O escândalo gerado pelo comportamento boçal dos deputados que votaram a favor do golpe na Câmara dos Deputados não é um fato isolado. Esses parlamentares incumbidos da “moralidade pública” misturaram arrogância, grosseria, ignorância e, mais que tudo, uma irrefreável vontade de aparecer. Eles apenas se comportaram de acordo com os padrões dos “honestos” e “sabichões” que povoam a mídia, ditando regras e pondo cabrestos na turba que vai às ruas protagonizar espetáculos de grosseria e estupidez, achando que as pessoas que fazem críticas são superiores às que tentam resolver problemas.

Na teoria, a Câmara dos Deputados é a casa legislativa onde as pressões populares ressoam de maneira mais intensa. Nela, exageros de estilo podem ser mais facilmente tolerados. Algumas vezes, o comportamento dos deputados se situa no limiar da boa educação, mas não destoa necessariamente do script institucional. Mas na votação da admissibilidade do impeachment, os golpistas ultrapassaram esse limite. Ainda em teoria, o Senado deve ser o contraponto da Câmara. Seu funcionamento deve ser mais recatado e austero. Uma de suas funções seria justamente moderar eventuais arroubos da Câmara. É certo que o estilo de cada instituição depende, em grande parte, de quem esteja em sua liderança e das circunstâncias.

Claro que não se poderia esperar algo diferente em uma Câmara presidida por Eduardo Cunha (PMDB-RJ), sabidamente um parlamentar de maus costumes e subqualificado para a função. A novidade é que a onda de descrédito na qual esses parlamentares estão se afogando levou embora o manto de santidade que protegia a sua imagem — e agora eles podem, enfim, serem descritos como realmente são. É um avanço, sem dúvida, quando se leva em conta o tratamento-padrão que recebiam. Isso permite dizer que Cunha não pode mais se apresentar como Nosso Senhor Jesus Cristo, nem seus aliados como os doze apóstolos. Nunca foram, é claro. Mas agora, em meio ao desastre das suas performances, perderam a condição para sustentar que eram.

Esses parlamentares nunca honraram a condição de representantes do povo. Foi assim, no vácuo do trabalho propriamente legislativo, que se configurou a pororoca política que levou à admissibilidade do impeachment naquela histórica encenação de cinismo e vulgaridade. Ainda em teoria, a cena grotesca do dia 17 de abril não pode se repetir no Senado. Isso não significa que podemos dar como certa a prevalência da sensatez, da honradez e da justiça na avaliação da admissibilidade e no julgamento do processo golpista naquela Casa. A tendência é de repetição, por boa parte dos senadores, da ladainha politiqueira que substitui o mérito da questão.

Miserável insignificância

A montagem dos autos da investigação funcionou assim: dizia-se que alguém foi pego com a mão na massa, cometendo um delito, sem dar nenhuma explicação plausível para o ato concreto. Ou melhor: dava-se sete explicações diferentes, o que na prática significa nenhuma. Mas tudo era transformado em overdoses de “indignação”. Aí se exigia a apuração imediata das responsabilidades. Nos dias seguintes, a discussão passava a ser, cada vez mais, o que o governo teria ou não teria feito a respeito. Não se descobria nada de concreto, é claro, pois não havia nada a descobrir, mas deixava-se de lado a questão central. E chegou-se onde chegou: sumiu o crime, ficou o autor. Tanto que ninguém entrou no mérito da acusação à presidenta Dilma Rousseff na escandalosa votação na Câmara dos Deputados.

Nesse ambiente que premia sistematicamente a indignação, pouco importando se ela se baseia ou não em fatos, tornou-se regra conferir respeitabilidade à opinião desinformada. Não vem ao caso a lógica de que ser contra tudo é igualar tudo, o melhor e o pior, o mais limpo e o mais corrupto. Vemos isso abertamente também em ações do Judiciário, como a “Operação Lava Jato” e as patetices dos promotores que pediram a prisão preventiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em São Paulo. É mais fácil imaginar São Francisco de Assis participando de um torneio de tiro ao pombo do que achar alguma boa intenção nessas ações.

A única coisa que essa produção de “escândalos” em série vem conseguindo, de verdade, é degradar a palavra “escândalo”, dada sua miserável insignificância para um efetivo processo de combate à corrupção. O real interesse dessa onda de falso moralismo é a promoção politiqueira do golpe. A equação que sustenta esse teorema é a de que os deslizes éticos, por sua proliferação ou institucionalização, têm origem na estrutura de classes do país — que se reflete na composição do poder político. Eles estão longe dos alvos que desfilam no noticiário como verdadeiros chefes de quadrilhas, sem que se apresente um único dado concreto para comprovar as acusações.

Se as previsões estiveram corretas, não veremos mais escândalos pipocando na mídia caso o golpe se consume. No máximo, teremos a repetição goebbeliana das denúncias que já estão aí. Não porque a mídia vai deixar de ser investigativa e comprometida com o cidadão, da noite para o dia. Essa diminuição da proliferação de denúncias ocorrerá pelo simples e fundamental fato de que o Brasil entraria num cenário de reacomodação dos interesses de classes, com o governo pouco autorregulado e o Estado enfraquecido administrativamente, no qual o combate à corrupção deixaria de existir como prioridade. E a mídia, como fiadora dessa nova fase do país, teria outros interesses para se dedicar.    

