A brincadeira
Uma das várias leituras possíveis do romance intitulado A Brincadeira, do escritor tcheco Milan Kundera, é de que a História não tolera brincadeiras. Talvez fosse o caso de pararmos – quando digo pararmos estou pensando naquela parte saudável da sociedade brasileira que toma para si a responsabilidade de assegurar a continuidade do Brasil dentro das normas do Estado de Direito – então, continuando, talvez fosse o caso de pararmos de fustigar a História com a vara curta, pois ela pode às vezes perder a paciência e o resultado nunca é passível de previsão.
Após encenar um dos mais vergonhosos episódios da História nacional, a farsa do impeachment da presidente Dilma Rousseff, levada a efeito por um Congresso corrupto, instigado por um político medíocre, o vice-presidenteMichel Temer, agora intentamos outro golpe, desta vez contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O objetivo da peça costurada pelo procurador federal Deltan Dallagnol é tão e simplesmente inviabilizar a candidatura de Lula à Presidência da República em 2018, pois todo a sua denúncia se baseia em presunção, e não em provas concretas.
Independentemente de considerarmos Dilma Rousseff e Lula da Silva inocentes ou culpados das acusações que lhe são imputadas, é indiscutível que a maior consequência da penalização seletiva que vem sendo feita ao PT – pelo Ministério Público Federal, pelo juiz Sergio Moro, pelo Supremo Tribunal Federal – é a de ressuscitar os movimentos populares, que estavam anestesiados, e a de insuflar a indignação popular. O próprio PT havia cooptado os movimentos populares, cujas lideranças ocupavam generosos cargos nos governos petistas, e a população em geral mantinha-se apática, indiferente ao destino do partido, afogado em inúmeros escândalos.
Diante do patético movimento realizado pelo Congresso Nacional, de abortar o governo de Dilma Rousseff, eleita democraticamente com mais de 54 milhões de votos, sem conseguir demonstrar de maneira cabal o seu crime; e diante da retórica vazia do Ministério Público Federal de denunciar Lula da Silva baseado em um discurso falsamente moral e não em fundamentação jurídica, não resta outra atitude aos homens e mulheres de bem, que almejam a manutenção e aprimoramento da nossa democracia, tão jovem e tão frágil, senão explicitar sua preocupação com os rumos do país.
Uma das características do fascismo é o apego à forma e o desprezo ao conteúdo. A peça retórica do procurador federal Deltan Dallagnol, apresentada como parte de um espetáculo mais amplo, é um primor de forma sem conteúdo. Assim como o espetáculo da votação no Congresso que julgou e condenou Dilma Rousseff – a hipocrisia representada pelos deputados, o cinismo ostentado pelos senadores -, a acusação contra Lula da Silva nos empurra perigosamente para um impasse. Divididos em correntes antagônicas – ambas convencidas de encarnar as forças do Bem contra as forças do Mal – caminhamos em direção a cenários tenebrosos, cujo fim desconhecemos.
A maneira inconsequente e ressentida como vem sendo conduzida a política – parte culpa da maneira arrogante e irresponsável com que o próprio PT guiou seus passos enquanto usufruiu do poder – tem como vítimas primordiais, aliás, como sempre, as camadas mais pobres da sociedade. A perspectiva econômica para 2016 é de algo em torno de 3,3% de retração do Produto Interno Bruto (PIB), segundo estimativas do Banco Central. Será a segunda vez na história do Brasil que acumularemos dois anos seguidos de crescimento negativo, o que ocasiona um crescimento assustador do desemprego. Já são 12 milhões de pessoas sem salário mensal, situação agravada pelo desmantelamento dos sistemas de saúde, educação e segurança pública.
A questão que fica é que o que poderá advir dessa severa desorganização política, econômica e social? Talvez estejamos brincando com fogo e que ao fim do embate entre o “Bem” e o “Mal” não reste nada para ser governado, pois a História, como está escrito no começo desse artigo, não tolera brincadeiras.
Publicado em El País