Frente Ampla do Uruguai: um exemplo para o Brasil
Já vamos para quase um mês da proclamação dos resultados das eleições municipais de 2 de outubro de 2016. Não é nosso objetivo fazer análise sobre quem ganhou ou quem perdeu essas eleições. Nem tampouco abordar o golpe de estado perpetrado pelo Senado da República na presidente Dilma Roussef no dia 31 de agosto. Meu objetivo aqui é um “olhar para frente”, ou seja, estudar experiências políticas e eleitorais de outros países e ver se podemos aprender com elas e/ou adaptá-las em seus aspectos mais positivos em nosso país.
Nesse sentido, registro desde já, o meu entusiasmo com formações políticas e eleitorais que atuam na forma de “Frentes Políticas” que podem até concorrer em eleições, que agem e atuam fora do período eleitoral e que – o mais importante – abrigam sob o seu guarda-chuva, um conjunto de partidos e organizações de massa do povo que concordam com objetivos programáticos comuns.
Desde o início do século XX, muito antes da revolução russa de 1917, os bolcheviques do Partido Comunista da Rússia, sob liderança de Lênin e Stálin, já propunham algum tipo de frente, ainda que à época eram frente políticas sem caráter eleitoral. E aqui, registre-se, a amplitude da frente, sobre quem ou quais classes compunham essas formações políticas, dependia sempre da correlação de forças política, do estágio do desenvolvimento da luta de classe naquele determinado período histórico.
Assim, as frentes que os comunistas propunham eram mais ou menos amplas, dependendo da força política que, tanto o Partido, quanto o proletariado em geral, possuía naquele momento histórico, bem como levava-se em conta a força do inimigo comum e mais imediato. No caso da Frente Antifascista que venceu a II Guerra Mundial – na Rússia ela é chamada de Grande Guerra Patriótica – era composta não só pelos comunistas e socialistas, mas por democratas sinceros, cristãos e judeus de todas as correntes políticas. O inimigo era comum: o nazismo e o fascismo. A luta era por democracia, a mais ampla possível, que beneficiaria o proletariado e seus partidos nos países sob ocupação nazista.
Em diversos outros países, conhecemos e estudamos essas frentes políticas e que também são frentes eleitorais. Os casos mais famosos são os da África do Sul, com o seu Congresso Nacional Africano (fundado em 1940, mas suas raízes remontam a 1912); a Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional de El Salvador (fundada em 1980); a Frente Sandinista de Libertação Nacional, da Nicarágua (fundada em 1961); Organização para a Libertação da Palestina, a OLP (fundada em 1964).
Todas essas organizações frentistas, sem exceção, ou têm no Partido Comunista o seu centro político ou um ou mais partidos de esquerda nas suas direções. Algumas têm organizações guerrilheiras em sua constituição ou mesmo braços armados. Todas, invariavelmente, têm muitos partidos que disputam eleições diretamente ou usando a legenda da própria frente.
No entanto, a Frente que mais nos chama atenção, não só pela proximidade de nosso país, que é o Uruguai, mas pelo seu sucesso e longevidade, é a Frente Ampla do Uruguai, dela falaremos de forma mais detida.
Em nosso país, a história recente não registra experiências de frentes que sejam ao mesmo tempo políticas e eleitorais ou seja, atuam no dia-a-dia da sociedade independente de termos eleições, mas disputam eleições como se a frente fosse um partido e se permitem, inclusive, que personalidades se filiem diretamente à Frente, sem se vincularem a um partido especificamente e até concorram pela legenda da frente à cargos eletivos.
A Frente Ampla do Uruguai
Vamos contar apenas uma parte da história da FAU, para não nos alongarmos muito. Nosso objetivo não é a história, mas a experiência política e eleitoral. Ela surge em 5 de fevereiro de 1971 (completou 45 anos em fevereiro de 2016). Seu fundador principal era o general patriota Líber Seregni, que se candidatou à presidência do Uruguai enfrentando ditaduras sanguinárias que assolavam toda a América Latina.
