Dizem que a “utopia” de Brasília se desvaneceu no tempo: a cidade passou a ter a cara do resto do país. Meia verdade: apesar do óbvio parentesco com outras urbes brasileiras, Brasília apresenta fortes peculiaridades – para o bem e para o mal – mormente quanto à segregação socioespacial. (Brasília é o município, cujas fronteiras coincidem com as do Distrito Federal; Plano Piloto é o projeto de Lucio Costa – o “avião”, com suas “asas”, e o entorno imediato.)

O espraiamento coloca Brasília como a mais dispersa capital brasileira e a segunda mais dispersa do mundo (perde para Mumbai, Índia), segundo, p.ex., estudos comparativos internacionais levados a efeito por Bertaud & Malpezzi (1999) e complementados pela Rede Observatório das Metrópoles. Os custos socioeconômicos da dispersão são óbvios. Cabe frisar, particularmente, as altas tarifas dos transportes coletivos e sua baixa eficiência (a pior entre as capitais brasileiras), assim como as imensas distâncias percorridas entre casa e trabalho.

Brasília tem uma distância média per capita ao centro próxima à de Los Angeles (EUA), com um sexto da população desta; ou quase três vezes à de Curitiba, com população similar à sua. A oferta de um sistema de generosas vias expressas não resolve o problema: as grandes distâncias e a forte polaridade exercida pelo centro fazem com que o tempo de deslocamento médio entre casa e trabalho seja similar, p.ex., ao de Fortaleza, de população similar, mas de uma malha muito mais compacta. Na forma de um polvo, o sistema viário prioriza a ligação entre centro e núcleos distantes, e praticamente ignora a relação entre estes últimos; encontra-se altamente congestionado nas horas de pico e espantosamente ocioso entre elas.

Claro, o espraiamento não atinge a todos por igual. Famílias de poder aquisitivo na base da pirâmide social localizam-se, em média, a 26,6km do centro do Plano Piloto; as do topo da pirâmide social localizam-se, em média, a 5,1km do mesmo ponto. A apartação social não podia ser mais evidente ¹.

A apartação em Brasília não surge no tempo, nasce com ela, e de forma extrema. A proposta de Lucio Costa continha inicialmente apenas dois tipos edilícios residenciais: 1) apartamentos em blocos de seis pavimentos sobre pilotis e 2) “casas individuais”, em terrenos generosos, explicitamente para os mais ricos, próximas à orla do lago. Quanto aos apartamentos, o arquiteto escreveu que a “gradação social” se daria por meio de localização das quadras, tamanho dos apartamentos e nível de acabamento, sem “afetar o conforto social a que todos têm direito” (Costa, 1995: 293; citações a seguir são da mesma obra).

No projeto, Lucio Costa admitiu que tudo é “claramente limitado pelo padrão comum da receita única” (meu grifo, idem, p. 327). Nisso, ele estabelece um parentesco com as “cidades mineiras antigas”, onde a “receita básica de moradia era uma só: casas geminadas, mesmo tipo de telhado, de janelas, de portas – as variações decorriam da topografia, de sutilezas de proporções, dos detalhes, do acabamento, da cor nas esquadrias”.

Contudo, para além de outros atributos que distinguiam os espaços de morar dos senhores de minas e dos escravos, há diferença clara entre as cidades mineiras de seus afetos e as cidades brasileiras de hoje ou dos anos 1950: nestas, a variedade edilícia doméstica é muito maior, nos tipos de edifícios e no processo de produção dos domicílios. Quanto aos tipos: apartamentos de luxo e nem tanto, em edificações exclusivamente residenciais ou mistas, e, nestas, com comércio e serviços no térreo ou compartindo pavimentos superiores com os domicílios; loteamentos unifamiliares de vários padrões; condomínios fechados de casas, de apartamentos, ou de ambos, monofuncionais ou não; mansões isoladas em grandes terrenos etc. Quanto ao processo de produção: dentro da normativa ou fora dela, do mercado imobiliário, dos programas de habitação financiados pelo Estado, da autoconstrução etc.

A distância entre isso e a “receita única” é enorme. Os modernos acreditavam ter descoberto a fórmula ideal, baseada em necessidades universais de um ser humano genérico – inexistente. Quando milhares de trabalhadores não tiveram acesso à “receita”, Lucio Costa voltou a defendê-la: as críticas deveriam ser destinadas “ao próprio país e não ao urbanista” (idem, p. 319).

