1947 e 2016: cassações contra a democracia
Em 1945 o país havia recobrado a democracia e parecia que ela tinha vindo para ficar. Em 3 de setembro daquele mesmo ano o Partido Comunista do Brasil, então PCB, solicitou o seu registro provisório ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e para isso apresentou um novo programa, que afirmava: “A missão do Partido Comunista do Brasil será o prosseguimento da heróica luta revolucionária que o nosso povo vem realizando pela liberdade e progresso do país, iniciada no Brasil-Colônia marcadamente por Tiradentes e continuada por muitos outros até nossos dias. Trabalhará sem descanso pela unidade da classe operária e pela unidade nacional, visando sempre o progresso e a independência do Brasil e a liberdade, a cultura e o bem-estar do seu povo, no caminho do desenvolvimento histórico da sociedade para a abolição de toda exploração do homem pelo homem, com o estabelecimento da propriedade social dos meios de produção”.
O Tribunal, no entanto, exigiu o esclarecimento de alguns pontos “nebulosos” daquele documento. Desejava saber se a distribuição de terras proposta pelos comunistas seria através de confisco ou de expropriação; se eles ainda defenderiam a “ditadura do proletariado” ou “uma política de tolerância, à luz da liberdade de imprensa e associação” e se a socialização dos meios de produção seria feita “com ou sem o respeito ao direito de propriedade privada” e, por fim, se o marxismo-leninismo estaria incluído no programa do Partido. O partido procurou responder cautelosamente cada um desses questionamentos, pois sabiam que representavam uma armadilha.
Durante o processo de deliberação, ocorreram várias manifestações contra a legalização do Partido Comunista, como as de uma União Social pelos Direitos do Homem e de esposas das vítimas do levante da ANL de 1935. No entanto, o procurador-geral Hahnemann Guimarães, entendeu que o partido havia satisfeito as exigências formuladas e concluiu pelo deferimento do pedido. O voto do relator Sampaio Dória também foi pela autorização do registro. No entanto, não deixa de ser estranha a sua argumentação.
Ele afirmou que o partido comunista que estava sendo legalizado era “sui generis”, pois representava “um comunismo que se esvaziou de toda sua substância ideológica; um comunismo do Brasil; um partido comunista, em suma, sem marxismo, sem leninismo, sem ditadura do proletariado, sem nada do que se compreende por comunismo no mundo inteiro. Mas um partido (…) liberal, um partido capitalista, um partido democrático, à brasileira (…)” e advertia: “Pode, a qualquer tempo, ter qualquer partido cancelado seu registro, se houver substituído a sinceridade pelo engodo”. Esta era uma clara advertência.
O Partido, então, apresentou ao TST uma lista de mais de 13 mil filiados e, no dia 10 de novembro, obteve o seu registro definitivo que lhe capacitava a concorrer às eleições que se realizariam alguns dias depois: em 2 de dezembro.
O crescimento do número de filiados foi estrondoso: nos primeiros meses chegou a 50 mil, ultrapassou os 100 mil no final daquele ano e chegou a 200 mil em 1946. Foram constituídas cerca de 500 células comunistas no Rio de Janeiro, 361 células em São Paulo. Algumas delas chegaram a organizar dois mil militantes, como as da Central do Brasil, Arsenal da Marinha e dos servidores públicos da Prefeitura do Rio de Janeiro. O PCB agora era legal e adquirira um caráter de massas.
Na primeira campanha eleitoral que participou, tendo candidato próprio à presidência da República, conseguiu 10% da votação. Elegeu 14 deputados federais e um senador, o legendário Luís Carlos Prestes. Uma verdadeira façanha para um partido que até pouco tempo atrás era clandestino, com os seus principais dirigentes presos ou foragidos. Fato que incomodou os setores conservadores da sociedade brasileira.
