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Governo Lula, Complexo Industrial da Saúde e nova economia de projetamento

29 de abril de 2024

Nova fábrica de insulinas inaugurada por Lula é peça estratégica para a construção de um Complexo Econômico-Industrial de Saúde (CEIS) no país. Seria o CEIS um possível embrião para uma futura nova economia de projetamento no Brasil?

Por Theófilo Rodrigues

Na última sexta-feira (26/04), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva inaugurou em Minas Gerais, ao lado das ministras Nísia Trindade e Luciana Santos, uma nova fábrica da empresa de biomedicamentos Biomm. A empresa será responsável pela retomada da produção de insulina em território nacional. Trata-se de um medicamento essencial para o controle da diabetes, doença crônica que atinge cerca de 10% da população brasileira. A planta industrial inaugurada pelo governo Lula tem 12 mil metros quadrados de área construída e deve criar 300 empregos diretos e 1,2 mil indiretos. Para sua efetivação, o governo federal investiu R$ 800 milhões.

A notícia, que passou sem muito alarde pela imprensa, merece maior atenção por duas razões principais. Em primeiro lugar, pois representa um passo importante para a construção de um Complexo Econômico-Industrial de Saúde no país. Em segundo lugar, por apontar na direção embrionária de uma nova economia de projetamento que seja capaz de impulsionar a soberania nacional e o bem-estar humano.

O que é o Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS)?

O conceito de Complexo Industrial da Saúde começou a ganhar forma no Brasil no início dos anos 2000 em diversos trabalhos desenvolvidos na Fiocruz pelo pesquisador Carlos Augusto Grabois Gadelha.

Para Gadelha, “o complexo industrial da saúde pode ser delimitado como um complexo econômico, […], a partir de um conjunto selecionado de atividades produtivas que mantêm relações intersetoriais de compra e venda de bens e serviços (sendo captadas, por exemplo, nas matrizes de insumo-produto nas contas nacionais) e/ou de conhecimentos e tecnologias”. Por um lado, esse Complexo industrial de saúde constitui “um espaço importante de inovação e de acumulação de capital, gerando oportunidades de investimento, renda e emprego – ou seja, constitui um locus essencial de desenvolvimento econômico”. Por outro, esse complexo “requer uma forte presença do Estado e da sociedade para compensar as forças de geração de assimetrias e de desigualdade associadas à operação de estratégias empresariais e de mercado” (1).

Não é por acaso que essa concepção tenha surgido entre 2002 e 2003. A década de 1990 ficou marcada no Brasil pela ascensão do neoliberalismo. Naqueles anos de governo Fernando Henrique Cardoso, a ideia vitoriosa era a de que ao Estado caberia no máximo a regulação da saúde – vide a criação em 1999 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e em 2000 da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Claro, havia iniciativas como a Política Nacional de Medicamentos, de 1998, mas ainda era muito incipiente.

A eleição de Lula, em 2002, demarcou uma pequena virada nesse projeto, com uma maior percepção sobre a necessidade do papel do Estado na economia. De certo modo, essa noção do Complexo Industrial de Saúde como articulador do mercado e do Estado na indução do setor condizia com aquele espírito do tempo. Foi assim que surgiu, em 2004, a Política Nacional de Assistência Farmacêutica e a Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde. O CEIS começava a ganhar musculatura com o primeiro governo Lula.

Foi também em 2004 que o governo federal começou a construir em Pernambuco a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia, a Hemobrás. Essa empresa estatal vinculada ao Ministério da Saúde tem por objetivo garantir aos pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) o fornecimento de medicamentos derivados do sangue e/ou obtidos por meio de engenharia genética, com produção nacional.

Com o segundo governo Lula (2007-2010), em particular com a entrada de José Gomes Temporão como ministro da Saúde, o CEIS recebeu maior atenção do Poder Público. Parceiro de Gadelha na Fiocruz, Temporão instituiu em 2008 o Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (Gecis) no âmbito do Ministério da Saúde. Um marco histórico dessa gestão de Temporão foi a quebra da patente – primeira e única vez na história nacional – do medicamento Efavirenz utilizado no tratamento da Aids.

Infelizmente, muito do que estava em processo de construção do CEIS se perdeu com os governos neoliberais de Michel Temer e Jair Bolsonaro.