Todavia, a “cidade real” se impôs. Mas foi forçada a fazê-lo fora e longe da “receita”. Trabalhadores migrantes localizaram-se em inúmeras “invasões”, jargão local para assentamentos informais, alguns muito próximos ao Plano Piloto. O governo reagiu e, em ondas sucessivas, providenciou sua transferência para mais além, dando origem aos núcleos satélites. Seguiu recomendação expressa de Lucio Costa: “sempre insisti junto aos responsáveis pelo desenvolvimento de Brasília no sentido de evitar-se por todos os meios o deprimente espraiamento ‘suburbano’ do chamado Plano Piloto” (idem, p. 332); era preciso delimitar “definitivamente o cinturão urbano edificado no encontro com as áreas externas contíguas destinadas não a loteamentos mas tão só à cultura hortogranjeira devidamente planejada” (idem). Não era suficiente manter a “receita” intocada internamente: era preciso isolá-la daqueles que nela não cabiam, mediante um anel de características rurais ao redor do Plano Piloto.

Os primeiros núcleos periféricos são anteriores ao concurso público de projetos para a Capital, lançado em 1956 e julgado em 1957. Dois núcleos preexistentes foram incorporados ao território do novo município de Brasília: Planaltina, dos anos 1850, e Brazlândia, dos anos 1930. Mas já em 1956 as obras iniciais atraíram os primeiros migrantes: o começo da construção do Palácio da Alvorada e da barragem para formar o lado Paranoá antecederam o concurso. Taguatinga, de 1958, visou desocupar sítios de assentamentos informais autoproduzidos pelos trabalhadores. Seguiram-se outros núcleos (são bairros, não “cidades”, como reza o discurso oficial), sempre na periferia longínqua, para transferir assentamentos informais ou para remanejar moradores de “fundos de lote” nos núcleos anteriormente implantados e excessivamente adensados.

O espraiamento da cidade, comandado pelo Estado, não do mercado, resultou num de seus atributos mais problemáticos: a urbe dicotomizada entre a cidade-mãe (o Plano) – bem equipada em infraestrutura urbana, empregos, educação, saúde, lazer, cultura etc. – e uma imensa periferia, até hoje precariamente servida. Em 2011, o Plano Piloto abriga 47,72% dos empregos totais da cidade, mas só 8,21% de sua população; 419.880 trabalhadores são “exportados” diariamente para trabalhar no Plano pelas dez regiões administrativas de Brasília que mais o fazem (CODEPLAN, 2012; Miragaya, 2013). Some-se a isso as viagens para os demais fins e temos uma estimativa de um movimento pendular médio diário de quase 1.000.000 de pessoas entre a periferia e o núcleo central, para todos os fins e em todos os modos de locomoção. Em outras palavras, a Região Administrativa de Brasília quase sextuplica sua população nos dias de semana² .

Dois mitos – entre tantos – desmoronam em Brasília: 1) o do Estado “acima” das classes sociais, como se ele não servisse aos interesses hegemônicos e, 2) seu correlato: a falácia de que um estoque de terras públicas seria um instrumento para a promoção de políticas urbanísticas visando ao benefício das maiorias. As terras públicas, fruto das desapropriações quando da fundação da Capital, são administradas pela Terracap, empresa estatal do Governo do Distrito Federal, que age, entretanto, como qualquer especulador fundiário. Esse é o Estado que temos, não o Estado que queremos.

Decerto, o espraiamento em outras cidades brasileiras também contou, direta ou indiretamente, com a mão do Estado. Mas o parcelamento de áreas longínquas pelo mercado, sua ocupação, e a seguinte pressão para que o poder público implante ou melhore a infraestrutura de acesso, com a consequente valorização (e a apropriação privada dela), é fenômeno recente em Brasília.   

Também em Brasília forças não hegemônicas entram em cena contra esse segregador quadro socioespacial. Comparece o “homem ordinário” de Michel de Certeau (2000), a tentar reinventar a cidade. Surgem “fissuras” na ordem dominante, na escala do todo urbano – a municipalidade – e na de suas partes, p.ex., no Plano Piloto (Castelo, 2008).

Na escala do todo, às forças centrífugas que desde sempre presidiram a organização “explodida” do território, passam a se contrapor forças centrípetas, originando ocupações urbanas mais próximas ao core metropolitano – o Plano Piloto. Irregularmente, lotes de antigas chácaras, que visavam impedir o “espraiamento suburbano” indesejado, são desmembrados em lotes urbanos; o próprio Lucio Costa (em 1987) assina estudos recomendando a ocupação de áreas contíguas ao Plano, levando aos “subúrbios” que antes condenava.

