A esquerda, a China e o imperialismo
Era uma vez … – poderia começar assim uma pesquisa sobre os posicionamentos da esquerda relativos à China. Mas, longe de se tratar de uma fábula, é um acontecimento que se desenvolve sob nossos olhos e que se presta a considerações melancólicas. Sim, era uma vez uma esquerda digna desse nome, que conhecia a história e resistia a encerrar-se numa ótica provinciana. Essa esquerda era consciente da tragédia que tinha acometido o país habitado por um quinto ou um quarto da população mundial e que, talvez mais claramente que qualquer outra, punha a nu a ferocidade e a hipocrisia do Ocidente liberal.
A China crucificada
NESSE CASO, tornava-se uma evidente mentira a ideologia que acompanhou o expansionismo colonial, promovido oficialmente em nome da causa da difusão da “luz e da civilização”. A China – notava Goethe numa conversação com Eckermarm em 31 de janeiro de 1827 – por um lado, já conhecia uma florescente literatura “quando os nossos antepassados ainda viviam nos bosques”. Trata-se de um país que havia suscitado a admiração de Leibniz, Voltaire e outros autores iluministas por seu espírito laico: onde se viam as guerras religiosas que tinham ensangüentado a Europa? Por outro lado, o privilégio de nascença e os superpoderes da aristocracia baseados na consangüinidade desempenhavam na Europa um papel muito mais relevante do que no país do confucionismo, onde, ao contrário, os mais altos cargos da administração eram freqüentemente preenchidos mediante concurso público.
No que se refere à economia, mais do que qualquer discurso, é esclarecedor um intercâmbio epistolar que se desenvolve no final do século XVIII. A Inglaterra estava interessada em adquirir da China seda, porcelana, medicamentos, chá; e queria trocar essas mercadorias exportando roupas de lã. Em 1793 o imperador chinês responde ao rei George III: “Não nos falta nada ( … ) e, portanto, não temos necessidade alguma dos manufaturados de vosso país”. A Inglaterra foi, assim, obrigada a pagar em dinheiro, com uma contínua e crescente sangria de suas reservas. Até que aos comerciantes e governantes ingleses ocorre uma idéia genial: seria possível cobrir o déficit promovendo e impondo a exportação do ópio proveniente da Índia (Wolf, 1990, pp. 360-6). A resistência do povo e dos dirigentes chineses é arrasada, algumas décadas mais tarde, pela força das armas.
Começa a tragédia. O fluxo financeiro (e a sangria) invertem sua direção. Junto com o ópio, irrompem as tropas inglesas (e as tropas coloniais indianas no séquito de Sua Majestade britânica): “Mulheres chinesas são assediadas e estupradas. Os túmulos são profanados em nome da curiosidade científica”. (Spence, 1998, p. 53) Um povo de antiquíssima civilização passa a ser sistematicamente violentado, saqueado, humilhado. O seu corpo, o seu território, é desmembrado, um pedaço após o outro, pela matilha de cães colonialistas e imperialistas, que se tornam cada vez mais numerosos e famélicos: unem-se à Grã-Bretanha, em feroz concorrência recíproca, a França, a Rússia, Portugal, o Japão, os Estados Unidos, a Alemanha, a Itália. Ninguém quer faltar a esse banquete que se prenuncia faustoso. A China é progressivamente amputada de Hong Kong, de Macau, de amplíssimos territórios da Ásia Central, de Taiwan; também o Tibete é ameaçado de grave perigo. O desmembramento territorial caminha pari passu com o saque e a destruição do patrimônio artístico e com a imposição de pesadíssimas indenizações em favor dos agressores. A tudo é dada uma aparência de legalidade mediante “tratados desiguais” sancionados com a força das armas: é o triunfo da política de canhoneiras e da lei do mais forte.
Talvez as grandes potências superassem por algum tempo a sua rivalidade a fim de dar uma lição aos bárbaros chineses, que sofriam com crescente impaciência a agressão e o domínio imperialista. É o que se verifica em 1900, quando a Grã Bretanha, a França, os Estados Unidos, o Japão, a Rússia, a Alemanha e a Itália promovem uma selvagem expedição punitiva para sufocar a revolta dos Boxers. Ao falar diante das tropas que se aprestavam a partir para a China, Guilherme II não teve papas na língua: “Não haverá clemência e os prisioneiros não terão sorte. Cada qual que caia nas vossas mãos, cairá sob vossa espada! ( … ) Que pela vossa obra, possa a denominação de ‘alemão’ afirmar-se por milênios na China, tanto que nenhum chinês, com amêndoas nos olhos ou não, possa jamais ousar olhar o rosto de um alemão”.
Não é necessário estorvar-se com escrúpulos excessivos; é necessário abrir “o caminho à civilização de uma vez para sempre”. (Balfour, 1968, p. 297)
Como já se observou com razão, é um período histórico que vê “a China crucificada”: “Enquanto se aproximava o fim do século XIX, a China parecia se tornar a vítima de um destino contra o qual não podia lutar. É uma conjura universal do homem e dos elementos. A China dos anos 1850-1950, aquela das mais terríveis insurreições da história, o alvo dos canhões estrangeiros, o país das invasões e das guerras civis, é também o país dos grandes cataclismos naturais. Sem dúvida, o número das vítimas na história do mundo não foi mais elevado do que na China”.
A redução geral e drástica do nível de vida, a desagregação do aparato estatal e governativo, junto à sua incapacidade, à corrupção e à crescente subalternidade e sujeição ao estrangeiro, tudo isso torna ainda mais devastador o impacto dos aluviões e carências: para dar um exemplo, os mortos somavam “quase três milhões apenas na província de Senxi em 1928”. (Gernet, 1978, pp. 565 e 579)
Poucos anos depois, começa a invasão japonesa. O saque e o “estupro de Nanquim” em 1937 é singularmente o episódio mai,s sangrento da II Guerra Mundial; houve mais mortos do que em Dresden, Hiroshima ou Nagasaki. É o “holocausto esquecido”. Nas regiões onde a resistência é mais encarniçada, os invasores recorrem à política dos “três tudo”, isto é: “saquear tudo, matar tudo, queimar tudo”. Em seu diário, um coronel japonês anota: “Recebi de meu oficial superior a ordem segundo a qual toda pessoa deve ser morta”. (Chang, 1997, pp. 215-6) Em suma: “Para descrever as tragédias e devastações sofridas pela China nem toda uma biblioteca de contos de horror seria suficiente”. (Romein, 1969, p. 260)
Cultura liberal e celebração da “raça européia” superior
A cultura liberal da época dá sua brava contribuição à crucificação da China. John Stuart Mill não hesita em justificar ou celebrar a guerra do ópio como uma desinteressada cruzada pela liberdade, a “liberdade do comprador” (chinês) antes mesmo que “do produtor ou do vendedor” (inglês). Esta guerra infame é “um grande acontecimento” também para Tocqueville; é “a última etapa de uma multidão de acontecimentos da mesma
natureza que empurram gradualmente a raça européia para fora de suas fronteiras e submetem sucessivamente ao seu império ou à sua influência todas as outras raças ( … ) é a servidão de quatro partes do mundo em favor da quinta parte”.
