A Caravana da Democracia liderada pela União Estadual dos Estudantes (UEE) e da União Paulista de Estudantes Secundaristas (UPES), com apoio da Fundação Maurício Grabois (nacional e seção paulista), da UNE, da ANPG e Fórum 21, chega a Campinas, reunindo os professores Armando Boito Jr, Quartim de Moraes e a jornalista Renata Mielli, no Centro de Convenções da Unicamp. O evento foi transmitido ao vivo pelo “ Coletivizando Saberes”.

A presidenta da UEE, Flávia Oliveira, apresentou a caravana como parte da tradição dos estudantes na luta em defesa da democracia, desde o regime militar de 1964. Ela destacou a importância da Unicamp em reverberar para a sociedade a luta contra o golpe, mantendo sua história de luta. A líder estudantil fez um chamado aos estudantes e à juventude “para valorizar o sangue daqueles que deram suas vidas em defesa da democracia e das liberdades”.

O prelúdio fascista de 2013

O filósofo Quartim de Moraes voltou a junho de 2013, quando iniciou-se o que ele considera um “situação calamitosa criada pela ofensiva reacionária que pegou carona na mobilização de rua”. “A batalha política na rua foi ali que começou”, afirmou.

Quartim fez um balanço dos movimentos que se sucederam desde a luta pela justa causa contra o aumento da tarifa de ônibus até a brutal repressão policial que sensibilizou as camadas medias e liberais contra a polícia, levando para as ruas uma parcela social que se identifica com valores de direita. “A PM é uma milícia privada fascista do Alckmin”, disse.

Para ele, a infiltração da tropa de choque fascista contra “vermelhos, movimentos e partidos” é um fenômeno histórico conhecido. “Aquilo foi o prelúdio do que iríamos viver nos três anos seguintes”.

Desde então, houve uma derrota histórica no campo institucional, com o avanço no Congresso da Jesuslândia, a versão brasileira do Bible Belt gringo. “Eduardo Cunha é o talentoso chefe do gangsterismo, e, hoje, temos o crime organizado instalado na Câmara Federal. Ele obteve êxito onde outros tentaram e não conseguiram”. Este impeachment, de acordo com Quartim, nada mais é que uma vingança no plano institucional.

O filósofo acredita que os setores progressistas têm uma vitória ideológica, ainda que o golpe passe no campo institucional. “Os primeiros seis meses depois do golpe serão um período imenso, que vai durar tanto em dramaticidade e história política como as eras geológicas”, destacou.

Houve um golpe e isso é internacionalmente reconhecido, em sua opinião. Quartim lembrou do encontro com Augusto Boal no exílio em 1970, quando ele denunciava as torturas que ocorriam no país. Ao voltar ao Brasil, foi preso e espancado sob a afirmação cínica do torturador, de que “isso é pra você aprender a não caluniar o Brasil no exterior”.

Quartim usou o exemplo para referir-se à timidez da presidenta Dilma na Assembleia da ONU, quando evitou falar no golpe. “Três meretrícimos juízes a reprimiram e ela recuou. Seu discurso ficou muito aquém do que poderia ter dito.” Para ele, a direita percebe que Dilma tem caráter, não vai renunciar, e por isso joga sobre ela a tese de que falar que tem um golpe, lá fora, é caluniar o Brasil. “São piranhas que sentem cheiro de sangue e vão pra cima. Assim, o crime não é executá-lo, mas denunciá-lo”, define o filósofo. “A primeira providência de um bandido é limpar a cena do crime.” 

“Não podemos deixar essa vitória nos escapar das mãos”. Quartim é enfático no modo como considera essa batalha ganha e defende sua importância na guerra ideológica.  “Mesmo no tucanistão [Estado de São Paulo], a importância da mobilização de rua mudou a visão da mídia do grande capital, como The Economist”. Para ele, esta é uma vitória importante para formar consciência agora e no futuro e imprimir uma derrota política.

Quartim considera fundamental observar o que acontecerá nas eleições de outubro, em geral, consideradas de menor importância, embora construam um aparelho gigantesco de defesa. Imagine se a direita tiver um resultado bom. “Vai coincidir, grosso modo, com a sentença contra Dilma. O que faz o inimigo e o que fazemos nós?” Estamos em pleno combate, afirma. Será uma grande resposta se os setores progressistas forem capazes de ter um avanço eleitoral.