Por outro lado, nas fronteiras municipais ou além delas, somos frequentemente surpreendidos com novos condomínios (p.ex. Alphaville) ou “cidades” propostas a dezenas de quilômetros de distância, desconectadas dos principais eixos de crescimento urbano, e que retomam as velhas tendências centrífugas. Agora o Estado não mais comanda a organização territorial, como o fazia na origem. Ele vem a reboque: seja nos processos de regularização dos desmembramentos realizados por milhares de sujeitos sociais, à sua revelia, em lotes antes rurais e hoje urbanos de fato; seja normatizando o desejo (ou a ação) de grandes especuladores fundiários e imobiliários, ou de puros e simples grileiros de terras. O governo local corre contra o tempo para impedir que Brasília chegue ao padrão de irregularidade ou informalidade ou ilegalidade de 70% a 80% do estoque habitacional construído das cidades brasileiras… 

Na escala intraurbana, as fissuras se multiplicam, configurando batalhas diuturnas pelo direito à cidade por parte de grande número de atores desprivilegiados. Foco particularmente o Plano Piloto, onde os conflitos se dão com maior força; e, neste, menos as transformações físicas e mais as lutas por apropriação dos espaços públicos e por transformações de uso presentes na normativa. Os tempos de renovação do casco físico da cidade, implicando a mudança da paisagem arquitetônica e social (de mais pobres para mais ricos), tão presente em outras cidades brasileiras – Salvador, Rio de Janeiro etc. – ainda não chegou por aqui. Vejamos exemplos.

O combate à apropriação popular dos espaços públicos é quase uma obsessão para os dirigentes locais – e para a imprensa, que lhes dá respaldo entusiasmado. Centros das cidades brasileiras (e de tantas partes do mundo) são apropriados por comerciantes informais. Em muitos casos, há negociações entre as partes envolvidas – comerciantes formais, governo, ambulantes – para que se chegue a uma solução de consenso. Não em Brasília. Até 2009, havia grande número de camelôs na área central. Foram removidos para uma área a 6km do centro, à margem de uma rodovia e… em meio ao nada.

Evidentemente não podia funcionar – e não funcionou. Mas a manchete no dia seguinte à remoção, num dos jornais de maior circulação da cidade, foi: “a ordem, a organização e a beleza venceram”. Para quem?

Edifícios têm seu uso transformado no tempo, mormente quando o uso prescrito é contraditório com a localização. Foi assim com uma avenida de alta centralidade (Av. W-3 Sul) no Plano Piloto. Num dos lados, a normativa previa apenas residências unifamiliares. Ficou como tal durante décadas. Mas eis que as antigas casas começaram a abrigar serviços populares: pousadas, sedes de sindicatos, cartomantes, cursinhos etc. A reação não se fez esperar. Como sói acontecer em outras cidades brasileiras, os serviços foram criminalizados (p. ex., mascarariam prostituição e comércio de drogas). A discussão teve seu ápice nas audiências públicas que informariam o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília. De um lado, colocaram-se as classes médias-altas da vizinhança; do outro, a associação que reunia representantes dos serviços populares. O resultado foi uma lamentável derrota para os últimos, declarados “ilegais”. Mas continuam lá, e, a não ser por eventual forte repressão, continuarão – legitimamente – por muito tempo.

Acima estão duas batalhas perdidas. Fechemos com um toque otimista.

Algumas preciosas lições urbanísticas da história surgem de circunstâncias imprevistas. É o caso da Vila Planalto, em Brasília, a 1.500m da Praça dos Três Poderes. Tem origem em um acampamento de empreiteiras dos anos 1950, edificado para abrigar donos, gerentes, arquitetos, engenheiros, técnicos, operários (desde sempre, também teve funcionários do alto escalão local e federal entre os moradores). É lugar de grande variedade de lotes, casas, quarteirões e espaços públicos. Apesar da privilegiada localização, apresenta um perfil de faixas de renda parecido com o de Brasília como um todo; no aspecto, é quase um microcosmo da cidade. Na Vila, em 2010, havia menos ricos (Vila = 2,5%, Brasília = 5,1%), mais estratos médios (Vila = 49,6%, Brasília = 45,0%), ligeiramente menos pobres (Vila = 47,9%, Brasília = 49,9%).