O entusiasmo dos liberais franceses é incontível: “É bom, portanto, não ser muito maledicente em relação aos confrontos do nosso século e a nós próprios; os homens são pequenos, mas os acontecimentos são grandes”. (Losurdo, 1993, capo I, 6)
Assistimos, assim, à ruptura com a grande cultura iluminista, que tinha sido reenviada à China para pôr em discussão o eurocentrismo e ganhar um ponto de observação que permitisse olhar a Europa de fora e com certa consciência crítica. Essa tentativa genial e generosa torna-se então uma terrível ata de acusação a cargo dos iluministas, já que Tocqueville foi exposto à zombaria pública por ter visto como modelo “aquele governo imbecil e bárbaro, que um punhado de europeus dominava engenhosamente”. (O antigo regime e a revolução, III, 3)
Tudo parece ser consentido à “raça européia” superior, que nesses anos e décadas se enriquece ulteriormente em prejuízo da China explorando força de trabalho servil ou semi-servil. São os coolies:
“Alentados pela esperança de uma vida melhor, aqueles desventurados viviam amontoados em barracos antes da partida e depois no fundo dos navios em condições espantosas, a tal ponto que muitos morriam durante a viagem; os navios de carga que mantinham esse comércio lucrativo de escravos eram conhecidos com o nome de ‘infernos flutuantes’. Em 1886, o governo chinês tinha apresentado um projeto de convenção que foi repelido pelas potências ocidentais”. (Gernet, 1978, p. 582)
E assim, ao promover o desenvolvimento do Ocidente, tráfico dos amarelos toma o lugar do tráfico dos negros. Compreende-se agora que os chineses sejam repetidamente comparados aos negros, uns e outros assimilados como instrumentos de trabalho a serviço da raça branca dos senhores. É um motivo bem presente em autores tão diferentes entre si como Nietzsche e Renan. Este último, que se declara “liberal”, exprime-se com particular clareza: a “raça conquistadora”, a “nobre raça européia de patrões e soldados”, é chamada a empenhar nos trabalhos mais duros e na “prisão perpétua”, “a raça da terra”, constituída pelos negros, ou “a raça dos operários (a raça chinesa)”, dotada “por natureza”, “de uma maravilhosa destreza de mãos e quase toda privada do sentimento de honra”. E assim, para dar um exemplo, as companhias americanas procediam à construção da inacessível linha ferroviária destinada a consolidar a conquista do Far West mediante a importação de 10 mil caalies da China. A Guerra de Secessão é terminada: para dizer como Engels, aproxima-se de substituir a escravidão negra formalmente aboli da com “a escravidão camuflada dos caalies indianos e chineses”. (Losurdo, 1997, pp. 2733) E como os negros, também os chineses que, não obstante tudo, conseguem melhorar sua condição, tomam-se nos EUA o alvo do ódio racial e de horríveis pagrams.
“Só O socialismo pode salvar a nação chinesa”
Em 1949, o Partido Comunista chega ao poder, porque se apresenta às amplas massas como a única força política capaz de salvar a nação chinesa da tragédia que a enfurece desde há mais de um século. A partir da guerra do ópio, essa teve de sofrer a amputação de enormes territórios. No momento da revolução de 1911, alguns patriotas esperam ainda poder recuperá-los. E essas esperanças parecem encontrar novo alento seis anos depois, graças à tomada de posição, na Rússia soviética recém-nascida, de Karakharm, na função de comissário do exterior, o qual se declara pronto a repudiar os tratados impostos à China pela Rússia czarista. (Maxwell, 1973, pp. 304-5) Mas não é possível rechaçar um processo histórico de longa duração: disso se dão conta os bolcheviques e disso estão conscientes os dirigentes do Partido Comunista Chinês, que conquista o poder em 1949.
“Só o socialismo pode salvar a nação chinesa” – declara Mao Tsetung. Para estar à altura desse projeto e dessa promessa, se trata de pôr fim de uma vez para sempre ao desmembramento do território nacional. Os tratados impostos no passado com a agressão e a política de canhoneiras são reconhecidos como desiguais; e não pode mais ser tolerada a amputação de territórios que, com base nesses mesmos tratados, são parte integrante da China. É uma política caracterizada simultaneamente pela firmeza e a moderação. Um confronto pode ser significativo: em 1961, os dirigentes indianos se apressam a recuperar com a força das armas Goa, naquele momento ainda colônia portuguesa; os dirigentes chineses, no entanto, esperam pacientemente o vencimento do “contrato de arrendamento” para Hong Kong e Macau. Mas isso não basta para evitar o confronto com os Estados Unidos, lançados à conquista da hegemonia mundial. Depois de intervir pesadamente em favor de Chiang Kaichek, Washington impediu que a guerra civil chegasse à conclusão com a recuperação de Taiwan por parte do governo central. A nova superpotência planetária não quer fechar o capítulo da “China crucificada”, e faz de tudo para reabri-lo. Imediatamente após da conquista do poder pelos comunistas, a administração Truman se empenha em promover na ilha um movimento independentista. (Chen Jian, 1994, p. 116)
Se não pode manter o controle sobre o grande país asiático em sua totalidade, em todo caso não pode renunciar a Taiwan – necessita estar pronto para transformá-Ia em “uma nação autogovernada”. (Aptheker, 1977, p. 288) A tentativa pelo momento fracassou, mas nem por isso desaparece da mira dos Estados Unidos esse território considerado como um “trampolim” para um futuro ataque contra a China Continental. (Chen Jian, 1994, p. 96)
Foi somente a intervenção da frota americana, em 1950, que impediu o exército popular, dirigido pelos comunistas, de completar a libertação e a unificação do país, fechando assim para sempre um dos capítulos centrais da história da “China crucificada”. Alguns anos depois, estoura em duas oportunidades, em 1954 e em 1958, uma nova crise: a República Popular Chinesa visa a assegurar o controle da ilha ocupada de Taiwan e colocá-Ia imediatamente ao abrigo do território continental. Em ambas as oportunidades, os Estados Unidos ameaçam recorrer às armas nucleares.
Os Estados Unidos, o Dalai Lama e os assassinos indonésios . Além de Taiwan, o imperialismo busca promover a secessão também do Tibete. E também nesse caso setores da esquerda revelam sua suba1ternidade e falta de memória histórica. Outrora, ocupavam-se com leituras mais sofisticadas do que com a grande imprensa de informação e desinformação. Qualquer simpatizante e militante da causa do antiimperialismo sabia muito bem que a soberania chinesa sobre o Tibete tinha séculos de história e que quem tentou em primeiro lugar colocá-Ia em discussão foi o expansionismo colonial britânico. (Lattimore, 1970, p. 119; Gernet, 1978, p. 450) Sim, basta folhear um bom livro de história para tomar consciência de que essas tentativas eram e são parte integrante de uma política visando ao “desmantelamento da China”. (Romein, 1969, p. 54)
Não era só Mao Tsetung que considerava o Tibete parte integrante do território nacional chinês. Também pensava assim Sun Yatsen, o primeiro presidente da República nascida pela derrubada da dinastia manchu. Aos ingleses que o convidavam a participar ativamente da carnificina da I Guerra Mundial, de modo a recuperar os territórios subtraídos à China pela Alemanha, Sun Yatsen fazia notar que a Grã-Bretanha era ainda mais voraz: “Vocês querem tomar-nos também o Tibete!”. (Sun Yatsen, 1976, p. 71) Por muito tempo, o poder da China sobre essa região não foi colocado em dúvida nem sequer pelos historiadores mais distantes da esquerda. Quando tratava da revolta no Tibete de 1959 (largamente inspirada e alimentada, como veremos, pela CIA), o autor de uma história, asperamente crítica, do Partido Comunista Chinês inseria, todavia, esse acontecimento no capítulo dedicado à “evolução interna” do grande país asiático. (Guillermaz, 1970, voI. 11, pp. 266 e 278)
Ora, ao contrário, também a esquerda, e até Il Manifesto (jornal de esquerda independente, N.T.) e Uberazione (jornal do Partido da Refundação Comunista, N.T.) parecem estar empenhados em sustentar o separatismo. É ainda desse aspecto particular que se pode ver o triunfo ideológico, além do militar, conseguido pelos EUA na guerra fria. Antes de sua eclosão, Washington não tinha qualquer dificuldade em reconhecer que o Tibete pertencia à China, naquele momento controlada pelos nacionalistas de Chiang Kaichek. Ainda em 1949, ao publicar um livro sobre as relações EUAChina, o Departamento de Estado norte-americano anexava um mapa, que com toda a clareza indicava o Tibete como parte integrante do grande país asiático. (Aptheker, . 1977,p.272)