São quatro os partidos que integram a FAU: Partido Comunista do Uruguai; Partido Socialista do Uruguai; Partido da Vitória do Povo e Partido Operário Revolucionário do Uruguai. A sua constituição formal ocorreu quando uma ampla aliança política – em 1971 ela envolvia até democratas-cristãos e dissidentes dos dois principais partidos do Uruguai, o Blanco e o Colorado. Posteriormente, realizou os chamados “Congressos do Povo”, onde todos os partidos fundantes, bem como as organizações de massa (sindicais, de mulheres, jovens, estudantes, bairros, negros, professores entre outros setores sociais) indicam representantes seus (delegados) na proporção acordada entre essas organizações e na proporção de sua força social e política (eleitoral).
A partir da 1984 eles aprovam a “Declaração Constitutiva da Coalizão” a partir do que chamam de “coalizão de movimentos”. Todas as organizações afiliadas, bem como as personalidades, aceitam suas bases para um acordo político e organizativo amplo, válido para todas as organizações. A autonomia das entidades e partidos que a integram é tão grande que estes podem, no limite, não encaminhar determinadas decisões que não estejam de acordo. No entanto, jamais podem encaminhar decisões que contrariem o documento central fundante e o programa unitário da FA. Esse é o aspecto mais interessante, pois nenhum partido ou organização social de massa perde a sua marca e a sua identidade própria.
Sua estrutura é bem simplificada e é eleita nos Congressos da Frente, chamados de Congressos do Povo. Existe uma Mesa Política que é coordenada pelo presidente da FA e mais 15 membros eleitos por uma plenária nacional na proporção das forças da votação que os partidos obtiveram nas eleições, bem como representantes das organizações de massa e das regiões administrativas do país.
Depois disso, possui comissões como se fosse um partido qualquer (de esquerda): organização; finanças; propaganda; formação; relações internacionais; jurídicos entre outras. Como dissemos, ela permite neste caso que personalidades sem partidos se filiem à FA. E o mais interessante é que parlamentares de outros partidos (Blanco e Colorado), também participam.
O caráter da Frente
Aqui passo a abordar o espectro da composição da Frente, nos moldes do Uruguai, mas de como seria em nosso país. Os comunistas sempre propuseram governos de coalizão desde a primeira vitória do presidente Lula e sua posse em 1º de janeiro de 2003. Sempre soubemos da necessidade de um governo amplo e de coalizão, com forças ao centro, mas sempre dissemos que a esquerda tem que dar o tom e a direção.
Temos visto muitas pessoas e correntes políticas proporem frente de esquerda depois do golpe na presidente Dilma. A Frente Brasil Popular, da qual participo em Campinas como representante do PCdoB local, tem quatro partidos em sua composição: PT, PCdoB, PDT e PCO. Duas das seis centrais legalizadas no país também a integram (CUT e CTB). Temos representação de mulheres (com a Marcha Mundial de Mulheres, a UBM e as Minas na Luta); temos representação da juventude (como a UJS, Levante Popular da Juventude e JPT); de estudantes (UNE, UEE e UPES); do movimento comunitário (CONAM/FACESP/UMEC, CMP e União dos Movimentos pela Moradia); a UNEGRO e representantes do LGBT (Parada do Orgulho Gay). Algumas pastorais têm participado.
Este espectro hoje não é suficiente para conduzirmos a luta contra o golpe. É preciso dialogar com o chamado Centro Democrático, em especial intelectuais, personalidades, ex-parlamentares, religiosos, escritores, artistas. Apresento alguns nomes que não considero de esquerda e que hoje somam suas vozes na condenação veemente ao golpe parlamentar: Roberto Requião (senador do PMDB/PR); Bresser Pereira (ex-PSDB); Cerqueira Leite (físico); Cláudio Lembro (ex-governador de SP); Almino Affonso (ex-ministro de Jango); Jackson Barreto (governado de SE, do PMDB); Armando Monteiro (senador do PTB/PE e presidente da CNI) entre tantos outros. Isso para ficarmos entre os vivos. Se fôssemos incluir nomes de personalidades falecidas do chamado Centro Democrático, exclusivamente do mundo político, teríamos ainda Tancredo Neves, Ulisses Guimarães, Teotônio Villela, Severo Gomes, Itamar Franco entre tantos outros. Essas pessoas jamais foram de esquerda. Se bem construída e conduzida, uma Frente Ampla no Brasil poderia aglutinar várias personalidades.