As melhores casas permitem adaptações que correspondem aos altos poderes aquisitivos. Contudo, são minoria. A maior parte da arquitetura não agrada aos privilegiados. Mais de quatro décadas depois de inaugurada a cidade, forças de mercado foram incapazes de expulsar moradores mais pobres, pelo contrário: trabalhadores continuam a adquirir residências (ou a alugar parte delas) e a se mudar para o local e, pelo censo de 2010, a Vila é mais popular, não menos, do que era pelo censo de 2000.

A Vila é o contraponto utópico ao mito de igualdade expresso por Lucio Costa para as superquadras. Sua grande diversidade espacial implica grande diversidade social. O lugar é uma fascinante fissura urbana, na contramão dos bairros homogêneos, pobres ou ricos, o padrão em Brasília e em outras cidades brasileiras – os primeiros em periferias longínquas (ou enclaves centrais em condições precárias – morros, mangues etc.), os segundos em posições privilegiadas.

Brasília, e as cidades brasileiras, têm potencial, mesmo em áreas centrais, para absorver novas “vilas planalto”. Mas isso depende de uma luta contínua pelo direito à cidade. Que dá frutos – a história o demonstra.

 

Frederico de Holanda é Professor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília

 

Bibliografia

BERTAUD, Alain. The costs of utopia. 2001. Disponível em: http://alain-bertaud.com/. Acesso em: 1 jul. 2007.

BERTAUD, Alain; MALPEZZI, Stephen. The spatial distribution of population in 35 world cities: the role of markets, planning, and topography. 1999. Disponível em: http://alain-bertaud.com/. Acesso em: 1 jul. 2007.

CASTELO, Luís Filipe Montenegro. Fissuras urbanas. 2008, 134p. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília, Brasília, 2008.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. As artes de fazer. 5. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.

CODEPLAN. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios – Distrito Federal – PDAD/DF 2011. 2012. Disponível em:http://www.codeplan.df.gov.br/images/CODEPLAN/PDF/Pesquisas Socioeconômicas/PDAD/2012/PDAD-DF-2011-091112.pdf. Acesso 1 set. 2013.

COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995.

MIRAGAYA, Júlio. Perfil da distribuição dos postos de trabalho no distrito federal: concentração no plano piloto e déficits nas cidades-dormitório. Brasília: CODEPLAN, 2013.

OCARANZA PACHECO, Matías Enrique. 2015. Os limites da gentrificação na Vila Planalto. 2015. 218p. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília, Brasília, 2015.

SERRA, M. V.; DOWALL, David E.; MOTTA, Diana; DONOVAN, Michael. Urban Land Markets and Urban Land Development: An Examination of Three Brazilian Cities: Brasília, Curitiba and Recife. 2004. Berkeley, Institute of Urban and Regional Development. Disponível em: http://www.escholarship.org/uc/item/88548197. Acesso em: 13 fev. 2013.

ZECHIN, Patrick Di Almeida Vieira. Sobre a dimensão espacial da desigualdade social urbana. Um estudo sobre cinco cidades brasileiras. 2014. 378p. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília, Brasília, 2014.

Notas de rodapé

[1] Gratidão a Patrick Zechin pelos dados obtidos a partir de sua tese de doutorado, Sobre a dimensão espacial da desigualdade social urbana. Um estudo sobre cinco cidades brasileiras. O cálculo utilizou as distâncias dos centroides dos setores censitários (censo de 2010) para o centro do Plano Piloto, em torno ao qual está a grande maioria dos empregos da metrópole (mais sobre isso, abaixo).

[2] Extrapolação nossa a partir de pesquisa de origem e destino da CODEPLAN, de 2000, e de Pesquisa Distrital de Amostragem por Domicílio, também da CODEPLAN, de 2011. A Região Administrativa de Brasília compreende o Plano Piloto propriamente dito – as “asas” do “avião” – mais algumas áreas vizinhas: Vila Planalto, Vila Telebrasília, Setor Militar Urbano, Bairro Noroeste e, no momento das pesquisas referidas, o Bairro Sudoeste e as Áreas Octogonais (hoje novas regiões administrativas). Nova pesquisa de origem e destino está sendo realizada. Decerto, há um contrafluxo Plano Piloto – núcleos satélites, mas, até o momento, ele é muito pequeno. Gratidão a Andréa Moura pelos dados.

Foto: Elza Fiuza/Agência Brasil –
Imagem: Exposição Hiperfoto Brasília – artista: Jean François

 

26 de Abril de 2016