Mas os humores começaram a mudar à proporção que se afigurava o avanço do exército popular guiado por Mao Tsetung. Já em 13 de janeiro de 1947, George R. Merrel, encarregado de negócios dos EUA em Nova Delhi, escreve ao presidente norte-americano Truman para reclamar sua atenção para a “inestimável importância estratégica” da região – teto do mundo: “O Tibete pode ser considerado como um bastião contra a expansão do comunismo na Ásia ou ao menos como uma ilha de conservadorismo em um mar de perturbações políticas”. Além disso – acrescenta o diplomata estadunidense – não é necessário esquecer que “o altiplano tibetano ( … ) em época de guerra de mísseis pode revelar-se o território mais importante de toda a Ásia”. Deduzo esse aspecto particular de um autor norte-americano, por décadas funcionário da CIA, como ele próprio faz saber. Ele sublinha a continuidade entre a visão expressa na carta aqui citada a Truman e a visão ao mesmo tempo cara à Inglaterra vitoriana, empenhada no “grande jogo” da expansão colonial na Ásia. (Aptheker 1999, pp. 245) Com efeito, o imperialismo norte-americano sucede ao imperialismo britânico, depois da 11 Guerra Mundial: o separatismo tibetano é então chamado a servir “aos interesses geopolíticos dos EU A”, obrigando Mao a despender sua já limitada força, preparando assim as condições para uma “mudança de regime em Pequim”. (Knaus, 1999, pp. 215-6) Tendo em vista alcançar tais fins, “guerrilheiros” são adestrados no Colorado e depois lançados de pára-quedas no Tibete: são fornecidas por via aérea armas, aparelhos de retransmissão, etc. e colaboram – o autor e funcionário da CIA não esconde – também com “bandidos Khampa de velho estilo”. (Knaus, 1999, pp. 219 e 223)
Fica claro, então, o contexto em que se insere a revolta de 1959. Também nesse caso, o autor aqui citado torna-se apreciável, pelas informações de primeira mão e pela franqueza. Ele faz notar que a revolta se seguia imediatamente ao fracasso da tentativa dos serviços secretos norte-americanos de provocar desordens na China a partir das Filipinas. Sem se desencorajar, era necessário agora se concentrar sobre o Tibete. Naturalmente – esclarecia naquela ocasião um alto dirigente da CIA, citado sempre pelo autor-funcionário da mesma organização – o desencadeamento da revolta tinha “pouco a ver com a ajuda aos tibetanos”. Tratava-se, ao contrário, de colocar “os comunistas chineses” em dificuldade. Era a mesma lógica que presidia – esclarecia ulteriormente o alto dirigente da CIA – as decisões tomadas pelos serviços secretos norte-americanos naquele mesmo período de tempo de “ajudar o coronel rebelde indonésio no seu esforço de derrubar Sukarno”, culpado de “ter se tornado muito tolerante com os comunistas de seu país”. (Knaus, 1999, p. 119) Fracassado em sua primeira tentativa, o golpe de estado na Indonésia vence plenamente em 1965: são massacrados diversas centenas de milhares de comunistas ou de elementos considerados muito “tolerantes” com os comunistas. Teriam sido menos ferozes no Tibete as forças da reação e do imperialismo se vencessem em sua tentativa separatista?
Um aspecto particular chama à reflexão. É o que deduzo da intervenção de um docente norte-americano numa revista dos EUA: na organização, em 1959, da fuga do Dalai Lama do Tibete estava um agente da CIA que mais tarde viveu no Laos “em uma casa decorada com uma coroa de orelhas decepadas de comunistas mortos”. (Wikler, 1999) A ClA e Hollywood se convertem ao budismo!
A revolta tibetana de 1959 não consegue sucesso esperado. Abordado e financiado há longo tempo pelos serviços secretos estadunidenses, o Dalai Lama foge para a Índia. Fracassada a campanha no Leste (em território tibetano e chinês), eis que Washington dá início à campanha no Oeste. Tínhamos visto um alto dirigente da CIA considerar o Dalai Lama como uma pedra no tabuleiro da política estadunidense, do mesmo modo que eram os coronéis-assassinos indonésios. Ora, esse mesmo personagem é elevado à glória dos altares: torna-se um líder da não-violência, um modelo vivo de nobreza moral e de santidade. Essa transfiguração envolve também o budismo tibetano, apresentado como um conjunto de exercício espiritual e de doutrina e de técnica de sublime elevação acima das misérias deste mundo. A indústria cinematográfica norte-americana trabalha a pleno ritmo para difundir esse mito. No início do século XX, enquanto estava em pleno desenvolvimento a disputa entre a Grã-Bretanha e a Rússia para possuir o Tibete, corria a notícia de que o czar em pessoa tinha se tornado budista. (Morris, 1992, voI. I1I, p. 96) Ora, parece não haver dúvidas: agora, Hollywood e a CIA se convertem ao budismo!
Uma conversão assim extraordinária não podia deixar de produzir milagres. Durante séculos, a cultura ocidental encarou com desprezo o budismo tibetano, considerado sinônimo do despotismo oriental, por causa da centralidade conferida a um suposto Deus-Rei, sobre o qual se exercita o desprezo de autores tão diferentes entre si, como Rousseau, Herder, HegeI. Entre os séculos XVIII e XIX, os lamas são considerados “uma encarnação de todos os vícios e de todas as corrupções dos lamas defuntos”. (Lopez Jr., 1998, pp. 6-7 e 22-3) Quando, depois, a Grã-Bretanha se prepara para a conquista, tenta justificá-Ia em nome da necessidade de levar a civilização a “essa última fortaleza do obscurantismo”, a “esse pequeno povo miserável”. (Morris, 1992, voI. I1I, pp. 94 e 98)
Em decorrência, nem se discute sobre a arrogância e a veia racista do imperialismo, mas nem por isso é necessário remover a infâmia da teocracia tibetana. Para esclarecer sua real natureza basta uma dedução particular do historiador inglês citado: aquele que ocupava o cargo no início do século XX “foi um dos poucos Dalai Lama a atingir a maioridade, uma vez que a maioria deles era eliminada durante a infância de acordo com a conveniência do Conselho de Regência”. (Morris, 1992, voI. m, p. 96) Ora, graças ao milagre operado por Hollywood (e pela CIA), o budismo tibetano se tornou sinônimo de paz, tolerância, elevada espiritualidade. Agora está claro: como foi justamente observado, com base na ideologia e nos estereótipos dominantes, “os tibetanos são sobre-humanos e os chineses subumanos”. (Lopez Jr., 1998, p. 7) São decididamente divertidos alguns momentos do processo de santificação em curso do Dalai Lama e do budismo tibetano. Um elemento essencial deste último é a estrutura de castas, que continua a manifestar-se mesmo depois da morte: se o corpo dos membros da aristocracia é sepultado ou cremado, o corpo vil da massa do povo é oferecido como pasto aos abutres. Há algum tempo, o International Herald Tribune referia-se a um desses funerais plebeus, em que o sacerdote retirava pedaço a pedaço a carne dos ossos do morto para facilitar o trabalho dos abutres, que esperavam em cima do monte. É preciso dizer que a descrição era precisa e minuciosa, mas era seguida da declaração de um “estudioso” que explicava tudo com argumentos ecológicos. (Faison, 1999a) Ele só não esclarecia por que o corpo dos plebeus contribuía para equilíbrio ambientaI.
A Revolução Cultural se arremessou contra essa discricionária prática de castas, considerada bárbara; mas sua tentativa de erradicar drasticamente uma tradição de antiga data terminou por favorecer os setores mais retrógrados do budismo tibetano, que souberam mobilizar um amplo protesto em nome da defesa das tradições. Mais sabiamente, o atual governo tibetano, mesmo desaconselhando-os, não proíbe esses ritos fúnebres.
Tibete e a luta entre o progresso e a reação
Infelizmente, também uma boa parte da esquerda parece ter se convertido, se não ao budismo propriamente dito, ao menos à imagem fabricada do Dalai Lama e da religião por ele professada. De novo a memória histórica é dissipada. O resultado disso foi a retomada da horrível realidade do Tibete pré-revolucionário, aquela realidade da teocracia que reduzia à condição de escravidão ou de servidão a esmagadora maioria da população. Não há dúvida de que – damos a palavra mais uma vez a autores insuspeitos com simpatia por Mao Tsetung – as reformas realizadas a partir de 1951 “aboliram o feudalismo e a servidão”. (Goldstein, 1998, p. 86) Aboliram também a teocracia encarnada pelo Deus-Rei que o Dalai Lama pretende ou pretendia ser, promovendo a separação dos poderes religiosos dos poderes civis, o que constitui um dos pressupostos essenciais do Estado moderno.
