A “Lava Jato”, a mídia e o futuro do golpe
Não há dúvida de que o único objetivo da “Operação Lava Jato” é inviabilizar a continuidade do ciclo progressista iniciado com a eleição de Luis Inácio Lula da Silva para a Presidência da República em 2002. O diz-que-diz que se estabeleceu sobre o futuro das operações do grupo pilotado por Sérgio Moro após a aceitação do impeachment fraudulento no Senado Federal contra a presidenta Dilma Rousseff é apenas mais um capítulo dessa novela — gravações de peemedebistas com tramoias para impor limites às investigações mostram bem a sua essência. A mídia, na sua missão de baluarte do golpismo, ao mesmo tempo em que pressiona por uma limpa no governo interino, trata com dedos figurões que podem ser esteios do pós-impeachment, caso ele se consume. É o rito da “Lava Jato”.
Mesmo Aécio Neves, enterrado até o pescoço no mar de lama em que se transformou o revolver de entulhos surgidos com doações privadas para campanhas eleitorais — que a mídia rotulou de propina, sem o menor pudor, com o intuito de criar uma falsa versão sobre a natureza da corrupção no Brasil —, vem sendo tratado com relativa condescendência. As manchetes berrantes e o ritual repetitivo de invectivas à exaustão são reservados, nesse momento, a Lula, mais uma vez na alça de mira dos golpistas para inviabilizar qualquer ação que possa levá-lo à candidatura presidencial em 2018 como o principal favorito. A ordem unida é tirá-lo de circulação a qualquer preço, por qualquer meio.
Muito anzol e nenhum peixe
E aí vale tudo: das práticas farsescas tradicionais da “Lava Jato” à corrupção desbragada e descarada da mídia para colher declarações que possam manchar a reputação do ex-presidente. Foram até ao ponto de espremer Pedro Corrêa, ex-deputado do Partido Progressista (PP), condenado reincidente — como bem disseram em nota os advogados de Lula Roberto Teixeira e Cristiano Zanin Martins —, para arrancar toscas declarações sem qualquer valor probatório, ignorando que a Procuradoria Geral da República não acusou Lula da prática de nenhum crime na Ação Penal 470, a farsa do “mensalão”, já concluída.
Mas foi o que bastou para a mídia recrudescer sua artilharia golpista, mirando a reputação do ex-presidente. Como a campanha contra Lula tem se revelado uma pescaria com muito anzol e nenhum peixe, apesar da devassa que atingiu até seus familiares, a mídia se utiliza de artifícios sujos como esse para alimentar suas publicações fantasiosas e, como caracterizaram os advogados Roberto Teixeira e Cristiano Zanin Martins, provenientes de pessoas que, por cumprirem pena na prisão após condenadas pela Justiça, estão dispostas a qualquer negociação (leia-se corrupção) em busca da liberdade.
Conluio explícito e promíscuo
Em outra frente, o jornal O Estado de S. Paulo praticou um crime evidente ao divulgar com destaque no alto da capa de sua edição de 31 de maio um boxe com a falsa informação de que o filho de Lula, Luis Cláudio Lula da Silva, recebeu cerca de R$10 milhões ilegalmente de uma empresa de eventos esportivos. A versão falaciosa, vazada ilegalmente da Operação Zelotes da Polícia Federal, ao que tudo indica por meio de corrupção, ocorreu um dia após ser finalmente publicada a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, que permite aos advogados do filho do ex-presidente o acesso a procedimento relativo à investigação, reclamado, sem êxito, desde dezembro de 2015.
Esse conluio explícito e promíscuo da mídia com grupos da Polícia Federal, com a passividade no mínimo conivente de autoridades do Poder Judiciário, não vem de agora. Não faz tempo, mas é bom recordar, a mídia divulgou versões de ações contra Lula que tramitam em segredo de justiça sem a menor cerimônia. O caso mais escabroso é a conversa mantida entre Dilma e o ex-presidente gravada e divulgada de forma flagrantemente delituosa. Tudo sob as vistas grossas do Ministério Público Federal, que não moveu uma palha para fazer valer as leis e a Constituição. A embrulhada não surpreende quem analisa todos esses fatos tendo em conta o pano de fundo no qual está exposto, sem retoques, a natureza do processo golpista, a forma que a luta política adquiriu no país. E vem mais por aí.
Valores sem importância
Recentemente o jornal Folha de S. Paulo também voltou a agir ilegalmente ao divulgar parte das colaborações de Otávio Marques de Azevedo, ex-presidente da Andrade Gutierrez, com a investigação da “Operação Lava Jato”, passando por cima da lei que determina o sigilo das delações premiadas, conforme decisão do ministro do STF Teori Zavascki. “Em matéria de colaboração premiada, a lei estabelece que tudo tem que ser mantido em sigilo. Enquanto as partes não abrirem mão do sigilo, eu vou cumprir a lei”, disso o ministro. A intenção do jornal era claramente jogar mais jornalismo marrom no ventilador, afirmando que as campanhas de Dilma em 2010 e 2014 usaram “propina oriunda de obras superfaturadas da Petrobras e do sistema elétrico”.
Com essas constatações, vamos ao “mérito da questão” — como costumam dizer os advogados. O que está na base desse comportamento — e há tantos exemplos disso Brasil afora que o assunto merecia um livro — é a certeza dos barões da mídia e seus sócios de que eles têm o direito de quebrar unilateralmente regras coletivas dos sistemas de convivência civilizada, a convicção que nutrem de que as normas democráticas não valem nada quando seus interesses estão em jogo. O que vale é atingir os seus fins, não importando os meios utilizados, se utilizando da máxima de que o senso de comunidade e o pressuposto da igualdade entre os cidadãos ainda são valores sem importância e validade no Brasil.
Tarefa longa e penosa
Caberia à Justiça ter pulso firme nessas situações, se ela também não fosse vítima desse comportamento golpista. A eficácia jurídica deveria ser reflexo do padrão de ética que todos escolhem para si; uma missão que deveria ser delegada pela sociedade. Mas, no Brasil, a escandalosa ineficiência judiciária é resultado de uma deficiência democrática histórica, que permitiu ao país ter uma Justiça coxa, permissiva, com poucos recursos para enfrentar os pandemônios (associação de pessoas para praticar o mal ou promover desordens e balbúrdias, segundo o dicionário Houaiss) que a direita utiliza para impor seu poder. A consequência disso é a cristalização no território nacional da ideia de que o Brasil é um lugar em que a lei protege os interesses dos poderosos em detrimento dos valores e direitos coletivos.
O Brasil só começará a mudar essa realidade quando a democracia for considerada um valor político coletivo inegociável. A pessoa imbuída dessa ideia é um cidadão ou cidadã que sabe exigir direitos, votar e cobrar desempenhos. A tarefa é longa e penosa, mas necessária. Os passos que damos hoje é que definem o caminho para o futuro, como no provérbio. Pela via política, pavimentada com desprendimento e visão estratégica, o Brasil tem a chance de reestabelecer a democracia. Existe uma muralha pela frente: o poder de desinformação da mídia, que está mais ativo do que nunca, de olho no plenário do Senado Federal, onde estão os votos para derrotá-lo ou restaurar a ordem legal, pisoteada pelos que rejeitam a democracia como conceito de poder e soberania popular.