São Paulo – “A votação do impeachment no domingo não é apenas a tentativa de derrubar um governo cuja liderança está na esquerda. O que se está tentando fazer é criminalizar o conjunto da alternativa popular no Brasil e tirá-la do cenário político talvez por muito tempo. Sem dúvida, o que vamos viver neste domingo é um episódio maior da luta de classes no Brasil.” A opinião é do cientista político André Singer, ex-secretário de Imprensa do Palácio do Planalto e ex-porta-voz da Presidência da República no governo Luiz Inácio Lula das Silva.

Segundo ele, é muito significativo que a luta de classes tenha voltado à cena “trazida pela direita e pelo capital”. “Isso é surpreendente. Por que essa ofensiva diante de um projeto, de um governo que o tempo todo tentou conciliar, desde 2003 até agora, e jamais apostou na ruptura e no enfrentamento?”

O que está em questão, no momento, é o desmantelamento da alternativa popular no país, representada pelo segundo governo de Getúlio Vargas e pelos governos petistas de Lula e Dilma Rousseff, defendeu Singer.

“Se você desmantela a alternativa popular, ela vai demorar mais dez, vinte anos para se reconstruir. Talvez seja isso que esteja em jogo. Se for isso, estamos não no fim, mas no começo de um novo processo de luta de classes selvagem.”

Ele participou de debate, organizado pela Associação dos Docentes da USP (Adusp), na sede da universidade, na noite de ontem (13 ), ao lado de Armando Boito, do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Tales Ab´Sáber, psicanalista e ensaísta, e José Maria de Almeida, candidato do PSTU à Presidência da República em 2014, que recomendou o voto nulo no segundo turno.

Ditadura?
Boito acredita que “a deposição de Dilma pode resultar em uma ditadura, porque a deposição não vai ser indolor”. “Não vai ser como tirar Collor e colocar Itamar Franco.”

“Não acho que vamos chegar na ditadura, acredito que a democracia está consolidada no Brasil, mas podemos estar diante de situações cada vez mais imprevisíveis”, disse Singer.

Os sinais que estão surgindo com o crescimento da extrema-direita no país são muito preocupantes, afirmou o cientista político da USP, que se disse surpreso com o crescimento de um representante simbólico desse setor. Entre os eleitores com mais renda, acima de dez salários mínimos, Jair Bolsonaro está com 20% das preferências, segundo o instituto Datafolha. “Agora eu entendo as vaias aos dirigentes do PSDB nas manifestações a favor do impeachment.”

Para Tales Ab´Sáber, a esquerda e, principalmente, o governo e seus representantes não compreenderam ou subestimaram a ascensão da “nova direita”. “De março a agosto de 2015, a direita fez três manifestações. O governo não reagiu, achou que ia barrar esse processo, e não barrou.”

O psicanalista entende que Lula, no auge de sua força política, se equivocou ao indicar como sua sucessora uma pessoa “não-política para comandar a política”. “Lula preferiu uma pessoa do campo técnico para operar a complexa política brasileira. Isso foi um erro.” Na opinião de Ab´Sáber, a disputa esquerda versus esquerda, a partir das manifestações de 2013, “abriu espaço para ser ocupado pela nova direita”.

Armando Boito disse que “as manifestações de junho de 2013 foram confiscadas pela direita para fortalecer o campo neoliberal ortodoxo”. Ele acredita que hoje, três anos depois, por trás do golpe está uma tríade formada pelo capital internacional e o “imperialismo” insatisfeito com os governos petistas, a burguesia integrada aos interesses internacionais e a alta classe média.

O professor da Unicamp rebateu com veemência a fala de Zé Maria, do PSTU, que voltou a insistir no argumento de que PSDB e PT são, em última análise, a mesma coisa e não defendem os interesses dos trabalhadores. “Aqueles que tentam negligenciar a importância da diferença (entre PT e PSDB) têm muita dificuldade de entender a crise atual”, afirmou Boito.

Ele usou os termos “desenvolvimentistas” e “neoliberais” para caracterizar, respectivamente, os representantes dos governos petistas e os articuladores do golpe. “Por que os desenvolvimentistas, nesse momento, são apoiados pelos movimentos sociais e os neoliberais não são? Não tinha um negro sequer em manifestação pelo impeachment, em Salvador. É, sim, um conflito de classes. Se os movimentos sociais estão contra o golpe é porque têm consciência de que algo estão perdendo. Os governos do PT não romperam com o capitalismo, mas foram até o limite onde era possível ir, no modelo em vigor”.

PT e Getúlio Vargas
André Singer defendeu a mesma linha. Para ele, o momento atual tem semelhanças com 1954. “Levaram Getúlio Vargas ao suicídio, e naquele momento havia o ‘mar de lama’ (as sistemáticas denúncias de corrupção contra Getúlio). É óbvio que Getúlio não era um socialista, do mesmo modo que os governos do PT não são socialistas. Eles e o segundo governo Getúlio são governos populares.”

Na opinião de Singer, o PT deixou de ser um partido de classe, o que não diminui o caráter inclusivo de seus governos, que transformaram o país com programas como o Bolsa família e o ProUni. “O PT mudou. Eu estou dentro do PT, continuo no PT, e estou entre os que foram contra a mudança. Mas o PT não mudou para ser um partido da burguesia, mas para ser um partido profundamente popular.”

Porém, segundo André Singer, na atual conjuntura de crise e golpe, o momento não é adequado para se colocar em debate o que o PT poderia ter feito melhor no governo. “Não é hoje o dia de fazer um longo debate sobre esse assunto. Nas circunstâncias em que há uma avalanche querendo criminalizar o PT e Lula, o ex-presidente ainda aparece como o preferido entre os mais pobres do país. Se dependesse deles, ele seria reeleito presidente. Não podemos deixar de enxergar isso.”

A questão central do debate, diz, é a seguinte: “O que é possível fazer depende de correlação de forças. Você não pode fazer o que você quer, mas o que tem força para fazer. Foi possível efetivar um projeto popular que se está tentando de novo tirar de cena, porque foi isso o que aconteceu em 1954 e levou Getúlio ao suicídio. O capital no Brasil parece que não consegue conviver com uma alternativa popular competitiva.”