A reforma e a revolução significaram para as massas populares tibetanas um acesso a direitos humanos antes desconhecidos, uma elevação bastante consistente do nível de vida e um prolongamento sensível da duração média da vida. De outro lado, as críticas dirigidas à República Popular da China têm se revelado freqüentemente não apenas instrumentais como também contraditórias. Se há um autor francês que lamenta o escasso desenvolvimento industrial da República Autônoma Tibetana, que estaria relegada a permanecer num “estádio proto-industrial”, (Deshayes, 1998, p. 293) eis que, escrevendo em Foreing Affairs – uma revista ligada ao Departamento de Estado dos EUA – um autor norte-americano formula críticas e recomendações de sentido oposto: a “política de rápida modernização” e o “desenvolvimento econômico” deveriam ocorrer “em ritmo mais lento”, de maneira a salvaguardar a identidade cultural tibetana. (Goldstein, 1998, pp. 89 e 95) Pena que os EUA não mostraram essa mesma preocupação ao invadirem com suas mercadorias, seus filmes, suas canções e seus “valores” todos os cantos do mundo, inclusive o Tibete!
Certo, há ainda uma questão de direitos nacionais. Em seu tempo, desencadeando uma luta indiscriminada contra toda forma de “obscurantismo” e atraso, a Revolução Cultural tratou o Tibete como se fora uma gigantesca Vendéia (insurreição contra-revolucionária provocada em 1793 entre os camponeses da Bretanha, Poitou e Anjou, N.T.) a reprimir ou catequizar, com uma pedagogia assaz brusca, colocada em prática pelo “iluminismo” intolerante e agressivo proveniente de Pequim e de outros centros urbanos habitados pelos Han. (Etnia majoritária na China – N.T.) Mas hoje esses erros de extremismo e universalismo agressivo foram corrigidos. A recuperação dos mosteiros e da herança cultural tibetana prossegue intensamente. Mesmo formulando críticas, a revista norte-americana citada reconhece que na Região Autônoma Tibetana de 60 a 70% dos funcionários são de etnia tibetana; reconhece que vige a prática do bilingüismo, e mesmo que a ênfase agora é dada à língua tibetana. (Goldstein, 1998, p. 94) Os mesmos jornalistas estadunidenses em sua maioria afetados por virulenta sinofobia, deixam escapar que pelo menos “a política oficial da China” é um tipo de “ação afirmativa em larga escala”. Essa política prevê uma série de discriminações positivas a favor dos tibetanos e das demais minorias nacionais, no que se refere à admissão à universidade, à promoção a cargos públicos e ao planejamento familiar (que para os Han é mais rigorosa). (Faison, 1999b)
Como explicar então a persistente campanha contra a República Popular da China? Se no plano internacional visava ao desmembramento ou ao menos ao grave debilitamento do grande país asiático, no plano interno a revolta de 1959 tencionava bloquear o processo de emancipação das massas populares e de modernização da região. Não por acaso, ainda hoje, entre os tibetanos no exílio se pode encontrar uma presença significativa de grupos “fundamenta1istas no plano espiritual e conservadores no social”, (Deshayes, 1998, p. 295) isto é, grupos inconformados com o fim da teocracia e o advento da separação do Estado e da Igreja e que choram de saudades do feudalismo e da servidão.
Mas seria assim tão substancialmente diferente a posição do Dalai Lama? Ele “exige a criação de um Grande Tibete, que incluiria não só o território que constituiu o Tibete político na idade contemporânea, como também áreas tibetanas na China ocidental, na sua maior parte perdidas pelo Tibete já no século XVIII”. (Goldstein, 1998, pp. 86-7) Isto explica as minorias étnicas tibetanas vivendo também no Butão, no Nepal, na Índia etc. Onde se firmaria a remodelação da geografia política e qual seu custo? Compreende-se bem então que também o Nepal hostilize diretamente o Dalai Lama, pois esse país alimenta “o temor de que o Dalai Lama provoque uma secessão no norte do país”. (Deshayes, 1998, p. 281) É mais do que suficiente para levar em conta como é falsa e mentirosa a imagem construída pela CIA e por Hollywood. Celebrado como um campeão da não-violência, o Dalai Lama recebeu em 1989 o Prêmio Nobel da Paz. Entretanto, quando a Índia procede ao rearmamento nuclear, o maior apoiado r dessa política é … o prêmio Nobel da Paz!
Mas será que ele ao menos representa o povo tibetano?
Até mesmo o Livro negro do comunismo reconhece que uma elementar análise histórica “destrói o mito unânime alimentado pelos partidários do Dalai Lama”. (Margolin, 1998, p. 509) Na realidade, sem a “liberação pacífica” do Tibete em 1951, a derrubada do antigo regime nessa região e sua transformação político-social se enfrentariam com uma encarniçada resistência dos grupos mais reacionários e das classes privilegiadas mas também poderiam contar com apoio consistente no âmbito da sociedade tibetana. Mesmo os autores mais empenhados na campanha anticomunista e antichinesa são obrigados a admiti-lo. Ei-los então bradando contra “o sétimo Panchen Lama”, culpado de estar “subitamente coligado com o regime comunista”. Ainda mais duro é o juízo que os campeões da cruzada anticomunista e antichinesa exprimem sobre os “monges”, que não hesitam em augurar que o Tibete seja logo liberado” e que dirigem apelos nesse sentido ao Partido Comunista e ao Exército Popular de Libertação.
Tais autores não conseguem compreender que o Dalai Lama por eles assim transfigurado se confronta não só com amplos setores populares mas também com os ambientes religiosos que o querem “abater”. Os campeões da cruzada antichinesa e anticomunista devem se apresentar. Ainda em 1992, durante sua viagem a Londres, o Dalai Lama foi objeto de manifestações hostis por parte da maior organização budista da Grã-Bretanha, que o acusa de ser “um ditador desapiedado” e um “opressor da liberdade religiosa”. (Lopez Jr., pp. 193-4)
Quanto à Revolução Cultural, indubitavelmente um período trágico na história da região, é necessário ter presente que havia “também tibetanos” entre a Guarda Vermelha: os confrontos rebentavam entre os grupos maoístas; “assim, no total, foram mortos mais chineses do que tibetanos”. (Margolin, 1998, p. 509) O Livro negro do comunismo, que em homenagem ao seu anticomunismo profissional não hesita em ecoar a acusação de … genocídio chinês em prejuízo do povo tibetano, é quem chama a atenção para esse fato.
A lógica do imperialismo e da ideologia dominante é clara. Mas como explicar a simpatia de que o Dalai Lama goza também em certos ambientes da esquerda e inclusive em círculos que em seu tempo saudaram a Revolução Cultural e que ainda se referem a ela com certa nostalgia? Não há dúvida de que hoje a situação no Tibete melhorou sensivelmente quanto ao desenvolvimento econômico, à liberdade religiosa e aos direitos culturais e nacionais dos habitantes daquela região. Mas não é isso que interessa a uma esquerda que no Terceiro Mundo, longe de louvar o esforço para sair do atraso e da miséria, projeta a nostalgia e a idolatria de uma sociedade pré-moderna, cujos cidadãos são “pobres mas belos”: uma sociedade que, como certos mosteiros agora inseridos nos itinerários turísticos, deveria servir permanentemente como local de férias e de periódica regeneração espiritual da dureza de uma opulência à qual não se renuncia, pelo contrário, é firmemente mantida. Nos anos 60, os chineses eram considerados, com respeito ao Ocidente, “os pobres mas belos”, mas hoje, depois do impetuoso desenvolvimento verificado no grande país asiático, “os pobres mas belos”, aos olhos daquela assim chamada esquerda, são os tibetanos seguidores do Dalai Lama. Que importa se este último é na realidade rico e bruto? Sim, é rico enquanto expoente de uma casta explorado-ra e superalimentada de dólares desde os anos 50; bruto, pelo fato de ter querido continuar a condenar a uma horrível condição de degradação os servos da aristocracia e da teocracia tibetana. Tudo isso não conta: para uma certa esquerda, os filmes de Hollywood são sempre mais importantes do que os livros de história e de análise crítica da realidade.