O PMDB sempre foi um grande balcão de negócios, “que estava em todas”. “Pra fazer isso, não pode ter um programa ideológico só”, afirmou ele. Segundo Quartim, é intrínseca a lógica de que o PMDB é frouxo em termos ideológicos, uma frouxidão que vai atravessar os próximos meses. “Até Gilmar Mendes, o mais grosseiramente reacionário ministro do STF, se preocupa que Temer assumindo, viajando, Cunha possa ser presidente. Ele açula a jesuslândia para rever todos os avanços culturais conquistados. É um problema pra eles descascarem”.

Porta-vozes do golpe

A jornalista Renata Mielli destacou a forma mais crítica com que a mídia internacional expressa o que acontece no Brasil, jogando alguma luz, sendo que alguns reconhecem que o que está acontecendo é um golpe.

Diretora do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, Renata recebeu no dia anterior o ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, que teria lamentado a transmissão ao vivo da sessão de votação do impeachment na Câmara dos Deputados. Para ele, o espetáculo de horror promovido pelos deputados favoráveis ao golpe “fragiliza um país tão pujante como o Brasil, gerando impactos internacionais profundos”.

A jornalista destacou o papel fundamental dos meios de comunicação como principais articuladores do golpe, em consórcio com setores do judiciário. “Isso não é novidade, pois os meios de comunicação, historicamente, cumprem um papel político na sociedade, a serviço de uma elite política e econômica, mais ou menos explicitamente.”

Isso já acontecera no governo de Getúlio Vargas, com expedientes muito semelhantes aos atuais, menciona ela, acrescentando o posicionamento da imprensa ao causar pânico contra o Governo de João Goulart para derrotar suas reformas de base. “Os meios de comunicação foram os articuladores centrais do projeto de nação do governo militar. A Rede globo foi criada e sustentada a partir desse projeto, unificando a nação brasileira, tornando-se uma potência hegemônica na comunicação em promiscuidade com o governo militar para levar aos rincões do país uma narrativa de país”, afirmou Renata. Ela não deixou de mencionar o envolvimento da Globo com a derrota de Lula, algo já admitido pelo próprio executivo da empresa, o Boni, ao dizer que a edição do último debate favoreceu Collor.

Durante o Governo FHC, a mídia começou a criminalização dos movimentos sociais e o acobertamento dos mal feitos do governo, como os escândalos do Sivan, da Pasta Rosa, da compra de votos da reeleição, entre tantos outros. “A mídia sempre calou solenemente  sobre esses escândalos”.

Com a vitória de Lula, há uma mudança, detecta ela, mas logo começam a subir o tom com o surgimento do escândalo do mensalão. “Mujica disse, ontem, que os meios de comunicação nunca se enganam. Se algum dia estiverem do nosso lado é porque não estamos do lado certo”, citou ela. Podem até ficar silenciosos, disse ela, como gesto tático para reconstrução de seus objetivos.

O rádio, o jornal e a televisão agendam  os temas da sociedade, mas fazem isso invisibilizando outros temas, manipulando a informação a partir de interesses que têm em determinados momentos. “Eles tinham certeza que iam ganhar as eleições. Ao ver que pelos meios democráticos não conseguem governar, decidiram ir para o tudo ou nada e explicitaram a partidarização”, disse, citando a capa da revista Veja,  na véspera da eleição. Uma capa que seria crime para encerrar as atividades da Editora Abril, se fosse em um país com regulamentação da imprensa.

Adotaram explicitamente a tática venezuelana, diz Renata, que acompanhou de perto as eleições naquele país: Se ganhar não toma posse, se tomar posse não governa. “O discurso de Capriles mostrava a dificuldade que seria a governabilidade de Maduro”. Mas ela considera que, diferente da realidade venezuelana, no Brasil tem monopólio dos meios de comunicação. “O governo brasileiro não fez esse enfrentamento. Esta é uma grande dívida que a democracia tem com seu país. Vivemos sob um dos mais autoritários monopólios da América Latina”. A regulamentação dos meios de comunicação estão explicitamente escritas por relatórios da OEA, da ONU, por meio de relatorias para a liberdade de expressão com padrões de que é preciso existir pluralidade e diversidade nos meios de comunicação.

Citando Vianinha, ela lembrou que “os problemas dos meios, não é o que exibem, mas o que deixam de exibir”. “O povo brasileiro precisa ter garantido o direito de se expressar nos meios de comunicação com sua diversidade cultural, social, de organização. A liberdade de expressão não é um direito das empresas nem do indivíduo, mas da coletividade”, declarou.

Se não fosse a internet, talvez estivéssemos ainda pior, acredita ela, ressaltando que isso, no entanto, não é suficiente, principalmente, porque as redes sociais também são um ambiente de concentração e monopólio. “Os portais mais acessados são os mesmos da mídia corporativa. No Facebook estamos falando para nós mesmos sem nos darmos conta disso, pois a rede social cria bolhas que vivemos entre nós”.

