociais e políticos sobre a sua visão quanto ao presente do país. “O foco essencial são as questões maiores, que inibem a retomada do desenvolvimento sustentado”, afirmou.
O primeiro passo para que os empresários brasileiros — assim como para os outros atores sociais e políticos de que fala Cláudio Vaz — ajudassem a fazer com que os ventos soprassem a favor de nossos barcos era se organizar. O Brasil precisava desenvolver estudos de primeira linha, argumentos sólidos e linhas de raciocínio claras. Em síntese: um projeto de país soberano. Avançamos muito, sim, nessa direção, mas ainda precisamos de união para seguir vencendo nossos problemas. Mas tem de ser a união do povo, dos movimentos sociais e das forças que expressam algum sentimento nacional. Toda vez que um governo fez isso, o Brasil deu um enorme salto de qualidade.
Peguemos o exemplo de Getúlio Vargas, o mais destacado presidente da história brasileira. Ele mudou a agenda do país e manejou como nenhum outro as contradições políticas de seu tempo. Nosso processo de transição do regime militar para o civil, no começo dos anos 1980, também ocorreu por meio de um pacto, embora com concessões às forças que sustentaram a ditadura e não explícito. O resultado foi que, na esfera econômica, não houve, durante os anos 1980, um pacto ou acordo abrangente que pudesse facilitar a adoção de uma visão desenvolvimentista — o que poderia obstaculizar a investida do neoliberalismo nos anos 1990. Hoje, com os êxitos do ciclo Lula-Dilma, a volta dessa investida enfrentaria muito mais resistência.