Um enfoque sobre os “dissidentes”
Juntamente com os separatistas de Taiwan e do Tibete, os Estados Unidos afagam de modo particular os chamados “dissidentes”. Sobre eles damos agora a palavra a um general italiano, muito malévolo e hostil em relação à República Popular da China. Esses dissidentes são quatro (numericamente) e “não tiveram mais seguidores”. (Mini, 1999, p. 91) Contudo, para uma certa “esquerda” sua opinião e exibição são bem mais importantes do que o esforço gigantesco de um quarto ou um quinto da humanidade para sair do subdesenvolvimento e de uma trágica experiência de humilhações e opressão nacional exercidas pelo imperialismo.
Um desses “quatro” dissidentes, Wei Jingsheng, é particularmente acariciado, seja em Washington, seja na “esquerda” romana. Um livro de sua autoria recebe uma bela resenha em Livros Manifesto. Mas para ter uma rápida idéia do personagem, convém concentrar-se numa entrevista concedida a uma revista norte-americana. Depois de lamentar-se pela escassa atenção a ele reservada durante uma viagem a Paris por parte das autoridades e da população francesa, o ilustre “dissidente” sentencia:
“Ê isto que acontece quando os países do Ocidente adotam os valores chineses”. (Mirsky, 1998) Como se vê, o alvo da polêmica não é o Partido Comunista Chinês, mas a China como tal, que se torna sinônimo de barbárie, como na mais sinistra propaganda imperialista. E como na mais sinistra propaganda imperialista, assim também no suposto “dissidente”, o Ocidente surge como guardião único da civilização e dos direitos humanos, não obstante a infâmia da guerra do ópio e a tragédia da “China crucificada” . Wei Jingsheng procede a uma reivindicação exaltada do imperialismo e de sua missão civilizadora planetária. Esquivando-se de recorrer à guerra comercial (ou também de outro tipo?) contra os dirigentes de Pequim, os Estados Unidos demonstram “haver confiado o povo chinês a líderes que não têm absolutamente interesse algum nos direitos humanos”. Realcei com itálico um termo revelador: a soberania universal compete originariamente e por direito inalienável ao líder planetário sediado em Washington e que pode graciosamente “confiá-Ia” aqui e ali a dirigentes domésticos dignos de sua confiança.
Mas o suposto “dissidente” não se detém aqui no que externou. Como explicar que os Estados Unidos e a OTAN não se decidam a assumir uma linha de confronto direto? Desgraçadamente, “no Ocidente a grande indústria está ganhando uma maior influência sobre os governos e deseja o mesmo que deseja Pequim”. Baseando-se nessa análise, o peso político da riqueza nos países capitalistas seria um fenômeno bastante recente e isso só ocorreria devido às pressões provenientes da China. O desventurado que assim delira parece que nunca mais ouviu falar da existência de um aparato industrial-militar claramente interessado em maquiar com tinta fosca o “perigo amarelo” e em montar um clima de histeria antichinesa, que favoreça a produção e o comércio de novos – mais sofisticados e mais custosos – sistemas de armas. E aos seus olhos apareceria como uma invenção dos seus “bárbaros” compatriotas o discurso relativo ao imperialismo, hoje, como ontem, sequioso de transformar com todos os meios o grande país asiático numa gigantesca colônia ou semicolônia, privada de uma indústria nacional autônoma, reduzida a mercado para a indústria estadunidense e ocidental e fornecedora de matérias-primas e sobretudo de força de trabalho a baixo custo e semi-servil, como os coolies de infausta memória.
O fato é – repete o suposto “dissidente” – que “os povos ocidentais não compreendem até que ponto os seus governos se corromperam pelas práticas chinesas, que dão vantagens à grande indústria”. (Mirsky, 1998) E de novo emerge a tendencial caracterização racial do povo chinês, a partir de “valores” e “práticas” infames. Além do mais, esse centro de barbárie e de obscuras manobras envolve com seus tentáculos todos os cantos do mundo. Nas capitais mais importantes do Ocidente, os governantes oficiais são na verdade marionetes de um setor financeiro que age na penumbra. Não há dúvida:
Wei Jingsheng gosta de falar dos chineses assim como os anti-semitas mais raivosos (e os próprios nazistas) falavam dos judeus!
Uma pergunta se impõe. São, tais dissidentes, expoentes de um movimento “democrático”? Nunca uma definição foi mais falsa e mentirosa. No entanto, como vimos, esses “dissidentes” estão bem longe de constituir um movimento. Apesar disso, esses personagens se revelam os cantores mais acríticos e exaltados do despotismo planetário de Washington. Estão prontos a esfolar as mãos aplaudindo, por exemplo, as bombas que destruíram a televisão sérvia e assassinaram os jornalistas culpados de ter opinião diferente da do general Clark e de Wei Jingsheng. Mas, esse Wei Jingsheng e seus “três” amigos e comparsas são pelo menos “dissidentes”? Certo, são dissidentes com relação ao povo chinês, que demonstram desprezar e que gostariam de ver golpeado e passando fome. Quanto ao mais, estamos em presença dos representantes mais fanaticamente ortodoxos do “pensamento único” ocidental. Para vê-Io triunfar, Wei Jingsheng e seus “três” amigos e comparsas estão prontos a condenar à morte por fome todos os hereges e povos inteiros, que cometeram o erro de ser realmente “dissidentes” com relação às ambições imperiais de Washington.
A esquerda, a autodeterminação e a democracia
Compreende-se por que, juntamente com os separatistas de todo tipo, os Estados Unidos arrolaram também os chamados “dissidentes”. O fato é que “a China é o último grande território que escapa à influência política norteamericana, constitui a última fronteira a conquistar”. (Valladao, 1996, p. 241) Washington está decidida a abater também esse obstáculo. Em 23 de janeiro de 1993, o atual secretário de Estado declarava: “A nossa política buscará facilitar uma evolução pacífica da China do comunismo à democracia”. (Overholt, 1994, p. 315) Explicitamente liquidado foi o princípio da não-ingerência nos negócios internos dos outros estados, o qual encontra sua consagração, além de no direito internacional, também no comunicado conjunto sino-americano de Xangai datado de 27 de fevereiro de 1972. Pacta sunt servanda? Esta regra não vale para os patrões do mundo.
Através do bombardeio multimidiático, das ameaças de guerra comercial e de guerra propriamente dita, os Estados Unidos querem impor à China a mesma “democracia” que conseguiram exportar para a ex-União Soviética: a ascensão ao poder de uma verdadeira máfia; o domínio incontrastável de um autocrata, ladrão dos ladrões, e pronto para bombardear até o Parlamento; miséria em massa e redução pavorosa da duração média de vida; recolonização de um enorme território reduzido à condição de Terceiro Mundo. Enfim, um outro aspecto que emerge da recomendação de um expert norte-americano, William D. Shingleton, que convida Washington a assimilar a experiência do desmembramento da URSS para “enfrentar de maneira mais coerente a futura fragmentação da China”. (Mini, 1999, p. 92)
Eis, portanto, o delineamento de um desenho infame mas de grande dimensão. Os círculos mais extremados do imperialismo deixam transparecer que seu objetivo vai muito além das “duas Chinas”: por que não pensar pergunta-se um autorizado semanário alemão, o Die Zeit – em “sete Chinas”? (Venzky, 1999) Mais exatamente, esses círculos visam a desmembrar toda a China em “muitas Taiwans”, (Limes, 1995) todas direta ou indiretamente controladas por Washington, que assim integraria de maneira subalterna ao mercado capitalista mundial as regiões mais desenvolvidas ou mais promissoras, abandonando as demais a um destino de subdesenvolvimento e miséria.