Ela lamentou que o governo tenha tido a ilusão de que seria possível conduzir a governabilidade “sem mexer nesse vespeiro”. “Hoje, os 5% que se expressavam com posições de direita e extrema direita, agora são 25%. Isso significa um reacionarismo contra homossexuais, o aborto, o empoderamento das mulheres, o direito de greve, a maioridade penal. A mídia tomou esse temas para criar o ambiente de reacionarismo”.

Renata é precisa ao explicar que a imprensa brasileira faz uma narrativa de negação da politica, criminalizando-a, ao dizer que manifestações contra o golpe são de militantes partidários, e que manifestações em favor do impeachment são de famílias que foram espontaneamente para as ruas.

Na análise de Renata, se o golpe passar, a mídia vai se recompor e explorar algumas contradições do novo governo, mas o apoio à agenda antitrabalhista do Congresso vai ser colocada na conta dos Governos Dilma e Lula, por considerar que o novo governo está corrigindo a “lambança” dos governos anteriores. “A opinião publicada vai continuar sendo essa posição de direita”.

Democracia e política fiscal

O economista Luiz Gonzaga Beluzzo não pode comparecer, por motivos de saúde, mas não deixou de enviar um texto se posicionando sobre o tema. Para ele, “a ofensiva político-judicial-midiática deflagrada nos últimos dias não esconde seus propósitos, que é retornar o poder formal para ajustar ao poder real dos donos do poder.”

Beluzzo vê no capital financeiro e seus porta-vozes na grande mídia uma escala autoritária alvejando os avanços sociais, que levou a esse quadro de crise política. “Discutir a política fiscal é apontar os horizontes da democracia contemporânea”, diz ele. 

Ele citou os argumentos conservadores de Luciano Galino para justificar políticas de autoridade, como parte da cartilha neoliberal que é aplicada no mundo todo. “Eles atribuem às vítimas a responsabilidade pelo desastre financeiro”, diz ele, mencionando os “ataques vampirescos” que o capital financeiro faz aos gastos sociais e ao custo do trabalho.

Beluzzo lembra que o estado social foi construído a ferro e fogo a partir da luta dos “subalternos do século XX”, que impôs o reconhecimento dos direitos dos cidadãos. Desde o nascimento até a morte, a partir de uma dívida da  sociedade para com o cidadão, que retribui por meio de impostos, respeito à lei e cooperação com o trabalho social.

Segundo ele, as particularidades da formação do capitalismo brasileiro lançaram o país na cena da desigualdade ao longo do seu desenvolvimento. “Os novos golpistas acenam com a retomada da agenda perdida”, diz ele citando um amontoado de banalidades, como as privatizações, a redução de direitos sociais e trabalhistas, entre outros.

“Os avanços do estado social e do direito do cidadão não são acervo de um político ou partido, mas conquistas da população brasileira ao longo de muitas lutas”, conclui ele.

A crise da democracia liberal

O professor Armando Boito Jr identifica uma crise do Governo Dilma, por ter feito uma política econômica de intervenção do estado que fere os interesses do capital financeiro, por investir recursos em serviços públicos universais para os mais pobres, reajuste de salário mínimo, entre outras medidas. Os mesmos setores contestam o governo por insatisfação pela política externa do estado brasileiro, como a criação do G20, a participação ativa no Brics, que busca uma moeda alternativa de referência, além e criar um Banco de Desenvolvimento. Este é um conjunto de políticas que pode desaparecer e ser substituídas por outras. 

Boito também identifica uma crise da democracia, para além de um governo específico. Ele ressalta que, mesmo os pensadores liberais apontam a importância do respeito às regras do jogo, como a regra de maioria auferida na eleição.  “Se essa regra não é obedecida, a democracia está em crise”. Embora jornalistas e políticos intelectuais como FHC afirmem que não há golpe, pois as instituições democráticas, como Senado, Câmara e Judiciário, estariam funcionando… “Se a eleição não é respeitada, a democracia está em crise. Os derrotados não esperam a próxima eleição”, resumiu. 

Boito pontuou desde antes da posse de Dilma, quando Aécio pediu recontagem de votos, “pois a votação não batia com as redes sociais”. “A primeira proposta de impeachment, feita por juristas renomados, veio com o erro crasso de que os fatos foram cometidos em mandato anterior”. Mas, independentemente de qualquer bobagem, “todo argumento era pretexto para comer o cordeiro”. “Todo o resto é pretexto para tirar Dilma do poder, que foi eleita por votos que eles não possuem”.