Falso ético

Aos pouco o Brasil vinha constituindo um sistema de governo transparente e ágil, montado em uma regulamentação severa, rigorosa na apuração das falcatruas e indefectível na punição dos culpados. Um governo com esse patamar de eficiência, no entanto, tem de ser, necessariamente, popular e democrático. Para a ideologia neoliberal, o próprio mercado se encarregaria de criar as condições de governabilidade, de acordo com seus interesses. Numa frase: deixar a apuração de denúncias de corrupção nas mãos dos que se beneficiam dela. Ou seja: procurar justificativa para essa investida dos golpistas contra a legalidade democrática é advogar a falsa ética do falso bem, do mercado de supostos bons sentimentos. Temos presenciado, nos dias atuais, uma espécie de fortalecimento dessa falsa ética.

A ética é um dos maiores valores sociais. E por isso merece ser preservada. Mas a ética sofrida, conquistada em meio à coragem de assumir totalmente o que é humano. Não essa vigarice que existe por aí. Os fatos não ocorrem por acaso. Há sempre uma causa em sua ocorrência, e é preciso descobri-la. Uma inequívoca evidência dessa falsa ética é a propaganda desbragada da “responsabilidade fiscal” — inclusive com legislação específica em vigor —, na qual os golpistas querem enquadrar a presidenta Dilma Rousseff. Em defesa dessa hipocrisia, o falso ético usa o disfarce da ética como pele de cordeiro para potencializar sua ação perniciosa.

O ex-ministro tucano Luiz Carlos Mendonça de Barros, flagrado em conversas condenatórias durante a privatização do sistema Telebrás, por exemplo, disse que a “corrupção” justifica a retomada do escandaloso programa de desestatização da “era FHC”. Para ele, o debate não é “ideológico — é uma questão objetiva”. Mendonça de Barros, quando ministro das Comunicações, e André Lara Resende, então presidente do BNDES, atuaram confessadamente (a negociata apareceu em gravações amplamente divulgadas pela mídia) para beneficiar o consórcio do banco Opportunity — que tinha como um dos donos o economista Pérsio Arida, amigo do ex-ministro, e o próprio Lara Resende. O valor estimado do “benefício”: 24 bilhões de reais.

Vaca sagrada

Os neoliberais têm esse péssimo hábito de arbitrariamente procurar fundamentos doutrinários para tentar encurralar os adversários ideológicos. Eles difundem suas teses como se fossem a verdade absoluta; não parece haver mais nada que a sociedade, o Estado, Deus, você ou eu possamos ou devamos fazer. É uma questão “objetiva” e ponto final. Em cima da tese de Mendonça de Barros, a revista Exame — espécie de bíblia dos neoliberais brasileiros — produziu um desses manifestos patéticos e histriônicos que vira e mexe aparecem nas pregações golpistas.

Segunda a revista, o “braço público” na economia favorece “assaltantes do Erário”. “A corrupção desavergonhada não é o único nem o principal motivo para que a União venda seus ativos — há outros como a incapacidade de realizar novos investimentos e o desequilíbrio nas contas públicas”, afirma o texto. Na verdade, o que a revista está defendendo é a farra com o patrimônio público, a privataria, tão comum ao longo da “era FHC”. A patetice panfletária da Exame, no entanto, tem os seus méritos. Um deles é o de explicar que o Orçamento federal precisa ser “contido” — especialmente os investimentos sociais — para provocar superávit primário, vaca sagrada da especulação financeira. Em resumo: um Estado assaltado pelo “mercado”.

A essência do golpe

Ao final das contas, pela repetição à exaustão da mídia, fica-se com a impressão de que os passos que os governos Lula e Dilma deram em direção à instauração de um Estado mais sintonizado com a nação enfraqueceram a administração, quando trata-se precisamente do contrário: a maior dificuldade para enfrentar os golpistas decorre das reformas progressistas não realizadas, dos avanços em direção à eficiência e ao racionalismo econômico não sistematizados; e, mais importante, não ter impulsionado com mais força o crescimento do Estado de modo a fazê-lo ter mais importância na vida do país.

Em um mundo político em que gritarias valem mais do que cérebros, esse é um prato cheio para a chantagem. Falta músculo ao governo para responder às ameaças golpistas. A arrogância belicosa da direita, lei tácita que estabelece como regra o espumar e o ranger de dentes no lugar dos argumentos — como se viu na votação do golpe na Câmara dos Deputados —, se espalha nesse vazio de autoridade. Enquanto imperar a regra do latido, não há dúvida, teremos cada vez mais candidatos a cachorro louco. Uma denúncia, mais uma denúncia, mais outra denúncia, sem respostas contundentes, não criam estabilidade, criam golpe. O que há é uma corrida em que um adversário tenta aniquilar seu concorrente. Essa é a essência do golpe.