Uma Frente Ampla Brasil
Não sabemos o nome que virá a ter essa Frente Ampla. O senador Paim lançou este nome. Sabemos apenas que ela precisa ser ampla e pode se espelhar na experiência uruguaia onde ela também seja uma frente eleitoral, uma federação de partidos e de organizações sociais que também possa disputar eleições. Integrar a Frente não impede os partidos aderentes de também disputarem votos com suas legendas próprias. Da mesa forma que podem disputar pela lista da Frente, sem integrar nenhum dos partidos. Ou, no limite, os partidos da coalizão podem optar em lançar apenas uma lista única, coligada, de todos os partidos juntos e as personalidades que se filiam à Frente sem se afiliarem a um dos seus partidos. Aqui é vital que uma reforma partidária permita essa engenharia política – uma espécie de federação de partidos – e que mude definitivamente a cultura política-eleitoral de nosso país onde se vota “na pessoa”. Boa parte de nosso povo acha mais importante, confiável e seguro votar na “pessoa” do que votar no partido. Assim, o voto seria na lista e esta seria pré-ordenada em comum acordo com os partidos que integrem a Frente.
São várias as vantagens desse modelo – vitorioso no Uruguai há quase 20 anos seguidos. A primeira é quebrar a chamada “cláusula de desempenho”, ou seja, um percentual mínimo que os partidos teriam que ter para ter vida no parlamento. A obtenção de percentuais elevados, talvez até 30%, no espectro do que hoje é a FBP, seria facilmente atingido.
A segunda grande vantagem, é que os deputados “frentistas” eleitos, assumem também as lideranças de suas bancadas de seus partidos na Câmara dos Deputados, sem se desfigurarem, ainda que a Frente Ampla tenha também a sua liderança e encaminhe votações de forma ampla e consensual ao seu programa e aos seus integrantes.
Mas, a maior vantagem seria a divulgação e a execução – se vencermos eleições aos executivos – de um programa avançado, acordado por todas as organizações que integram a coalizão. Sinceramente, desconheço na história do Brasil, pelo menos desde o século XX, uma experiência onde isso ocorreu, ou seja, que frentes políticas puderam também disputar eleições sem desfigurar os seus próprios partidos. Seria uma grande inovação na cultura política do país.
As condições para a criação da Frente
Não é simples a constituição de uma frente política. Ainda mais de caráter amplo. Seu programa deveria ser o programa mínimo e aceitável para todas as suas organizações. Não pode ser o programa máximo, pois o programa máximo é o do meu partido ou da minha central sindical. E as decisões tomadas pela Frente devem ser tomadas por consenso, ou seja, encaminhamentos e algumas propostas pontuais não previstas no Programa da Frente, precisam ser decididas de comum acordo.
No caso de Campinas é um modelo interessante. Somos dezenas de pequenas entidades, associações, ONGs, ativistas e militantes contra a ditadura civil implantado no Brasil. Somos 15 organizações gerais por segmentos e partidos político. Não votamos nada e só encaminharmos questões de comum acordo com todos, de consenso. Até que, um dia – espero que em breve – possamos ter constituído uma Frente Ampla mesmo com programa definido, quiçá em um Congresso do Povo Brasileiro e com seus estatutos e que possamos até disputar eleições. Mas, o mais importante: disputar corações e mentes de nosso povo, que sofre o bombardeio diário e incessante de uma mídia golpista, à serviço de uma elite entreguista que odeia o nosso povo e é subserviente aos ditames do imperialismo e do capital financeiro.
A Frente Brasil Popular tem jogado um papel fenomenal na atual quadra da vida política de nosso país. Temos tido ampla unidade das entidades e partidos que a integram e mais recentemente temos feitos ações e atividades em conjunto com a Frente Povo sem Medo (algumas organizações estão e ambas as frentes). Quiçá estas duas frentes possam se constituir em uma só em futuro próximo.
A Frente Brasil Popular tem sido importante e por isso ela deve ser ampliada e popularizada. Seu nome deve ser massificado, seu programa bem divulgado, suas bandeiras devem unificar todas as organizações aderentes. Vejam o caso da chamada PEC do Fim do Mundo, a 241 (que congela todos os investimentos sociais por 20 anos). Essa PEC unifica todo mundo contra ela.
