A Chama Poética do palestino Mahmoud Darwish em São Paulo, neste sábado (15)
foto de Salim Mhanna
O Chama Poética de outubro apresenta declamações da poesia do grande poeta palestino, Mahmoud Darwish, acompanhada pela apresentação musical de Salam Alsayyed, Oula Al-Saghir e Leonardo Bianchini. Roteiro e direção de Fernanda de Almeida Prado
Neste recital serão apresentadas poesias de Mahmoud Darwish traduzidas para o português. Serão apresentadas também canções que são fruto da longa parceria entre o poeta e o compositor, alaudista e cantor libanês Marcel Khalife. A longa parceria durou cerca de 30 anos e encerrou-se com a morte do poeta em 2008.
Os palestinos veneram-no como símbolo nacional. A sua prosa e poesia fazem parte de currículos escolares do Levante ao Magreb.
O poeta da Palestina perdeu o direito de regressar à sua aldeia de al-Birwa, integrada em Israel, mas não matou a paixão pela judia Tamar Ben Ami.
“Cada canção de amor que escrevo, dizem que é sobre a pátria. ‘Rita’ é um poema erótico. Escolhi esse nome mas o nome dela não é Rita. É uma mulher judia”, revela o escritor.
Entre Rita e os meus olhos / há uma espingarda/ E quem conhece Rita/ ajoelha-se e reza à divindade / naqueles olhos cor de mel/ E eu beijei Rita/ quando era jovem/ E lembro-me como ela se aproximou / e como o meu braço/ tocou as suas tranças adoráveis/ Ah Rita
Antes de Rita/Tamar, outra judia marcou o percurso de Darwish: Shoshana Lapidot, professora de hebraico, enviada pelo governador militar para Yasif, a aldeia onde a família do poeta se instalou quando o pai decidiu fugir das tendas de refugiados no Líbano.
Foi Shoshana quem apresentou ao seu aluno “modesto, discreto e bem comportado, de cerca de 15 anos”, o ilustre poeta israelita, Haim Bialik (1873/Rússia – 1934/Áustria), que muito influenciou os seus temas. “Nós temos saudades dos mesmos lugares”, diz Darwish. “É natural que falemos de Inverno, de uma janela, de pássaros, do cheiro de uma terra distante depois das primeiras chuvas. É como uma língua em que pessoas saudosas se juntam, mesmo que percorram caminhos diferentes.”
Entra, agora, em cena Tamar Ben Ami. Darwish não nos engana quando glorifica a judia de “olhos cor de mel”. Ela preserva a beleza da adolescência, quando ambos se apaixonaram enquanto militantes do movimento comunista israelo-palestino. Ela, sentada numa poltrona, vai mostrando as muitas cartas que o poeta lhe endereçou, algumas enviadas para o número 28 da Rua Palmach (nome do grupo de resistência judaica de onde emergiram as atuais Forças de Defesa de Israel).
Tamari [diminutivo carinhoso], não estou a escrever mas a sussurrar ao teu ouvido/ (…) Estás no meu quarto/ na minha cama/ na minha mala/ no meu livro / na minha caneta/ no meu coração e no meu sangue Teu/ Mahmoud
Ibtisam Mara’ana vai bordando com imagens de arquivo e atuais todas as entrevistas, como a do irmão de Mahmoud que ainda se lembra da fuga coagida e do retorno penoso em 1948. O amor de Tamari era impossível – e mais ainda se tornou quando ela, dançarina profissional, se juntou a uma banda da Marinha israelita durante a guerra de 1967.
Tamari, sinto-me como se tivesse sido ferido gravemente (…) / Podes não gostar de ler estas palavras duras, cruéis/ porque desgraçam a pureza do amor em que acreditavas /Peço-te que me perdoes/ (…) O meu coração só se abriu durante uns 30 minutos e agora vou fechá-lo /Adeus/ Teu/ Mahmoud
Em 1967, Mahmoud Darwish foi preso, porque as autoridades militares israelitas consideravam os seus poemas subversivos (os censores sauditas, numa recente feira literária em Riad, proibiram-nos como “blasfemos”). Em 1970, ele mudou-se para Moscou. Samih al-Qassim, poeta palestino-israelita, teve dificuldade em perdoar o amigo por “atraiçoar” estes versos: O meu país não é uma mala/ Eu não sou um viajante. “Ele, afinal, partiu”, lamentou Samir.
Em 1973, alojado numa capital libanesa em guerra civil, Darwish ganhou fama como poeta da Thawra (revolução). Em 1988, escreveu a declaração de independência de um Estado palestino. Em 1992, zangou-se com Yasser Arafat, o chefe histórico da OLP, por ter assinado os Acordos de Oslo.
Foi também em 1992 que Darwish entrou na Cisjordânia, pondo fim ao exílio. À chegada, um jornalista perguntou-lhe se ainda se considerava cidadão israelita. “Eu era. Agora não sei”, disse. “Gostaria de ser?”, insistiu o interlocutor. “É uma questão sensível porque me tornei, oficialmente, um cidadão palestino, com um Bilhete de Identidade palestino.”
Na diáspora, Darwish conheceu outro amor: Rana Qabbani (ou Kabbani), filha de um embaixador sírio nos EUA e que reside atualmente em Londres. Ele tinha 34 anos e ela 18. No dia em que foram apresentados, ele pediu-a em casamento. Ela aceitou, e a união consumou-se nessa noite. Viveram juntos seis meses, em Beirute, e separaram-se. Seis meses depois, voltaram a casar-se, e instalaram-se em Paris. Sem filhos, sob ameaças de morte, concordaram em divorciar-se. O amor perdurou.
As tuas palmas das mãos/ A minha voz / O teu amor / A minha espada / Os teus olhos / Dois rios / A tua presença/ Eu moribundo/ A tua ausência / A minha morte
Bilhete de Identidade
Escreve
sou árabe
o número do meu bilhete de identidade é o
cinquenta mil
tenho oito filhos
e o nono chegará… depois do Verão
Ficarás irritado?
Escreve
sou árabe
trabalho com os meus companheiros de infortúnio
numa pedreira
tenho oito filhos
para eles extraio da rocha
a carcaça do pão
a roupa e os cadernos
E não venho mendigar à tua porta
não me curvo
no átrio da tua casa
Ficarás irritado?
Escreve
sou árabe
Tenho um nome vulgar
sofro num país
que ferve de raiva
As minhas raízes…
fixadas antes do nascimento do tempo
antes da eclosão dos séculos
antes dos ciprestes e das oliveiras
antes da erva
O meu pai…
da família do arado
e não dos senhores de Nujub
O meu avô, um camponês
sem árvore genealógica
Ensinou-me os movimentos do sol
antes da leitura
A minha casa
uma cabana de guarda
feita de canos e ramos
Estás contente com a minha condição?
tenho um nome vulgar
Escreve
sou árabe
cabelos… pretos
olhos… castanhos
sinais particulares
na cabeça um ‘keffyah’ seguro por um cordel
A palma da minha mão, rugosa como a rocha
arranha a mão que aperta
o meu endereço: sou duma aldeia perdida, sem defesa
e todos os seus homens estão no campo e na
pedreira…
Ficarás irritado?
Então
escreve
ao alto da primeira página
Eu não odeio os meus semelhantes
e não ataco ninguém
Mas… se um dia me obrigarem a passar fome
comerei a carne do meu espoliador
Fica atento… fica atento
à minha fome
e à minha cólera
(In: “Pequena antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea; Selecção e Tradução de Albano Martins, Pp: 25/26/27)