No ano seguinte, outro susto para as classes dominantes. Desta vez ocorreu nos pleitos estaduais. Os comunistas elegeram 46 deputados em quinze unidades da federação. Na eleição complementar para a Câmara Federal, realizada em São Paulo, conquistaram mais dois deputados: Diógenes Arruda Câmara e Pedro Pomar. A bancada vermelha subiu para 16 membros. Por pouco não emplacaram as vagas no senado em São Paulo e no Distrito Federal, com os nomes de Cândido Portinari e João Amazonas. A fraude e a mentira, destilada por alguns órgãos de imprensa, impediram mais essa vitória comunista.
As coisas não poderiam continuar assim, pensavam o governo e as forças reacionárias. Estabeleceu-se um conluio entre os poderes executivo, legislativo e judiciário – com apoio da mídia e do empresariado – visando cassar o registro do Partido Comunista e colocá-lo novamente na ilegalidade. Para isso utilizaram-se dos mais variados meios. Os comícios passaram a ser duramente reprimidos, ocasionando prisões, feridos e até mortos.
O clímax da violência policial ocorreu no dia 23 de maio de 1946, quando uma manifestação pacífica realizada no Largo Carioca foi duramente reprimida. Centenas de pessoas ficaram feridas e cerca de 50 presas. Outro ato de violência policial contra um comício comunista ocasionou a morte de Zélia Magalhães. Os assassinatos se sucederiam até o final do governo Dutra.
No final de agosto de 1946 os estudantes do Distrito Federal organizaram um protesto contra o custo de vida que acabou degenerando num quebra-quebra monumental. Suspeitou-se que o conflito teria sido provocado por agentes policiais infiltrados entre os jovens. No entanto, mais uma vez, os comunistas foram acusados de serem os causadores dos distúrbios. Prisões se seguiram.
Em novembro de 1946 o Ministro de Justiça enviou uma circular, em tom alarmista, aos interventores estaduais alertando para as manifestações que estavam sendo organizadas pelos comunistas por ocasião do aniversário dos levantes de 1935. O PCB recuou e a sua Comissão Executiva lançou uma circular que afirmava: “É ainda de se assinalar a evidente provocação policial contra a qual prevenimos a todo o Partido, determinando expressamente que não se realizem quaisquer solenidades naquela data, pois, acima de tudo, está a necessidade de evitar pretextos para desordem, que parece desejar o Ministro que tão abertamente viola a Constituição. Muito cuidado, pois, com as provocações que evidentemente se preparam para aquela data”.
Os grandes jornais batiam na mesma tecla: “os comunistas eram incompatíveis com a democracia e precisavam ser extirpados da vida política nacional”. No parlamento, a cada sessão, aumentavam as provocações vindas das bancadas conservadoras. Certo dia, questionado sobre o que faria diante de uma possível agressão soviética ao Brasil, o senador Prestes respondeu: “no caso de ser o Brasil arrastado a uma guerra contra a União Soviética, – guerra que, do nosso ponto de vista, só poderia ser uma guerra imperialista – seríamos contrários a ela e lutaríamos contra o governo que levasse o país a uma guerra dessa natureza”. Era o pretexto que a direita precisava para exigir o fechamento do PCB.
Então, o deputado Barreto Pinto (PTB) e o advogado Himalaia Virgulino entraram com denúncia no TSE afirmando que o PC do Brasil era uma organização estrangeira, um mero satélite de Moscou. No mesmo período uma diligência policial realizada na sede daquele partido encontrou cópias de um projeto de reforma dos estatutos. Forjou-se então a tese de que existiram dois estatutos: um registrado oficialmente no cartório e outro ilegal, que de fato regeria a vida dos militantes. Este foi mais um ingrediente acrescentado aos planos reacionários visando colocar os comunistas na ilegalidade.
No ano anterior, quando ainda se reunia a Assembleia Constituinte, o governo Dutra publicou um decreto-lei tratando da organização partidária. No seu artigo 26 determinava “o imediato cancelamento do registro de partidos que recebessem orientação política ou contribuição em dinheiro do exterior”. Isso não foi algo casual. Este decreto logo seria utilizado pelos inimigos dos comunistas.
