Leia o discurso de Caio Prado Junior no recebimento do prêmio Juca Pato em 1967
“Meus amigos: Muito agradeço a honra que me foi concedida com a láurea de Intelectual do Ano de 1966. Agradecimento este, bem entendido, e faço a restrição, no que me toca a mim pessoalmente, porque bem sei que não é unicamente, nem mesmo principalmente à minha pessoa que se dirige a homenagem. E sim ao princípio que por circunstâncias ocasionais eu neste momento represento. Princípio este que se destaca no traço comum que os une os laureados em anos anteriores: Santiago Dantas, Afonso Schmidt, Tristão de Athaíde, Cassiano Ricardo, tão divergentes entre si em opiniões, posições filosóficas e obra realizada, mas igualados num característico comum que os une e que constitui sem dúvida o princípio que a honrosa láurea do Intelectual do Ano tem por objetivo distinguir. Refiro-me ao intelectual atuante, ao homem de pensamento que não se encerra em torre de marfim, e daí contempla sobranceiro o mundo. E sim aquele que procura colocar a serviço da coletividade em que vive e da qual efetivamente participa.
E é justo o critério que norteia a concessão do prêmio Juca Pato, pois é sobretudo de homens de pensamento, que sejam também homens de ação, que o Brasil necessita. E necessita hoje mais do que nunca, neste momento que vivemos, quando parecem coincidir um máximo de necessidades e aspirações do povo brasileiro, a exigirem amplos horizontes e perspectivas, com o projeto, bem marcado e abertamente proclamado pelas atuais forças dominantes no país, de limitar aquelas perspectivas e encerrá-las na tutela de um estreito horizonte.
Realmente, não é outra, e não pode ter outro sentido, a fórmula político-filosófica que orienta a presente situação brasileira. Pois não põe ela a sua grande e principal ênfase na segurança nacional, erigidas em princípio diretor da política e administração pública? O que pode significar esta “segurança nacional” elevada do simples nível de procedimentos policiais, para o plano da filosofia política, senão a consagração do imobilismo econômico, social e político?
E isso se propõe precisamente quando, à vista de todos e tão claramente, se apresenta a necessidade, e necessidade premente e inadiável, de reformas, e reformas profundas. Esta é a evidência e somente não vê o pior dos cegos, aquele que não quer ver. Eu diria mesmo que, mais do que reformas apenas, é de novos rumos que precisa o Brasil, novos rumos que façam dele, num futuro previsível, um país moderno efetivamente integrado no nível material e cultural de nossos dias.
Na verdade, e infelizmente, estamos muito longe disso. Não somos apenas “subdesenvolvidos”, ou se preferirem, e como querem alguns economistas e sociólogos que procuram disfarçar com palavras a realidade, não somos apenas um país “em desenvolvimento”. Não é só quantitativamente que nos distinguimos dos países e povos que se acham na vanguarda do mundo contemporâneo. A diferença é também, e sobretudo, “qualitativa”. E tanto isso é verdade que, relativamente, e em termos comparativos, não estamos avançando, mas antes recuando. Há cinqüenta anos ainda poderíamos figurar, muito modestamente embora, no concerto das nações civilizadas, isto é, vivendo no nível da cultura então atingida. Hoje é difícil afirmá-lo. Já não nos enquadramos mais nesse mundo da cibernética, da automação, da libertação progressiva do homem de todo esforço físico e mesmo de boa parte do mental. Temos uma fachada, não há dúvida, que apresenta certo brilhantismo. Mas é uma tênue fachada apenas, que disfarça muito mal, para quem procura verdadeiramente enxergar, e não tenta iludir-se, o que vai por detrás dela neste imenso país de desnutridos, doentes e analfabetos. E, quando muito, semi-analfabetos que vegetam, mais que vivem, em padrões materiais e culturais que a parcela da Humanidade realmente civilizada já há muito não conhece mais.
Todos aqueles que não ignoram o Brasil, o verdadeiro Brasil da grande, da imensa maioria, que não é este dos principais centros urbanos, e direi mesmo, de alguns setores apenas destes grandes centros, todos estes sabem que não exagero. E não preciso insistir em dados estatísticos e outros índices bastante conhecidos, para situar o Brasil naquela parte da humanidade que tão longinquamente se aparta do que constitui os verdadeiros padrões de civilização contemporânea. Não serão por certo esses pobres arremedos de indústria moderna, das comunicações – correios, telégrafos e telefones que não funcionam –, estas nossas metrópoles que são inundadas e se desmancham com a chuva de todos os anos; e no terreno da cultura, estes espectros que são as Universidades e nosso pobre aparelhamento de ensino e de pesquisa em geral, não é isso certamente que nos concederá foros de país no nível dos grandes centros modernos ou deles se aproximando.
Para nos considerarmos da mesma ordem de grandeza, e tão somente “mais atrasados e menos desenvolvidos”, mas não qualitativamente diferentes, para isso precisamos de muito mais e, essencialmente, de uma sólida base sobre que assentar nossa nacionalidade, e que vem a ser uma população liberta da miséria física e cultural, e capacitada, no seu conjunto, para usufruir alguma coisa do conforto e bem-estar que a ciência moderna proporciona.
Como chegar a isso? Eis nosso grande e realmente único problema fundamental e essencial. Podemos divergir com relação à maneira de resolvê-lo, e mesmo de o abordar. Mas num ponto concordarão certamente todos aqueles que estejam de boa-fé e sejam capazes de superar interesses e vaidades particularistas e imediatistas. E essa convergência de opiniões vem a ser, assim penso, que não conservando o “status quo”, a saber, uma sociedade impulsionada unicamente pelo interesse privado e pelo lucro nos negócios, e estruturada na base da riqueza e da habilidade no manejo dos mesmos negócios, não é conservando isso intacto que se transformará o Brasil.
