Ódio dos golpistas reflete sua fragilidade
Tudo começou com agressões a expoentes do PT: o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega foi hostilizado no Hospital Albert Einstein em fevereiro de 2015, quando visitava um amigo que sofrera um infarto: “Vai para Cuba”. Seguiram-se xingamentos –em restaurantes, livrarias, avenidas– aos ex-ministros Alexandre Padilha e José Eduardo Cardozo, ao ex-senador Eduardo Suplicy, ao ministro Patrus Ananias. A última vítima foi o ex-ministro Gilberto Carvalho, chamado de ladrão num hotel.
Depois começaram as ofensas e agressões físicas contra qualquer transeunte suspeito de ser um “petralha”. Em São Paulo, uma garota que dirigia uma bicicleta vermelha foi espancada em frente ao Masp aos gritos de “vadia”, “putinha” e o onipresente “vai para Cuba”. Em Curitiba, um rapaz teve sua camiseta vermelha arrancada e incendiada pelos supostos “patriotas” após ser socado e chutado. Em Porto Alegre, uma médica se recusou a atender um menino de 1 ano porque este era filho de uma suplente de vereadora do PT. Os indivíduos que promovem tais ataques covardes agem assim porque se julgam respaldados por uma massa: podem praticar qualquer atrocidade porque contam com a proteção de uma coletividade.
Como racionam essas pessoas? As análises de Gustave Le Bon em Psicologia das Multidões, desenvolvidas por Freud em Psicologia das Massas e Análise do Eu, são bastante esclarecedoras. Tais multidões são impulsivas, volúveis e excitáveis porque são guiadas pelo inconsciente. Seus sentimentos são sempre muito simples e exaltados: a massa não conhece dúvidas nem incertezas porque se apoia na repetição dos mesmos slogans — princípio adotado pelos ideólogos do nazismo, e depois levado à perfeição pelos grandes meios de comunicação. No fundo a multidão é “inteiramente conservadora, tem profunda aversão a todos os progressos e inovações, e ilimitada reverência pela tradição”, comenta Freud. A rigor, “as massas nunca tiveram a sede de verdade. Requerem ilusões, às quais não podem renunciar. Nelas o irreal tem a primazia sobre o real”.
Os comentários de Freud iluminam com perfeição alguns traços dessas multidões iradas que hoje exigem o impeachment. É impossível entabular uma discussão, um debate racional, como percebeu a filósofa Marcia Tiburi em “Como conversar com um fascista”. Um indivíduo que exige o afastamento da presidenta em nome do combate à corrupção não vê nenhum problema em carregar uma faixa com os dizeres “Somos todos Cunha”. Inútil exibir provas das inúmeras irregularidades cometidas pelos autodenominados defensores da moralidade: Freud esclarece que, quando um indivíduo passa a integrar essa multidão, “sua afetividade é extraordinariamente intensificada”, mas “sua capacidade intelectual” fica “claramente diminuída”.
As ofensas e agressões contra os petistas, reais ou imaginários, nascem desse medo do outro, dessa recusa inflexível em aceitar qualquer diferença. Daí esse terror cotidiano: não basta silenciar o outro, é preciso suprimi-lo.
Por que esses conservadores sentem tanto medo da esquerda? Talvez a principal razão resida no fato de que essa massa sabe que sua coesão é ilusória: a agressividade contra o outro visa ocultar sua divisão interna. Como explica Elias Canetti em Massa e Poder, “cada um dos membros de uma tal massa abriga em si um pequeno traidor”. Os ataques contra os “petralhas” são necessários para impedir que os antagonismos entre seus integrantes se manifestem à luz do dia.
Levantamentos feitos pelo Datafolha mostram os manifestantes pertencem sobretudo às chamadas classes A e B: 68% ganham mais de 5 salários mínimos, 69% são brancos, 76% têm ensino superior. Em termos substantivos, essas pessoas integram as camadas que concentram a riqueza social: empresários, profissionais liberais e, sobretudo, assalariados de alta renda. É fácil perceber que a massa favorável ao impeachment é composta pelos mesmos segmentos que apoiaram o Golpe de 1964.
O problema é que os interesses dessas camadas não são idênticos. Os porta-vozes do movimento repetem sem cessar que a crise foi criada pelo intervencionismo do Estado. Em seu artigo Classe média e conservadorismo liberal (2015), o cientista político Sávio Cavalcante assinala que, para os ideólogos neoliberais, o PT criou um “Estado grande e protetor”, que sustenta “indivíduos parasitários, ineficientes e dependentes de bolsas e assistencialismos”. Por isso a solução ideal seria aquela proposta pelo PMDB em seu programa “Uma ponte para o futuro”: privatizar estatais, eliminar as vinculações constitucionais para saúde e educação, suprimir direitos trabalhistas.
Esse programa atende perfeitamente aos objetivos dos empresários, mas é aceitável aos demais manifestantes? Uma pesquisa com os integrantes da manifestação realizada “no dia 16 de agosto em São Paulo contra o governo Dilma indicou que mais de 95% dos entrevistados eram favoráveis a sistemas de educação e saúde públicos e gratuitos. Até mesmo uma bandeira nada liberal, como a gratuidade do transporte coletivo, é apoiada total ou parcialmente por 49% dos manifestantes”, diz Cavalcante.
A maior parte da classe média que foi às ruas não é privatizante, e sim estatizante. E esse resultado não é novo: as pesquisas conduzidas por Antônio Flávio Pierucci, que deram origem ao estudo As bases da nova direita (1987), já apontavam esse fato: paradoxalmente, os militantes de base do conservadorismo defendem um Estado fortemente intervencionista: “O papo liberal anti-welfare, claro está, não é com eles”.
Para essa massa, o grande problema do Estado não é a falta de recursos: basta que um político honesto ascenda ao poder para que tudo se resolva. Contudo, quando se pergunta o nome desse político, essa unidade desaparece. Michel Temer é quase tão rejeitado quanto Dilma Rousseff. Os tucanos Aécio Neves e Geraldo Alckmin tiveram de deixar o ato de 13 de março sob vaias.
Hoje as divisões dessa coalizão oposicionista estão escondidas sob as palavras de ordem contra o governo Dilma. Os atos de violência contra os “inimigos do povo” são necessários para esconder sua fragilidade interna. A massa ataca ostensivamente os “petralhas” para sufocar suas próprias inclinações “vermelhas”. Mas essa retórica contra a corrupção — cujo objetivo é entregar todo o poder à cúpula do PMDB — não conseguirá soldar interesses tão diferentes por muito tempo. E então essa massa deixará de desfilar nas ruas, tal como ocorreu em 1964.
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Fonte: Brasileiros