Taiwan, Hong Kong, Tibete, Xinjiang são os pontos estratégicos em que se desdobra o desenho imperialista. Às vésperas da transmissão de poderes em Hong Kong, Chris Patten, o governador enviado de Londres, e os EUA tentaram por algum tempo “renegar os aspectos fundamentais do acordo”, que previa o retorno à pátria-mãe do território arrebatado com a guerra do ópio. (Overholt, 1994 p. 358) Fracassando nessa frente, nem por isso as manobras do imperialismo nesse sentido cessaram. O Dalai Lama ainda não abandonou de todo a esperança de uma desagregação da China semelhante à que assinalou a tragédia da URSS. (Goldstein, 1998, p. 91)
Vejamos agora o que ocorre em Xinjiang, a região habitada pelos uiguris de religião islâmica. Essa região está conhecendo um extraordinário desenvolvimento. (Overholt, 1994, p. 88) Quem reconhece isso é o general italiano já citado, embora ele seja favorável à secessão: o governo central chinês está empenhado em “fi-nanciar a retorno quase zero, enormes obras de infraestrutura”. (Mini, 1999, p. 96) O desenvolvimento econômico caminha pari passu com o respeito à autonomia: “A polícia local é composta na sua maioria por uiguris”. Isso não obstante estar em curso uma agitação separatista “parcialmente financiada por extremistas islâmicos, como o taleban afegão”. Estamos em presença de um movimento que “se mescla com a delinqüência comum” e se mancha de “infâmia”. Esses atentados parecem ter por mira em primeiro lugar os “uiguris tolerantes ou colaboracionistas” ou as “delegacias de polícia”, controladas, como já vimos, pelos uiguris. (Mini, 1999, pp. 88-9 e 93-4) Em todo caso “se os habitantes do Xinjiang fossem chamados hoje a um referendo sobre a independência, provavelmente votariam majoritariamente contra”. (Mini, 1999, p. 96)
Emerge claramente a instrumentalização da palavra-de-ordem da “autodeterminação”, agitada contra a República Popular da China pelo imperialismo e apropriada de maneira subalterna pela “esquerda” imperial. Não que esteja assente o problema da autodeterminação; este está, pelo contrário, assumindo dimensões macroscópicas. Mas o que está ameaçado não é o direito de autodeterminação dos “dissidentes”, que são “quatro” (numericamente), e nem o da população uiguri do Xinjiang, que se opõe, majoritariamente, às manobras secessionistas e é a sua primeira vítima. Não, ameaçado está o direito à autodeterminação de um povo que constitui um quinto ou um quarto da humanidade.
Para compreender melhor esse último ponto, pode ser útil refletir sobre a história de nosso país (a Itália, N.T.). Com base em documentos dos EUA recentemente desarquivados, às vésperas das eleições de abril de 1948, a CIA estava pronta, em caso de vitória da esquerda, a apoiar movimentos secessionistas na Sardenha e na Sicília e a desmembrar a Itália. (Molinari, 1999) Devemos considerar essas manobras uma homenagem ao princípio da “autodeterminação” dos povos sardenho e siciliano ou, ao contrário, uma ameaça ao princípio da autodeterminação do povo italiano em seu conjunto (incluindo os sardenhos e sicilianos), que em nenhum caso poderia permitir a existência de um governo desagradável aos aspirantes a patrões do universo? Nos mesmos anos em que começam as manobras secessionistas relativas à Itália, seguidamente propostas devido à vitória da Democracia Cristã, ganham força também as manobras para o desmembramento da China, atualmente em pleno desenvolvimento, pois, desgraçadamente para Washington, o Partido Comunista ainda está no poder.
Se conseguisse desmembrar a China, o imperialismo transformaria o grande país no seu conjunto, inclusive o Xinjiang e o Tibete, em uma série de colônias e de protetorados. Seria o retorno da “China crucificada”, com um número de vítimas que, como vimos, “é o mais elevado da história do mundo”. Depois de ter impedido que esse trágico capítulo da história mundial fosse encerrado de uma vez para sempre, o imperialismo norte-americano está pronto agora para reabri-lo em grande estilo.
Desmembrar e fazer retroceder o país mais populoso da terra significaria para os Estados Unidos a consagração definitiva do seu domínio imperial planetário, do seu direito a intervir em Cuba, na Coréia, em Montenegro, na Rússia, no Iraque, em todas as partes do mundo, do seu direito a condenar à morte por fome, mediante embargo, qualquer povo que ousasse rebelar-se ou simplesmente exprimir um pouco de mau humor em face do soberano de Washington.
Em termos análogos aos da autodeterminação apresenta-se o problema da democracia. Devemos exigir a introdução na China ou em Cuba do pluripartidarismo de tipo ocidental? Aqui, mais do que nunca, revelam-se a subalternidade da esquerda e sua incapacidade de proceder a uma análise concreta da situação concreta. Contudo, devia estar ainda fresca na memória a lembrança da tragédia que se abateu sobre a Nicarágua sandinista. Em seu tempo, os EUA acrescentaram ao bloqueio econômico e militar, ao minamento dos portos, uma guerra não declarada mas sangrenta, suja e contrária ao direito internacional. Diante de tudo isso, o governo sandinista se via obrigado a tomar medidas limitadas de defesa contra a agressão externa e a reação interna. E eis que os Estados Unidos se arvoram como os defensores dos direitos democráticos pisoteados pelo “totalitarismo” sandinista. Faz lembrar o carrasco que, após ter procedido à execução, grita escandalizado com a cor terrosa e cadavérica de sua vítima. Uma posição grotesca: não faltaram as boas almas que se associaram aos gritos escandalizados do carrasco e à condenação das medidas “liberticidas” de Ortega, cujo espaço de manobra diante da agressão foi progressivamente reduzido e anulado.
Resultado: eleições em que o povo nicaragüense, já exangue e arrasado, com a faca no pescoço, decidiu “livremente” ceder ao agressor. Somente os servos e os imbecis podem celebrar essa infâmia e essa tragédia como triunfo da democracia. Exigir a introdução em Cuba do pluripartidarismo ocidental significa, nas atuais condições, trabalhar por uma réplica do triunfo do carrasco imperialista!
O problema se apresenta de modo similar também para a China. Vejamos os fatos. Um jornalista estadunidense assim descreve o comportamento de Washington: “Os líderes norte-americanos brandem uma das armas mais pesadas de seu arsenal comercial, mirando ostensivamente a China, e depois discutem se apertam ou não o gatilho”. O cancelamento das relações comerciais normais constituiria “em termos de dólares, a maior sanção comercial na história dos EUA, excluindo as duas guerras mundiais”; seria “o equivalente comercial de um ataque nuclear”. (Dale, 1996) Essa é também a opinião de Luttwack: “Com uma metáfora se poderia afirmar que o bloqueio das importações chinesas é a arma nuclear que a América tem apontada para a China”. (1999, p. 151)
Como poderiam ser consideradas “livres” as eleições impostas num país sob constante ameaça de um ataque nuclear (em termos comerciais, mas, indiretamente, também militares)? Os “dissidentes” seriam enormemente favorecidos não só pela superpotência midiática e financeira do imperialismo, mas, ainda mais, pelo fato de que poderiam se apresentar como o único grupo agradável a Washington e, portanto, como o único grupo capaz de salvar a população do “ataque nuclear” (de tipo comercial) e da morte por fome. Com relação a essas hipotéticas eleições, seriam decididamente mais “livres” que as encenadas em seu tempo por Napoleão I1I, ou mesmo por Mussolini e Hitler! ,
E mérito dos atuais dirigentes chineses enfrentar de maneira radicalmente diferente o problema, real e iniludível, da democracia. Rompendo com a infausta tradição do socialismo real e da “Revolução Cultural”, esses dirigentes consideram preciosas as liberdades “formais” garantidas pela lei. Daí toda uma série de reformas prometidas sob o controle do Partido Comunista, mas reais e incisivas, embora, como aliás se declara explicitamente, constituam apenas a primeira etapa de um longo processo.
Tudo isso não está em contradição com a tragédia que, em 1989, se verificou na praça de Tianamen.
Não foram apenas as contradições internas mas, claramente, também as manobras do imperialismo que alimentaram uma agitação que se prolongava de maneira interminável, apesar de todas as tentativas de mediação e de diálogo com os estudantes promovidas pela direção chinesa. Não se deve perder de vista o contexto histórico. Trata-se do período em que os Estados Unidos desenvolviam sua ofensiva final contra o “socialismo real”, desmembrando a URSS e a Iugoslávia. Depois de um longo período de incerteza e de tentativas de restabelecer a ordem pública pela via pacífica, a direção chinesa decide não permitir em nenhum caso ser arrastada pela derrocada geral. Deve-se dizer que, não obstante seus graves custos, essa sofrida decisão eximiu a China (e o mundo) de uma reedição em escala muito mais ampla, da tragédia que golpeou a URSS e a Iugoslávia, e impediu que os Estados Unidos conquistassem o triunfo final que já saboreavam antecipadamente. É compreensível, pois, a sua raiva … Mas essa decisão interrompeu o processo de democratização, que agora, pelo contrário, pode desenvolver-se sobre bases mais sólidas.