O Ministério Público pediria a cassação do registro do PCB por que o “partido era comunista e ‘do Brasil’, não brasileiro” e era “representado pelo seu secretário geral, que pressupunha uma autoridade superior”. Argumentos poucos sérios. A estas “acusações” respondeu o advogado partidário: “Não pode o partido ser acoimado de antidemocrático por intitular-se ‘do Brasil’, como os Estados Unidos do Brasil, a Estrada de Ferro Central do Brasil, Banco do Brasil nem procede a estranheza de ser dirigido por um secretário geral em vez de presidente, pois há vários organismos sociais e religiosos sem tal dirigente”.
Apesar das pressões vindas do governo e dos patrões, o procurador-geral Temístocles Cavalcante deu um parecer contrário ao cancelamento do registro. Afirmou que “o cancelamento do registro de um partido exige fundamentos seguros e a comprovação de que o partido desvirtua as suas finalidades ou conduz deformação do sistema democrático (…). O cancelamento de registro de um partido é um dos atos mais graves que um tribunal pode praticar. O bitolamento dos partidos e das atividades intelectuais pode levar ao totalitarismo”. E concluía que “a denuncia não lhe parece bem fundamentada, não justificando, portanto, a abertura de sindicância. Pede, por essa razão, o arquivamento das denúncias apresentadas”.
O pedido de arquivamento do processo foi derrotado por três votos a dois. Sem condições de se manter no caso, Cavalcante passou o processo para o subprocurador, Alceu Barbedo, favorável a abertura do processo de cassação. As sindicâncias começaram em maio e nelas a sorte do PCB começava a ser definida.
Em 7 de maio de 1947 o TSE, por 3 votos a 2, decidiu pela cassação do registro do partido. Poucos dias depois o Ministro da Justiça determinou o encerramento de suas atividades em todo o território nacional. Imediatamente suas sedes foram invadidas e fechadas. O próximo passo foi pedir de cassação dos parlamentares eleitos pela legenda. Uma clara violação da soberania dos eleitores.
O partido havia se recusado a mobilizar as massas que os apoiava. Acreditava que qualquer manifestação de rua poderia ser utilizada pelos seus adversários, que afirmavam que ele era antidemocrático e pretendia derrubar o regime. Foram escolhidos como campos de batalha preferencial o parlamento e o poder judiciário. Apenas em 18 de junho, sentindo a real ameaça que pesava sobre os seus mandatos, realizou um expressivo comício no Vale do Anhangabaú em São Paulo.
Em 21 de outubro a sede jornal comunista Tribuna Popular foi invadida e depredada pela polícia. Os funcionários resistiram e acabaram sendo feridos. No mesmo dia Dutra rompeu relações diplomáticas com a URSS. Realizou-se uma grande manifestação anticomunista de apoio à decisão do governo. Três dias depois o Senado aprovou o projeto de cassação dos mandatos comunistas. Apesar dos protestos, no dia 10 de janeiro de 1948, a cassação foi aprovada na Câmara dos Deputados por uma tranquila maioria de 179 votos contra 74. Estes foram os primeiros golpes que a democracia brasileira, recém-conquistada, sofreria. Outros viriam.
Passados quase 70 anos daqueles episódios, novamente, aparecem nuvens sombrias no horizonte da nossa frágil democracia. Os mesmos setores sociais que, no passado, apoiaram a cassação dos comunistas, os golpes de Estado em 1954 e 1964, hoje se voltam contra os governos Lula-Dilma e o Partido dos Trabalhadores. Os motivos dessas atitudes golpistas são os mesmos de outrora. As classes dominantes e seus representantes (no parlamento, no judiciário e na grande mídia) não aceitam políticas que pretendam melhorar as condições de vida da maioria do povo. Temem qualquer movimento que vise desconcentrar a renda e poder.
O pior de tudo é que conseguem mobilizar as camadas médias, utilizando-se dos seus medos e preconceitos. E estes se aguçam quando sentem que os setores populares estão ocupando espaços que consideravam exclusivamente seus. Não se colocam como racistas ou preconceituosas enquanto os pobres e negros souberem onde é o seu lugar e se proponham a manter-se nele. Ou como diz o ditado: “nós aqui (em cima) e eles lá (embaixo)”.