Boito decretou que a defesa do mandato Dilma, portanto, é a defesa da democracia. Em sua opinião, a crise demanda olhos em cada detalhe da sua profundidade. “Se estamos vivendo dois anos de crise política manifesta nos bares, nas ruas, no Judiciário, nos restaurantes, envolvendo todas as instituições, com um conflito aguçado, isto é indício de que algo muito importante está em jogo”.

A partir dessa observação, Boito considera fundamental indagar quem provocou a crise e porque? Ele salientou que, embora pareça abstrato e doutrinário, grosso modo, responder que trata-se de um campo político conservador, formado pelo grande capital internacional, esta é uma conclusão fruto de pesquisa empírica feita buscando fontes e informações.

A franja do capital nacional ligada a esse campo internacional, de acordo com ele, foram os agentes políticos que começaram essa ofensiva contra o governo do PT. Os objetivos explícitos são as privatizações e venda de empresas, a substituição do regime de partilha na Petrobrás, a abertura da Petrobras para produção de fora do Brasil, a redução de custos do trabalho, entre outras. 

Para Boito, essa agenda encontra apoio na fração abastada da classe média. Conforme defende ele, o problema dessa fração não é a política desenvolvimentista, mas os programas sociais desse projeto, com inserção de pobres em ambientes antes reservados a esta classe. Não é, de fato, a luta contra a corrupção, por ser seletiva, mas por eleger alguns alvos e poupar outros. “Sem isso, esta burguesia interna estaria isolada, como estiveram isolados, disfarçando-se e dissimulando seu programa e seus objetivos em eleições anteriores”.

A divisão entre os campos sociais não é reta, explica ele. A crise mostra que a linha demarcatória se deslocou a favor do campo conservador, atraindo, inclusive setores dos movimentos sociais. A grande burguesia interna favorecida pelo governo do PT, ao longo de 2015, começou a abandonar a frente neodesenvolvimentista, “a desertar desta frente heterogênea e contraditória”. Assim, houve um brusco desequilíbrio na correlação de forças e o Governo Dilma começou a se isolar. Outro fator de isolamento teria sido o fato de Dilma ter abandonado o programa que defendeu na eleição e adotado um ajuste fiscal muito forte que aprofundou a recessão.

Outro fator é a “intervenção do imperialismo”, completa o professor. Toda a “proteção” que o governo brasileiro vinha dando à Venezuela, à Bolívia e ao Paraguai, e mesmo Cuba, provocava muito incômodo aos EUA e Europa. “Lembrem-se que FHC apresentou um projeto de lei para entregar o controle da base de Alcântara aos EUA,  sem direito a fiscalização. Foi o Governo Lula que retirou o projeto”, cita ele, mencionando que este afastamento dos EUA incomodou muito.

O professor citou estudos acadêmicos que apontam indícios muito fortes da espionagem da Petrobras e da presidenta Dilma, acordos de José Serra com a petroleira Chevron para entregar o pre-sal às petroleiras estrangeiras, muitos revelados pelos vazamentos de documentos pelo Wikileaks, entre outros elementos que confirmam a relação heterodoxa entre o Brasil e o centro do capitalismo.

Ele citou os “clássicos” ao avaliar que, no frigir dos ovos cabe à classe operária a defesa da democracia que não é a democracia “deles”, afinal, a democracia que traz a marca do capitalismo em suas instituições, não é a democracia dos trabalhadores. “A postura da burguesia com a democracia é sempre de desconfiança”, sentenciou, lembrando que a ofensiva reacionária de direita já começou, citando a crítica do Governo Alckmin às pesquisas financiadas pela Fapesp e o projeto de “escola sem partido” em discussão no Congresso.

A ofensiva virá. Segundo Boito, a “Bancada da Bíblia” vai cobrar a fatura por ter assumido o trabalho sujo liderado por Eduardo Cunha. “Os sindicatos vão sofrer com devassas por corrupção, assim como os movimentos sociais, com anuência do judiciário e do Ministério da Justiça”, previu ele.

“A deserção da burguesia interna, a neutralização dos movimentos populares e a intervenção imperialista tornou muito difícil resistir à crise”, diz Boito, ressaltando, no entanto, que o processo não é irreversível. “O mais provável é que o governo deve ser deposto, mas enquanto tudo não estiver perdido, nada estará perdido. Então tem luta a ser feita. Se formos derrotados, que sejamos derrotados lutando, mas eu acho que ainda é possível vencer.”