Os progressos realizados no avanço da democracia de base no campo ou na difusão no imenso país do princípio do governo da lei são reconhecidos também pela imprensa ocidental menos cega pelo anticomunismo; assim como, a boca pequena, é reconhecida a enorme extensão dos direitos humanos resultantes do processo de superação do subdesenvolvimento. (Losurdo, 1999, capo VI) Hoje, de acordo com documentos oficiais de organismos da ONU, a duração média da vida na China é cerca de 10 anos mais elevada que na Rússia: os círculos imperialistas, empenhados em infligir à China a mesma sorte reservada à Rússia, trabalham na realidade por uma catástrofe sem precedentes dos direitos humanos, por um sensível encurtamento da duração média da vida e, portanto, por uma condenação à morte prematura, de um quinto ou um quarto da população mundial. A esquerda ocidental abrirá ao menos os olhos para esse aspecto?
Do retorno de Hong Kong à mãe-pátria ao bombardeio da embaixada chinesa em Belgrado
Já estaria na hora de se desenvolver no interior da esquerda um debate sobre a realidade e sobre o papel internacional da República Popular da China. Gostaria de dar uma contribuição nessa direção, detendo-me na análise de duas posições que me parecem exemplarmente nega-tivas. Há dois anos, por ocasião do retorno de Hong Kong à República Popular da China, Il Manifesto, longe de festejar o acontecimento, se identificou largamente com Chris Patten, o governador soberanamente designado por Londres. Sobre seu comportamento, damos a palavra a um autor, também colaborador da revista Foreing Affairs. Esse autor sublinha a “desesperada resistência dos ingleses à via da descolonização”, a “tenacidade do esforço britânico para manter os poderes coloniais”; não se tratava de cuidados com a “população de Hong Kong”, “exposta a graves custos e graves riscos pelos esforços dos políticos de prolongarem o colonialismo”. (Overholt, 1994, pp. 217 -8) Para demonstrar a todos que ele era o verdadeiro soberano, Chris Patten procedia a uma “flagrante violação das normas previstas pela
Declaração Conjunta” sinobritânica que tinha definido a modalidade da transmissão de poderes a Hong Kong, assumia uma posição que “podia tranqüilamente ser declarada ilegal se julgada por uma corte inglesa”. (Overholt, 1994, pp. 255 e 250) Contudo – observa o já citado autor – “a imprensa mundial tem retratado quase exclusivamente o ponto de vista britânico”. (Overholt, 1994, p. 215) Il Manifesto não foi exceção. Como em seu tempo John Stuart Mill celebrou a guerra do ópio como uma cruzada pela liberdade, assim também os seus modernos seguidores identificaram o campeão e cruzado da liberdade na pessoa de Chris Patten, o moderno representante dos colonialistas britânicos (e dos comerciantes de ópio). Pelo menos nessa ocasião, o “diário comunista” deveria ter sido rebatizado como “diário liberal e neocolonialista”.
E agora vejamos como um expoente autorizado da Refundação Comunista comenta a situação criada em decorrência do bombardeio da embaixada chinesa em Belgrado:
“A China ( … ) arrastada pelos cabelos à crise iugoslava (é muito difícil acreditar em erro), se limita a pedir um encerramento honroso do caso, com um inquérito e a punição dos culpados, busca estar a salvo da ingerência futura em seus assuntos internos, mas não renuncia ao objetivo proclamado de ingressar na OMC para integrar-se definitivamente, e a pleno título, na globalização capitalista”. (Mantovani, 1999, p. 8)
Citei todo esse trecho porque convém analisá-lo bem e tranqüilamente. Portanto:
1) O bombardeio da embaixada chinesa em Belgrado foi intencional. Era lícito esperar nesse aspecto uma expressão de solidariedade a um país que, como demonstra de modo emblemático esse ato de banditismo internacional, está constantemente sob o fogo do imperialismo. Mas, ao contrário, nada disso. O alvo da polêmica é a vítima, mais que o agressor e a política de contenção, cerco, intimidação, subversão, além do ataque militar propriamente dito, por parte do agressor contra o grande país asiático. Surge uma polêmica não generosa contra a República Popular da China, desprezando-se o princípio mais elementar da ética comunista ou da ética enquanto tal.
2) Mas vejamos o conteúdo de tal polêmica: Pequim “se limita a pedir um encerramento honroso do caso”. Não há dúvida de que o bombardeio da Embaixada é um ato de guerra ao qual, com base no direito internacional, se poderia responder com um ato de guerra contraposto. O companheiro Mantovani deveria prezar a frieza de nervos do governo chinês e sua contribuição à causa da paz, mas ao contrário …
3) Mas a requisitória prossegue. Não renunciando à sua aspiração de ingressar e fazer parte da Organização Mundial do Comércio (OMC), a China confirma “querer integrar-se definitivamente, e a pleno título, à globalização capitalista”. Se pelo menos tivesse lido Luttwack, Mantovani teria compreendido como funciona “a arma nuclear que a América tem apontada para a China”: o fato é que, “não sendo a China um membro da Organização Mundial do Comércio (OMC), os Estados Unidos ficam ainda mais livres para assumir medidas protecionistas contra a China”. (Luttwack, 1999, p. 151)
O que pode haver de reprovável na aspiração de um quinto ou de um quarto da população mundial de não viver sob a ameaça cotidiana de uma “arma nuclear”, ostensivamente apontada contra ela? É sem sentido confundir integração “a pleno título” com o agressor a aspiração do agredido a subtrair-se à sua ameaça e portanto ganhar maior liberdade de movimento.
Com base na lógica do companheiro Mantovani, a luta desesperada do povo cubano contra o embargo e para desfrutar de relações comerciais normais exprimiria a aspiração à integração ao mercado e ao mundo capitalista. Mas, agora, voltando atrás na história, deveremos dizer que a luta secular das massas populares contra a discriminação censitária tinha por objetivo a plena integração no sistema eleitoral burguês; e o de integrar-se à sociedade machista e capitalista era o objetivo das mulheres que reivindicaram o acesso aos direitos políticos e às profissões tradicionalmente consideradas reserva de caça dos homens. Enfim, para voltar ao presente, a reivindicação do PRC e do próprio companheiro Mantovani, de poder constituir um grupo parlamentar autônomo seria claramente sinônimo de aspiração à integração ao sistema parlamentar burguês! Aqui não temos mais a ver com a ética comunista: ao contrário, salta aos olhos a violação às regras mais elementares da gramática e da sintaxe do discurso político: o protesto, a luta dos excluídos contra uma sociedade ou um ordenamento mundial fundado na discriminação e suas pavorosas cláusulas de exclusão não constituem o reforço dessa sociedade ou desse ordenamento, mas sua concreta colocação em questão.
4) Certamente, uma vez admitida na OMC, a República Popular da China se encontrará empenhada numa nova frente de luta: já agora se configura como uma luta em que deve mover-se no âmbito de uma globalização que, de um lado condena os excluídos ao apartheid tecnológico e ao embargo ou à ameaça de embargo e de outro, se desenvolve atualmente sob o controle das grandes potências capitalistas e imperialistas. Trata-se, portanto, de uma luta bastante difícil e complexa. Mas dar como líquido o triunfo do capitalismo e do imperialismo significa assumir uma posição ao mesmo tempo capitulacionista e desprovida de qualquer fundamental dado da realidade.
Basta folhear a imprensa norte-americana para perceber a permanente polêmica contra a República Popular da China, inclusive no terreno da economia. Ao invés de resignar-se ao atraso, a China pretende vincular os contratos que assina com o Ocidente à importação de tecnologia avançada; ao invés de liquidar em bloco a economia estatal e coletiva, faz de tudo para reestruturá-la e saná-Ia, embora restringindo-lhe a área, de modo que possa enfrentar com sucesso a concorrência mundial; em vez de abandonar-se aos mecanismos do mercado, busca de todo modo transferir recursos para o noroeste e as regiões menos desenvolvidas, empenhando-se para a sua decolagem; em vez de converter-se finalmente ao neoliberalismo, a China alavanca a despesa pública e as obras de utilidade pública para manter elevado o ritmo de desenvolvimento, não obstante a grave crise que acometeu o Sudeste asiático; rechaçando toda exigência nesse sentido, a China continua a opor-se à liberalização selvagem dos mercados financeiros (graças à qual o Ocidente conseguiu colocar em crise os chamados “tigres asiáticos” e estabelecer o controle sobre os gânglios vitais de sua economia): eis algumas das acusações recorrentes à República Popular da China; desgraçadamente – repete a imprensa norte-americana – aquele grande país asiático continua a ser dirigido por um Partido Comunista!