Sentem que estão perdendo o monopólio das universidades públicas, por onde se reproduziam como classe. Os aeroportos, para elas, viraram verdadeiras rodoviárias. Existe agora o risco de encontrar a sua empregada no mesmo avião indo passar férias na sua terra natal: o nordeste. Somente isso explica a oposição raivosa que fazem aos governos Lula e Dilma. A máscara usada por é – e só poderia ser – a do combate à corrupção; mas, no fundo é a rejeição à ascensão social dos mais pobres que a move e a faz ganhar as ruas.
As camadas médias se sentem pressionadas entre os de baixo (o proletariado) e os de cima (a burguesia). E o seu maior medo é proletarizar-se. São justamente esses setores sociais que engrossam a campanha do impedimento da presidenta Dilma, dando a ela característica de movimentos de massa. Isso não é novidade. A mesma coisa aconteceu no período imediatamente anterior ao golpe militar no Brasil em 1964 e no Chile em 1973.
Dentro dessa ofensiva conservadora, o deputado Carlos Sampaio, líder do PSDB na Câmara dos Deputados, resolveu radicalizar e dar um perigoso passo à frente. Imitando seus antepassados Himalaia Virgulino e Barreto Pinto, resolveu pedir a Procuradoria-Geral Eleitoral que investigue o suposto recebimento de recursos ilegais do exterior pelo Partido dos Trabalhadores. Agora não mais da poderosa URSS (ou da China) e sim de Angola. A conseqüência do acatamento da acusação seria o cancelamento do registro daquele partido, repetindo o que ocorreu em 1947.
A base do pedido foi uma matéria publicada no Valor Econômica na qual relata trechos da declaração que Nestor Cerveró, ex-diretor da área Internacional da Petrobrás, prestou à Operação Lava Jato. Ali teria dito que o caixa da campanha de Lula em 2006 havia recebido 50 milhões de reais provindos de propinas, resultado da compra de blocos de petróleo em Angola. Quem passou a informação teria sido o presidente do conselho administrativo da estatal petrolífera daquele país.
De maneira cínica, o deputado Sampaio, afirmou que esse recurso, se confirmado, teria “ofendido à soberania nacional” e a conseqüência deveria ser “a extinção do Partido dos Trabalhadores, por que ele perderia o registro”. Digo cínica, pois um tucano não pode falar em soberania nacional depois do que fizeram ao país quando estavam no governo.
O deputado age como se o fechamento de um partido político, com uma enorme base social, fosse algo de menor importância e não representasse um golpe na própria democracia brasileira. Até FHC assustou-se com o arroubo reacionário do seu companheiro de partido. Chegou a afirmar que “o PT representa parcelas da opinião brasileira e, como tal, melhor que continue ativo, que se livre das mazelas que o acometeram e que o PSDB se prepare para vencer as eleições nas urnas”. O ex-presidente não é bobo e sabe que o feitiço pode virar contra o feiticeiro.
Talvez tenha se lembrado que Cerveró também falou de um suposto pagamento de 100 milhões de dólares em propina durante o seu governo. Ou da declaração de um lobista dizendo que Aécio Neves recebia 1/3 do esquema de propinas montado em Furnas. Mais recentemente o seu nome reapareceu na denúncia de Delcídio Amaral. Informação que a imprensa não repercutiu e o pessoal da Lava Jato não se preocupou em averiguar. É nítido que os grandes meios de comunicação e setores do judiciário trabalham com dois pesos duas medidas. O seu único objetivo é desgastar o PT e derrubar a presidenta Dilma – isso agregado à tentativa de impedir uma vitória de Lula em 2018. Impedir que isso ocorrera é um dever de todas correntes democrático-populares e não apenas dos petistas.
* Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. É autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros; Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas e Linhas Vermelhas: marxismo e dilemas da revolução.
Publicado em Revista Esquerda Petista