Agora, com o início do terceiro governo Lula em 2023, o investimento no CEIS não apenas voltou como parece ter tido um salto qualitativo. O primeiro passo foi a nomeação da presidenta da Fiocruz, Nísia Trindade, como nova ministra da Saúde e de Carlos Gadelha como Secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde. Em seguida, veio a assinatura do Decreto 11.464 de 3 de abril de 2023 que criou o Grupo Executivo do Complexo Econômico-Industrial da Saúde – Geceis, no âmbito do Ministério da Saúde (2). Como resultado dos trabalhos do Geceis, o presidente Lula assinou em 26 de setembro de 2023 o Decreto 11.715 que instituiu a Estratégia Nacional para o Desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS).

A Estratégia Nacional para o Desenvolvimento do CEIS pretende destinar até 2026 cerca de R$ 42 bilhões ao setor Saúde. Estão previstos R$ 9 bilhões em investimentos pelo Novo PAC, R$ 6 bilhões pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e R$ 4 bilhões pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Já o setor privado deve fazer um aporte de cerca de R$ 23 bilhões.

É esse o contexto em que se insere a nova fábrica de insulinas em Minas Gerais inaugurada por Lula. Não se trata somente de uma mera fábrica de medicamentos. Trata-se efetivamente de uma peça estratégica para o projeto de soberania nacional em que está inserido o CEIS. E o próprio CEIS poderia ser visto de forma também estratégica como uma peça para uma futura nova economia de projetamento no país.

O que é a nova economia de projetamento?

O conceito de economia de projetamento surgiu em fins da década de 1950 na obra do economista brasileiro Ignácio Rangel. Observador da economia política da então União Soviética, Rangel percebeu que havia ali um progresso técnico com caráter e estratégia socializantes. Isso significa dizer que não era a financeirização orientada pelo mercado a chave daquela economia política, mas sim a produção de bem-estar humano. O declínio da União Soviética, contudo, levou ao fim a primeira experiência da economia de projetamento.

Principal intérprete de Rangel no Brasil, Elias Jabbour foi buscar no conceito rangeliano de economia de projetamento um instrumento teórico para compreender o socialismo de mercado chinês do século XXI. Como o modelo chinês é qualitativamente diferente do soviético, Jabbour preferiu defini-lo como uma “nova economia de projetamento”. Nas palavras de Jabbour e Gabriele, “o projetamento (razão, “governo baseado na ciência”) é a antítese da irracionalidade capitalista e do fetichismo do homem sobre si mesmo” (4).

Essa “nova economia de projetamento” em desenvolvimento na China está alicerçada no controle governamental sobre as finanças – soberania monetária e sistema financeiro estatal -, na indução estatal da economia por meio de parcerias com o setor privado e na busca incessante pela absorção e inovação das tecnologias de fronteira.

Da produção de insulina à nova economia de projetamento?

Por óbvio, o fato de o Brasil passar a produzir insulina em território nacional não significa que uma nova economia de projetamento esteja em curso no país. O Brasil ainda é o paraíso da financeirização neoliberal – a autonomia do Banco Central que garante a independência da política econômica em relação ao Poder Público e sua dependência em relação ao mercado financeiro é a maior prova disso. Ademais, o papel do Estado como indutor do desenvolvimento econômico ainda está muito aquém do necessário para a soberania nacional.

Essa constatação não deve nos impedir de observar germes nascentes do que poderia vir a ser uma nova economia de projetamento no país. Sob esse registro, o CEIS é uma engrenagem estratégica para a implementação dessa nova economia política. É bem verdade que “a perspectiva política do CEIS vincula-se a matriz keynesiana”, como bem argumentam Temporão e Gadelha (5). Mas ela pode oportunizar um salto qualitativo se for articulada com outras iniciativas de governança pública. Reproduzir a lógica do CEIS em outros setores da economia – bioeconomia, transição energética, telecomunicações, semicondutores e outros – ao mesmo tempo em que amplia a capacidade de financiamento estatal e a soberania monetária é condição sine qua non para a construção de uma sociedade que seja governada pela razão e pela ciência, e não pela anarquia do capital. Claro, isso só será possível com uma mudança prévia no poder político e uma consequente alteração na correlação de forças no país.

Referências:

Theófilo Rodrigues é cientista político, professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UCAM.