O e resto, se a integração na globalização capitalista já fosse total, como explicar o bombardeio, pelos EUA, da embaixada chinesa, para o qual chama a atenção o próprio companheiro Mantovani? Esse ato de barbárie não é o sinal de uma contradição ainda aberta e que, pelo contrário, parece aguçar-se à proporção que ocorre o desenvolvimento econômico e político da China?
O movimento comunista e a tragédia e a farsa da “excomunhão”
A estimular a má vontade da esquerda em relação à República Popular da China contribui a tese, largamente difundida, segundo a qual nesse país já se verificara uma completa restauração do capitalismo. Já vimos que para pôr em dúvida essa tese bastam as declarações e os atos dos inimigos do grande país asiático. Mas aqui convém fazer uma consideração de caráter mais geral. A história do movimento comunista é dominada por um problema de fundo. A revolução não se verificou nos pontos altos do desenvolvimento capitalista nos quais Marx via, prioritariamente, a passagem para o socialismo. E então, que fazer? Descartada a “solução” (social-democrata) de se confiar permanentemente o poder político à burguesia ou, ainda pior, de se devolver este poder à classe dominante de tipo semifeudal e semicolonial, a defasagem determinada pela falta da revolução no Ocidente, podia ser enfrentada; e foi historicamente enfrentada, de três maneiras distintas.
As duas primeiras são suficientemente conhecidas. Pode-se utilizar o país em que os comunistas conquistaram o poder como base para estender a revolução e conquistar com ela sobretudo os pontos altos do desenvolvimento capitalista; ou a tarefa principal podia ser vista na edificação nesses países do socialismo, do novo modo de produção chamado a ocupar o lugar do capitalismo. Ambas as escolhas são hoje de todo impraticáveis, devido à correlação de forças que internacionalmente foi criada nos planos econômico e militar.
Mas há uma outra maneira de enfrentar a defasagem que surgiu no movimento. Foi em seu tempo enunciada, com particular clareza, pelo primeiro presidente da República Popular da China, Liu Shaochi, segundo o qual, depois da vitória da revolução, a tarefa principal do novo poder popular consistia no desenvolvimento das forças produtivas atrasadas. No curso da Revolução Cultural, a teoria das forças produtivas, como era expressamente definida, constituiu o alvo de uma intensa campanha de denúncia. E todavia, essa teoria terminou por triunfar a partir da terceira sessão plenária do XI Comitê Central em 1979, a partir do retomo ao poder de Deng Xiaoping. E foi reafirmada ainda no curso do XV Congresso do PCC em 1997:
“A tarefa fundamental do socialismo é desenvolver as forças produtivas. Durante o estágio inicial é tanto mais necessário concentrar-se, com absoluta prioridade, em seu desenvolvimento. Existem diversas contradições na economia, na política, na cultura, na atividade social e em outros setores da vida na China e, devido a fatores internos e internacionais, contradições de classe de certa envergadura continuam a existir por um longo período de tempo. Mas a principal contradição na sociedade é aquela entre as crescentes necessidades materiais e culturais do povo e a produção atrasada. A contradição principal continuará a ser essa durante a fase inicial do processo de construção do socialismo na China e em toda a atividade da sociedade. Disso deriva que sejamos chamados a fazer do desenvolvimento econômico a tarefa central de todo o Partido e de todo o país e a garantir que todas as demais atividades sejam subordinadas e sirvam a essa tarefa. Colocando em foco essa contradição principal e nossa tarefa central, poderemos lucidamente investigar e controlar todas as contradições sociais e promover realmente a sua solução”. (Jiang Zemin, 1997, p. 17)
Isto é, a defasagem derivada da falta da revolução nos países capitalistas avançados pode ser resolvida elevando ao nível dos países capitalistas avançados, no que se refere ao desenvolvimento das forças produtivas, os países mais ou menos atrasados em que os comunistas tenham conquistado o poder. Ao proletariado vitorioso o Manifesto do Partido Comunista indica duas tarefas: “O proletariado se servirá do seu poder político para arrancar à burguesia pouco a pouco todo o capital, para concentrar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, ou seja, do proletariado organizado como classe dominante, e para fazer crescer, com a maior rapidez possível, a massa das forças produtivas”. Entre essas tarefas Marx e Engels, que olham para os pontos altos do desenvolvimento capitalista, não vêem contradição alguma. Mas, a partir sobretudo da 11 Guerra Mundial, essa contradição se manifestou com clareza. Um país em vias de desenvolvimento que hoje, através de uma nacionalização radical dos meios de produção, se fechasse totalmente ao mercado capitalista, mesmo que quisesse evitar as represálias comerciais e militares, permaneceria sem acesso à tecnologia mais avançada e não estaria em condições de resolver nem o problema do desenvolvimento das forças produtivas nem o problema da construção do socialismo.
Desgraçadamente, nenhum daqueles que na esquerda falam de completa restauração do capitalismo na China se mede com as contradições e as dificuldades reais enfrentadas pelo movimento comunista no curso da sua história e com as contradições e dificuldades reais que emergem da teoria e da prática do desenvolvimento das forças produtivas. Seria necessário proceder a balanços históricos, a reflexões e a refundações teóricas, a análises concretas da moderna realidade, dos processos de desenvolvimento, das correlações de força. Mas essa tarefa que é enfrentada com espírito crítico e sem preconceito em relação a quem quer que seja, toma-se terrivelmente exaustiva e cansativa. É mais fácil e mais rápido recorrer à excomunhão.
Assistimos assim à desventurada exumação de um comportamento que se esperava superado e dissolvido de uma vez para sempre. Que seja objeto de reflexão a página negra constituída pela condenação de Stalin, em 1948, à obra do Partido Comunista Iugoslavo considerado culpado de uma política de restauração do capitalismo. Naquele momento, quem emitia o édito de excomunhão era um “campo socialista” guiado por um país protagonista não só da Revolução de Outubro, mas também de uma heróica e vitoriosa resistência contra a barbárie nazifascista. Hoje, ao contrário, são pequenos partidos e grupelhos minoritários e pretensiosos que emitem um édito de excomunhão contra um partido comunista de dezenas de milhões de militantes, protagonista de uma grande revolução nacional e social e artífice de um processo de superação do subdesenvolvimento, que interessa a um quarto ou um quinto da humanidade e que, portanto, é destinado a modificar radicalmente a geografia política do planeta e a correlação de forças em nível internacional. Não há dúvida, a tragédia se transformou em farsa. Mas essa farsa pode alimentar uma nova e mais grave tragédia, favorecendo as manobras do imperialismo para isolar e golpear o país que, com seu próprio desenvolvimento (econômico e político), faz soar um sinal de alarme em Washington e em outras capitais.
Era uma vez a esquerda …
Tomemos ao ponto de partida. Era uma vez a esquerda, que via com simpatia a China Popular não só pela tentativa de construção do socialismo mas também pelo contrapeso que ela objetivamente constituía em relação ao imperialismo. Uma esquerda digna desse nome deve saber recuperar a sua memória histórica e a sua capacidade de análise política e geopolítica. A tragédia infligida ao povo chinês a partir da guerra do ópio é um acontecimento particularmente repugnante nos anais do colonialismo e do imperialismo, é um acontecimento cuja conclusão se tenta pôr em discussão com a obra dos Estados Unidos, que claramente identificaram na República Popular da China o seu inimigo principal, o obstáculo principal para conseguir o seu objetivo de domínio e hegemonia mundial.
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Domenico Losurdo é professor de Filosofia da Universidade de Urbino, Itália. Edição: La Git/à dei Sole, Nápoles. Tradução: José Reinaldo Carvalho
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EDIÇÃO 58, AGO/SET/OUT, 2000, PÁGINAS 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36