No último dia 20 de outubro, quinta-feira, realizamos uma passeata nas ruas centrais de Campinas com mil pessoas contra essa PEC da Maldade. Ainda que pequena, ela foi expressiva. Mas, foi feita sob as bandeiras e as logomarcas unificadas das duas frentes. Tudo foi organizado e decidido por consenso. Materiais publicitários, evento no Facebook, panfleto, palavras de ordem, slogans etc. todos os partidos e centrais e entidades dos segmentos sociais levaram suas bandeiras, faixas e cartazes. Todos sempre puderam falar no carro de som livremente.
Imaginemos agora se o PT, PCdoB, PCO, CUT, CTB entre outras organizações, fossem lutar contra essa PEC isoladamente e sozinhos, cada um por si? Vejam quanto de energias canalizamos para uma ação organizada que acaba surtindo um efeito muito maior do que se fizéssemos isoladamente a resistência. A marcação do dia, do formato, dos slogans, foi tão consensual e natural, que todos acataram e a data de 20/10 entrou na agenda de TODOS os partidos e organizações de massa.
Observações e recomendações
Acho que esse deve ser o caminho. Devemos envidar esforços em todos os planos – nacional, estadual e regional, para a construção da FBP. Lideranças nacionais dos partidos de esquerda – e se possível de centro – das centrais sindicais, devem participar das suas reuniões, fixar representantes que possuam autoridades para a construção do consenso, que tenham amplo domínio da política nacional e ter um elevado espírito de unidade.
Para isso, temos que levar em conta algumas condicionantes, tendo em vista a vitória da direita nas urnas e o golpe que sofremos no mandato presidencial conquistado democraticamente. Levanto para o debate algumas questões:
1. Devemos abrir mão de qualquer perspectiva hegemônica de qualquer organização de esquerda. Ainda que o PT siga sendo o maior partido de esquerda do continente e ter em seus quadros o maior líder popular da história deste país depois do Cavaleiro da Esperança (Luíz Carlos Prestes), que é o Lula, deve abdicar de toda e qualquer pretensão hegemonista;
2. Devemos procurar envolver, se possível, o PSOL e a REDE nessa Frente. Mas, sem que tenham a pretensão de virem a ser uma “nova” esquerda e que queiram ou tentem “liderar” o povo e os eleitores num possível novo ciclo político que deverá se abrir no país a partir do golpe parlamentar e do relativo enfraquecimento do PT. Não nos consta que uma derrota do PT tenha favorecido qualquer outro partido de esquerda no país;
3. No dia-a-dia nas lutas do povo, em especial nas lutas sindicais, devemos nos esforçar para montarmos chapas unitárias apoiadas pela Frente e que adotem o seu programa amplo e unitário. No limite, na impossibilidade de que isso ocorra, adotar o salutar método democrático e plural de eleições proporcionais de forma a que todas as chapas das centrais progressistas possam ter suas representações nas direções das entidades;
4. Seja qual for o nome que venha a ter a Frente (gosto do atual, Frente Brasil Popular, mas há quem proponha outros nomes como Frente Ampla Brasil), ela deve pegar o espectro da esquerda e centro esquerda (comunistas, socialistas e sociais democratas convictos), mais os setores do chamado Centro Democrático, sejam eles pequenos ou médios partidos que venham a integrar a Frente ou personalidades de diversos tipos e setores que adiram ao Programa da Frente;
5. Por fim, é preciso que o programa político pelo qual as organizações e o povo vão aderir seja imediatamente construído. Pelo consenso. Sem sectarismo. Programa mínimo. Que possamos realizar conferências de baixo para cima, democráticas, em todo o país, para que tenhamos em breve, uma Frente orgânica, com programa e uma coordenação nacional (e nos estados e regiões/municipais).
A vida dirá se isso tudo é viável ou não.
Lejeune Mirhan é sociólogo, escritor, analista internacional. Foi professor de Sociologia da Unimep (por 20 anos). Presidiu a Federação Nacional dos Sociólogos do Brasil (1996-2002) e foi vice-presidente de Relações Internacionais da Confederação Nacional das Profissões Liberais (2002-2005). Possui nove livros publicados (individualmente, em parceria ou como organizador) nas áreas de Política Internacional e Sociologia. É colaborador dos portais Fundação Grabois, Vermelho e da revista Sociologia da Editora Escala.