A saúde pública como política estratégica à construção da cidadania
No processo de redemocratização do país, no final dos anos 80, o movimento pela reforma sanitária propôs a constituição de um sistema único de saúde, de caráter universal e com participação social, cujo debate aconteceu de forma intensa e rica, durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, com grande participação popular. Nessa Conferência foram consolidadas as bases para os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde – SUS, expressos na Carta Magna, em 1988. Vale destacar que a Constituição define a “saúde como direito de todos e dever do Estado”. A Constituição incorpora ainda uma concepção de seguridade social como expressão dos direitos sociais inerentes à cidadania, integrando saúde, previdência e assistência social. Define ainda, que os princípios do SUS, universalidade, integralidade, equidade e participação social, devem também ser descentralizado, hierarquizado e regionalizado, fortalecendo assim a articulação federativa para a implementação do sistema no país. Ou seja, reconhece o papel do Estado, nas suas três esferas e na sua ação complementar e articulada. Eis o desafio!
Debater a saúde no âmbito de uma agenda de governo para cidades mais humanas, exige compreendermos os limites do Estado enquanto poder político e administrativo. Reconhecer a saúde como direito social, universal, equânime e integral dentro de uma sociedade capitalista, onde a saúde é vista como mercadoria, é reconhecer que desde o nascedouro, o SUS, se contrapõe ao modelo de Estado mínimo e coloca na roda o debate o Estado Social.
Um breve relato da linha do tempo, na luta pelo SUS, resgata na 3ª Conferência Nacional de Saúde, em 1963, o debate da municipalização da saúde, reconhecendo o território das vidas humanas, nas cidades, e compondo o elenco das chamadas Reformas de Base do Governo João Goulart:
“A 3ª Conferência revestiu-se de especial significado na medida em que propôs reforma profunda na estrutura sanitária do país e, pela primeira vez, fixou com clareza uma Política Nacional de Saúde capaz de atender às necessidades do nosso povo a custos suportáveis pela Nação. Sob esse aspecto, ela se constituiu num marco importante da história do pensamento dos sanitaristas brasileiros. No processo de elaboração desse pensamento, sobretudo a partir de 1940, foi tomando corpo a ideia de que a saúde é inseparável do processo nacional de desenvolvimento, apresentando-se os indicadores dos níveis de saúde estreitamente relacionados ao grau de desenvolvimento econômico, social, político e cultural da comunidade. A partir daí foi possível repensar criticamente a Organização Sanitária Brasileira com a consequente correção de dois vícios que lhe reduziam o alcance e a eficiência: a insuportável centralização que deixava desprotegido um grande contingente da população e a atitude de passividade com que eram aceitas muitas medidas estranhas à nossa realidade. Adotou, então, a 3ª Conferência Nacional de Saúde a tese da Municipalização com o objetivo de descentralizar a execução das ações básicas de saúde, de modo a criar uma estrutura sanitária verdadeiramente nacional e flexível o bastante para adequar-se à realidade econômica, política e social da comunidade, num país de tão grandes diferenças regionais. Wilson Fadul (Introdução ao relatório da 3ª Conferência Nacional de Saúde)”.
Este breve relato aponta o reconhecimento do Estado federativo e sua responsabilidade em reconhecer e conduzir o processo de uma Política Nacional de Saúde. Luta interrompida pelo golpe de 1964. E retomada de forma contundente na defesa da saúde como direito social e de todos, na 8ª Conferência Nacional de Saúde e na Constituição em 1988, em pleno processo de redemocratização do país.
Importante destacar que essa agenda da saúde, expressa pelo Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, traz também o debate de que tipo de Estado é necessário para implementar o Sistema Único de Saúde e garantir a saúde como direito universal e integral para todos. Como destacam Machado & Viana:
“A implementação do SUS revela esforços de fortalecer uma política de caráter nacional em um cenário federativo e democrático, expressos na configuração institucional do sistema e na regulação do processo de descentralização político-administrativa. ”
Ou seja, o papel da articulação das três esferas de governo sob o comando nacional é fundamental para garantir o SUS integral e universal. Mas vale aqui também ressaltar o papel imprescindível nessa construção da participação social e da gestão participativa. Os mecanismos de controle social do SUS, como as conferencias de saúde e os conselhos de saúde, as comissões bipartites (CIB – reúne secretários municipais e estadual de saúde) e tripartite (CIT – reúne União, estados e municípios) dos gestores, onde a pactuação acontece por consenso, são espaços consolidados e que são ameaçados quando a democracia é ameaçada. São espaços de democracia participativa, legitimados pelas Leis do SUS, como são conhecidas, a Lei 8080/1990 e Lei 8142/1990, que respectivamente versam sobre a organização da rede do SUS e sobre o controle social e financiamento no SUS. Essa é uma agenda estratégica da saúde na construção da cidadania.
Outra agenda importante da saúde na construção da cidadania é da equidade! A saúde tem sido pioneira e porta de entrada para acolher as populações mais vulneráveis e que vivem em maior iniquidade, reconhecendo as desigualdades sociais como determinantes sociais que geram processo de adoecimento. Destacamos, as políticas de saúde que reconheceram a partir dos adoecimentos e seu enfrentamento, populações vulneráveis como as pessoas vivendo com HIV e Aids, pessoas com hanseníase, tuberculose, entre outros agravos à saúde. E as políticas de promoção de equidade, que reconhecem os sujeitos políticos que sofrem preconceito e discriminação pela sua condição social, de raça/etnia, de orientação sexual, culturas, como a população negra e quilombola, ribeirinhos, marisqueiras e pescadores, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, população em situação de rua, ciganos, etc.
Essas políticas de saúde promovem cidadania, ao reconhecer, por exemplo o nome social de pessoas transexuais e garantir por portaria e no Cartão SUS o direito ao uso do nome social. Esse documento foi usado para o reconhecimento do nome social no ENEM, por exemplo. Ao reconhecer a população em situação de rua, como pessoas de direitos e de cidadania, e implantar os consultórios na rua levando saúde a essas pessoas, ao implantar unidades básicas de saúde fluviais e ribeirinhas, chegando a lugares distantes como Melgaço no estado do Pará, ou aldeias indígenas na Amazônia brasileira, ou nos quilombos no norte e nordeste. Implantando o Programa Mais Médicos, Mais Saúde reconhecendo as diferenças regionais e universalizando o acesso à saúde para todos, nos mais remotos rincões desse país.
Sem dúvida nenhuma a saúde é uma estratégia importante de construção cidadã e os comunistas devem compreender a dimensão da mesma nessa concepção de direito social, e de que saúde é promoção da vida, da cidadania, extrapola para além do cuidado e do tratamento, inscreve-se no lugar da democracia participativa, da cidadania e da vida! O que seria mesmo essa cidade mais humana? Com certeza sem saúde não teremos uma cidade mais humana! Eis o desafio das cidades humanas, serem cidades saudáveis!
Kátia Souto é mestre em Sociologia e Pesquisadora em Políticas Públicas
Machado, V. Cristiani & Viana, Ana Luiza d’Ávila, Descentralização e Coordenação Federativa na Saúde, in Saúde, Desenvolvimento e Território, Editora Hucitec, São Paulo, 2009.