Ester Drummond lança livro sobre experiência de exílio, nesta sexta (4)
“A gente era uma juventude muito unida que acreditava muito no que fazia, que tinha o partido, as idéias, as lutas políticas. Tinha outro lado. Apesar da gente não se considerar vítima, nós éramos vítimas. A gente era acuado, perseguido, escondido, nos subterrâneos. Tem esse lado que em certos momentos da vida parece muito forte. Separação de crianças, medo de acontecer alguma coisa com as nossas filhas, a quantidade de vezes que tínhamos que nos mudar. Eu vivi em Recife por quatro anos, mudei de casa umas sete vezes. Tínhamos que trocar de nome, as meninas choravam porque não queriam trocar de nome. Para a família era um drama.
Eu me casei com o João em 1966, em 1968 já existia uma repressão enorme. 1968 era uma época em que o mundo evoluía: o movimento de estudantes, as liberdades da mulher, a pílula anticoncepcional… Tinha muita coisa que nos levava a pensar que precisávamos ter um país mais livre, que dê educação para as crianças, que possibilite a luta política. Hoje em dia, por exemplo, fui acertar uns papéis lá em Belo Horizonte, porque meus papéis estão todos atrasados, cheguei numa repartição pública e pude pedir o que queria. Antes, não podíamos falar nada, éramos sempre vistos como criminosos. O país mudou muito. O serviço público, a educação, a questão da luta política, é tudo outra coisa. Eu acho que o país não pode regredir, tem que abrir mais condições para ficar cada vez mais democrático.
Em Paris, eu tinha dor de cabeça até de falar meu nome na rua. Quando o pessoal falava de mim, da minha história, eu tinha dor de cabeça. Depois, como eu estava sozinha com duas meninas, eu trabalhei demais. Eu costumo dizer que, agora que eu estou começando a andar nas ruas de Paris, porque eu trabalhei 70 horas por semana durante vários anos. Só descansava um domingo e um sábado por mês, durante cinco anos. A minha filha mais velha, Rosa Maria, agora que está decidindo fazer universidade. Por outro lado, a França é um país que, embora esteja perdendo muito disso atualmente, é um país democrático. Teve a Revolução Francesa, a Comuna de Paris, e isso deixou traços que não voltam atrás. Até hoje tentam voltar atrás, mas não conseguem, porque esses acontecimentos marcaram a sociedade profundamente. Um país democrático é outra coisa. O que eu desejo para nós é a democracia real. Existe a democracia das liberdades, mas tem também a democracia de ter educação para todo mundo, ter casa, ter liberdade de discutir, eleger.
Vir ao Brasil para a anistia do João pelo Governo representou o seguinte: teve uma pessoa que durante a audiência me falou que eu estava saindo da clandestinidade agora. Eu concordo. Foi a primeira vez que eu falei publicamente sobre a minha história. A minha família é uma família católica, não é política. Eles escondiam a minha militância. Quando eu visitava o Brasil, a ligação que eu tinha era com eles, então, não conversávamos sobre isso. Isso me tirava da sociedade, eu só podia ser vítima. Lá no Congresso do PCdoB, eu falei da minha vida. Foi como me reassumir. Quando eu cheguei a Paris, as meninas já estavam com oito, nove anos, e não tinham grupo escolar. Quando teve a anistia, tinha dois anos que eu estava em Paris, elas tinham acabado de aprender o francês. Para eu voltar era muito difícil. O partido estava começando a se reestruturar, a família não podia me ajudar… Aí eu fui ficando lá. Eu simplesmente não pude voltar da França.
Com o julgamento da anistia, foi dada alguma legitimidade, porque, inclusive, o atestado de óbito do João eu ainda não registrei, porque está falso. Lá está falando que ele morreu na rua, em acidente. Meu sogro teve que mentir para ter o corpo para enterrar. A gente não foi nem no enterro dele. Eu quero corrigir isso antes de utilizar como documento oficial. Mas isso é minha palavra contando história. Quando é reconhecido legitimamente por um governo, por um Ministro, isso dá uma legitimidade para a vida da gente.” entrevista de Ester ao Portal Vermelho.