A tarefa é grande demais para que uma linha de desenvolvimento traçada unicamente pelo choque de interesses privados e afirmações individualistas logre superar o retardo em que ficamos relativamente aos níveis e padrões do mundo moderno. Essa é a ilusão de muitos que, embora de boa fé, se informam unicamente no grande progresso realizado pela livre iniciativa privada na Europa Ocidental e sobretudo nos Estados Unidos no correr do século passado e primeira parte do atual. Ilusão que consiste em julgar que poderemos, de hoje para o futuro, reproduzir aquela façanha. Mas os tempos, tanto como as situações, são outros. Os métodos também devem ser outros.
Quais são eles? Não é agora o momento para discutir um ponto como este, altamente polêmico, e onde opiniões divergem largamente. Mas aquilo em que todos estarão de acordo, todos aqueles pelo menos que desejam procurar e encontrar novas perspectivas para o Brasil, é que não é permissível interromper e eliminar aquela discussão e reduzir as diretrizes da vida brasileira à luta contra a corrupção, a subversão e a instabilidade da moeda; e pautá-la por reformas ditadas por tecnocratas, ou que se julgam tais, encerrados em seus gabinetes ministeriais e Escolas privilegiadas.
A corrupção e a subversão são sintomas do mal-estar geral que vai pelo país. E sintomas se combatem pelas causas profundas que os ocasionam. A corrupção, em especial, é da essência do nosso regime. Quando, como se dá entre nós, a riqueza é elevada ao plano do mais alto e prezado valor social, e que tudo justifica, como impedir que a aquisição dessa riqueza se faça por todos os meios e modos possíveis, sejam eles quais forem, e inclusive pela corrupção? Numa sociedade como a nossa em que a corrupção e a ausência de princípios éticos se acham institucionalizadas e entronizadas nas relações privadas, porque elas são, podemos dizer, da essência do “negócio” que regula essas relações, como impedir, pergunto, que elas contaminem também as relações públicas? Entre negócio e negociata não há nenhuma separação absoluta; e sim, entre os extremos, um terreno indefinido e neutro onde se faz muitas vezes extremamente difícil, e frequentemente impossível, distinguir entre lícito e ilícito.
No que se refere à subversão, em cujo combate se inspira outra das normas fundamentais da presente situação política, há que preliminarmente introduzir clareza nos termos. Não é por certo subversão que implica a derrubada do governo que se trata, porque de outra forma, como bem disse um dos próceres da situação atual, o General Mourão, “subversivos” seriam todos os atuais detentores de poder e os demais que os acompanharam e secundaram nos dias idos de 1964.
Não se trata pois de subversão, e sim do descontentamento e não-conformismo daqueles que aspiram introduzir modificações na ordem atual. Mas esse descontentamento e não-conformismo que tem hoje no Brasil, como todos sabem e sobretudo sentem muito bem, raízes profundas, não se eliminam com simples medidas policiais, sob pena de se abafarem pelo terror todas as aspirações e inquietudes que constituem o fermento natural e necessário de toda renovação e de todo progresso social e humano.
Sobra, como último elemento da atual filosofia política dominante em nosso país, aquilo que, na falta de outra designação mais expressiva, eu chamaria de “tecnocracia economicista”. Todos que me ouvem já sabem aquilo a que me refiro. Trata-se de resolver os problemas brasileiros por modelos econômicos e outras fórmulas misteriosas somente acessíveis, no fundo e na forma, aos iniciados. Mas esquece-se aí que estão em jogo, no caso, fatos sociais, humanos, e que neste terreno que é o do comportamento de seres racionais, e não de objetos físicos, a solução de problemas que se hão de traduzir em ações conscientes implica a determinação de indivíduos livres, e não se consegue portanto sem o consenso destes mesmos indivíduos.
Quanto ao setor mais “humanista” dessa política tecnocrática, ela se exprime muito bem na afirmação do Sr. Presidente da República, quando ainda candidato e dirigindo-se em discurso às classes produtoras do Rio de Janeiro: do que se trata é fazer que “os ricos sejam mais ricos, para que os pobres sejam menos pobres”. Fórmula esta que lembra um outro pensamento muito difundido na geração que chegava a seu ocaso em princípios do século, e que assim se expressava: “Que seriam dos pobres se não fossem os ricos que lhes proporcionam empregos?”
A teoria em que se inspiram nossos economistas ortodoxos de maior projeção, e que faz consistir o desenvolvimento, o progresso e as soluções sociais no ritmo dos investimentos privados, traduz em termos técnicos aquele pensamento de nossos avós.
É isso em suma que impera no Brasil oficial de hoje. E é contra tudo isso, que significa o imobilismo do passado, que se há de acender a fagulha de um pensamento vivo e renovador capaz de abrir aquelas perspectivas e horizontes a que eu me referia no início destas minhas palavras. Este papel dos homens de pensamento, daqueles que tiveram o privilégio de encontrar na sua formação as circunstâncias favoráveis necessárias para o manejo das ideias, para a apreensão dos sentimentos e da consciência difusos na coletividade, a fim de os expressarem em pensamento sistematizado e em normas adequadas de ação coletiva,
E é isso, estou seguro, é esse tipo de homem de pensamento e intelectual que se homenageia com o Prêmio Juca Pato. E é por isso que tanto mais me sinto honrado e me confesso grato, por me considerarem, com o prêmio que ora recebo, representativo desse tipo de intelectual.
Muito Obrigado
— Caio Prado Júnior, 28 de março de 1967.